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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O cântaro quebrado



O Cântaro quebrado
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Março 1947

            - Isso aconteceu há muito tempo. Deus havia feito o mundo e os homens, as flores e as mulheres, os pássaros e as florestas, os rios e os mares; enfim, tudo quanto embeleza, alegra e enriquece a Terra. Mas ninguém tinha vontade própria, porque Ele pensava por todos. Um dia, o Criador incumbiu o anjo Liriel de vir à Terra, para esclarecer a razão da vida humana. Foi quando, à hora da prece vespertina, Zoreb, o patriarca, recebeu a visita dessa angelical entidade, de quem ouviu, em diserta linguagem, estas palavras: - “A Terra é vasta oficina de trabalho, Preciso se torna que todos aprendam por si mesmos a alcançar o beneplácito do Pai. Já é tempo de cada qual cuidar de si, tendo por norma as Leis do Senhor. Darás a cada habitante da Terra um cântaro igual a este, feito com a argila do Livre-Arbítrio, contendo a essência da felicidade que um ser humano pode fruir neste planeta. Aconselha-os a serem comedidos e discretos, pacíficos e bons, e a paz de Deus estará sempre com os fiéis...” 

*

            Zoreb dobrou os joelhos, beijou três vezes a Terra adusta e orou, agradecendo a esmola da revelação de Liriel. Concluída a prece, chamou à sua presença todos os homens e todas as mulheres, aos quais entregou cântaros feitos com a argila do Livre-Arbítrio. E desde então os seres humanos passaram a ser responsáveis pelos próprios atos. Tudo ia bem, maravilhosamente, até que o jovem Ghazar-bar-Ghazar se lembrou de examinar o precioso vaso. Admirou-o atentamente, mas logo sentiu o acúleo (espinho) da curiosidade, Zoreb dissera que ele continha a essência da felicidade. Não haveria mal algum em vê-la um pouquinho. “Sacudiu o cântaro, virou-o de borco, tentou introduzir a mão no gargalo, inutilmente. As dificuldades tornaram-no ainda mais curioso. Nunca experimentara semelhante sensação, pois só agora dispunha de livre-arbítrio. E a inteligência começou a trabalhar febrilmente. Muniu-se de uma pedra e com ela bateu fortemente na parte mais saliente do vaso, que se quebrou, caindo-lhe aos pés os fragmentos. Se grande era o seu desejo de saber o que continha o cântaro, maior se tornara sua aflição ao perceber que o mesmo se achava completamente vazio.

*

            “-Oh! Não é possível que o venerável Zoreb haja mentido! Não é possível! - exclama, superexcitado. E, pela primeira vez, sentiu o traiçoeiro beijo da cólera. Irritado com a possibilidade de haver sido miseravelmente iludido, agarrou com violência o cântaro quebrado e saiu para a estrada, correndo e gritando, gritando e bracejando, até alcançar a casa de Zoreb. Seu desespero atraíra dezenas, centenas, milhares de pessoas. Arfante e rubro de raiva, Ghazar-bar-Ghazar não respeitou as cãs do patriarca e fomentou o escândalo: “- Fui enganado, irmãos! O meu cântaro estava inteiramente vazio! E os vossos; estarão cheios?!” Aquela multidão pareceu instantaneamente ferida pela dúvida. Cada qual voltou depressa a casa para examinar também o cântaro sagrado.”

*

            Sabedor do que ocorria, Zoreb, cheio de mansidão, mandou diversos emissários ao povo, instando para que ninguém mexesse nos vasos que a longanimidade do Pai permitira a Liriel trazer aos terrícolas. Que confiassem em suas palavras, porque, embora pobres, eram eco longínquo da vontade divina. A infernal algazarra abafava a cordura do bom Zoreb. Milhares de cântaros realizavam no ar extravagantes evoluções e muitos, arremessados por mãos que o ódio fazia tremer, vieram espedaçar-se aos pés do patriarca. Foi quando Zoreb se transfigurou, agigantando-se. Sua voz débil cresceu de intensidade e ele dominou a turba, impondo-lhe silêncio, com um gesto que se revestia de singular majestade! E considerou: “Insensatos! O cântaro contém, efetivamente, a essência da felicidade. Feliz daquele que ainda conserva intacto o seu, porque melhor poderá receber a santa paz do Senhor!”.

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            Elevando os braços para o céu, assim se manteve longos minutos, como numa prece muda à Divina Potestade. Seu rosto vincado pelos anos se orvalhava de sincero pranto. Era comovente a expectativa, Os exaltados, que haviam quebrado seus cântaros, achavam-se vencidos, tinham o coração torturado pelo arrependimento. Poucos, muito poucos, fruíam a paz interior, apertando contra o peito os cântaros inteiros! Foi a partir desse dia que a desgraça marcou os homens e mulheres que haviam destruído a própria felicidade. Zoreb, sereno qual primaveril manhã, voltou a falar, e sua voz era terna e doce como um hino celestial. “Bem-aventurados os que têm fé inabalável e paciência para esperar! A desordem e as aflições que agora vos infelicitam provêm do mau uso do livre-arbítrio e da perda inestimável da tranquilidade de espírito que se achava dentro dos cântaros que quebrastes.
Essa paz, filhos meus, é que constitui a essência da felicidade, porque sem ela ninguém poderá ser feliz.”

            Após ligeira pausa, prosseguiu: - “Deprequei ao Senhor a graça de mais uma oportunidade para os que, alucinados, destruíram os vasos que lhes dei por determinação de LirieI. E o Senhor, infinitamente bom, infinitamente misericordioso, infinitamente justo, atendeu à minha prece!", Um murmúrio de satisfação e esperança se ouviu no seio da grande massa. – “Bendito seja Deus! Bendito seja Deus!", Zoreb recomeçou a falar: - “O Pai poderia recompor os cântaros, num átimo, mas é preciso que suas Leis se cumpram, letra por letra. Não desespereis. Procurai restaurar os vasos partidos e quem o conseguir obterá a graça de recuperar também a essência perdida. A empresa é difícil, porque os cacos e estilhaços se confundem, Será preciso trabalhar com extrema paciência, inexcedível perseverança e insuperável confiança nos desígnios do Senhor. Não espereis milagres, porque cada qual terá de reaver o cântaro com o próprio esforço. Perseverai, e, quando terminardes a obra, levantai a Deus o pensamento e agradecei - agora sim – o milagre da recuperação! Esse milagre, porém, não será do Pai, mas daquele que, pensando n'Ele, levar a cabo tão redentora missão.” Cruzando os braços sobre o peito, Zoreb baixou a cabeça prateada, e voltou, devagarinho, a penates (família)...

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            Ainda hoje, a Terra anda cheia de cântaros quebrados. Poucos logram restaurá-los, porque lhes falta fé; muitos abandonam o trabalho, quando as dificuldades crescem e somente pequeno número persiste, a despeito de todas as decepções, no mister fatigante de reunir, um a um, os fragmentos perdidos. E raros são os que, fiéis à lição de Zoreb, ainda guardam no âmago do coração os cântaros inteiro...

            Não é outra a causa das aflições que enchem a vida humana. Qual de nós terá seu cântaro perfeito? Quantos não sentem a alma mergulhar na tristeza, ao se lembrarem de que não mais possuem “tranquilidade de espírito”, porque esta se foi com o cântaro quebrado?.. A vida é uma experiência. Se tudo estivesse definitivamente perdido, onde estaria a justiça do Senhor? Ele, porém, é infinitamente justo e dá aos Espíritos a oportunidade de recomeçar as experiências, o ensejo de recompor os cântaros quebrados... E o grande mérito está em lutar para reparar os ditos pretéritos, em realizar todos os esforços inimagináveis para consertar os vasos destruídos. Lutar e sofrer com coragem e fé, resignadamente, resolutamente, sofrendo todas as dores c decepções sem desfalecimento, para que os cântaros quebrados possam, um dia, ser apresentados ao Senhor, sem os vestígios das velhas fraturas. E, então, Ele recompensará o trabalho e a boa vontade dos vencedores de si mesmos, perfumando--lhes a alma com o divino perfume da felicidade,
oculto nos cântaros santificados pela fé e perseverança no bem!

*

            - Obrigado, Zoreb! Despeço-me agora, porque o tempo passa depressa e desejo começar ainda hoje a recomposição do meu cântaro quebrado...


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