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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

E a vida continua sempre


E a vida continua sempre
José Brígido (Indalício Mendes)
           Reformador (FEB) Junho 1952

            Amisael nascera de pais humildes, cuja vida havia sido uma luta permanente contra a miséria. Entretanto, jamais fora visto macambúzio. Morrera-lhe a mãe quando ainda era muito pequeno, mas ele guardava dela a mais radiosa das lembranças. Aprendera com o pai a lavrar a terra e era comovedor o carinho com que se entregava à faina áspera da lavoura, abençoando o Sol e a Chuva, defendendo as plantações e buscando, cheio de esperança, transformar a semente no milagre maravilhoso da colheita. À noite, o velho pai lhe abria o entendimento às revelações da leitura, até que ele pudesse, por si mesmo, enrijecer o espírito na interpretação verdadeira da Vida, através das lições do Evangelho. E assim Amisael foi crescendo e se fez homem. Estava preparado para as surpresas da existência terrena, certo de que nada sucede em vão, porque não há efeito sem causa.

*

            Uma tarde, quando Amisael regressava ao lar, satisfeito, cantarolando, encontrou o pai moribundo. Acercou-se dele, ansioso, e ainda pode ouvir-lhe as derradeiras palavras:

            - Meu filho, estou de partida. Desejo que exemplifique os ensinamentos recebidos. Coragem e fé. Sabes qual o caminho que deves seguir e agora terás de fazê-lo sozinho, embora, do outro plano da existência, eu possa acompanhar-te os passos. Deus te abençoe!

            E expirou.

            Amisael abraçou com grande ternura o corpo ainda quente. O semblante se entristeceu, mas ele soube reagir galhardamente, não dando entrada ao desespero.

            - Meu pai tem razão. Preciso ter coragem e fé. Se me faltar coragem, estará provado que não tenho fé. Demais, a vida não cessa: muda de aspecto. Deus fez a vida e fez a morte. A vida terrena é a oportunidade que Ele nos dá de realizarmos, em condições nem sempre favoráveis, a preparação para o retorno a uma vida mais bela no plano espiritual. A morte nada mais é do que a vida sem os tropeços da carne. Portanto, a vida é uma só, dividida em dois estágios. Devo lamentar a morte? Não, não devo, porque isto seria discordar das leis divinas. Sem dúvida, sinto a dor da separação física, mas é de meu dever cultivar a saudade pela prece construtiva. Meu pai não se extinguiu, como também não se extinguiu minha mãe. Ambos vivem e velam por mim. Podem ver-me, embora eu não os veja. Todavia, sinto-os dentro de mim, no palpitar do meu coração, nas alegrias simples do meu espírito, nas manifestações da minha consciência. Não sei explicar porque as lágrimas inundam os meus olhos, embora elas sirvam para o conforto da minha alma. Coragem e fé! Sim, coragem e fé, porque o desespero obscurece a Razão, nega a Coragem e desmente a Fé.

*
  
            Dobrando-se sobre o corpo inanimado do pai, Amisael fez linda prece. Ao terminá-la, sorriu. O seu sorriso possuía a compreensão da Verdade. Bem que gostaria de poder contar com a presença física do velho pai, por mais alguns anos, mas aceitava, resignado, o cumprimento da Lei a que estão sujeitos todos os seres vivos do mundo terreno. Cuidadosamente; entregou os despojos do genitor ao seio amigo da terra. Cobriu o túmulo com flores silvestres, orou de novo e foi buscar o bálsamo da tranquilidade nas páginas vivificantes do Evangelho. No dia seguinte, ao raiar do Sol, lá estava ele, tranquilo, devotado ao amanho da terra. Acontece, porém, que Amisael tinha um vizinho, de nome Baguf, que não admitia pudesse ele conservar-se tão sereno após o golpe sofrido. E comentava, azedo:

            - Que rapaz sem sentimento! Morreu-lhe o pai, ontem, e ele nem parece ter sentido sua falta, como se nada houvesse acontecido de grave ou como se apenas houvesse morrido um gato ou um cachorro!

            Não tardou que os rumores maledicentes chegassem ao conhecimento de Amisael, que se viu, em plena rua, censurado por Baguf. Sem se exaltar, o rapaz respondeu:

            - Vocês, que tão gravemente falam da morte, sabem o que ela representa?

            - Quem não sabe? - interveio Baguf. A morte é o fim de tudo. Deve ser olhada como uma calamidade.

            - Que me diz da vida?

            - Ora, a vida... Quem não sabe? Ela nos dá alegrias, dias felizes, prazeres e... e... Devemos aproveitar intensamente as oportunidades de gozar a vida, devemos usufruir com usura os prazeres que ela nos dá.

            - E as dores, as nossas e as alheias?

            - Devemos fugir delas, sempre que pudermos. Se temos pouco tempo para pensar em nós como é que vamos arranjar preocupações com as dores de outrem? A vida é calor, movimento, vibração. A morte é “frio, inércia, insensibilidade”. A vida acaba com o corpo, de modo que devemos aproveitar o tempo para gozá-la o mais possível. Diante disto, não nos devemos lamentar que a morte nos prive de viver?!

            - Muito bem! - exclamou Amisael, cujo semblante parecia iluminado, nesse Instante.
- Entendo a via de outro modo: como uma oportunidade que Deus nos oferece a fim de realizarmos bem a nossa preparação para a vida espiritual. Para mim, não há a a morte como sinônimo de aniquilamento, de extinção do ser. Há somente vida, vida que se desenvolve e se mantém no plano físico e no plano invisível. O que Baguf denomina “frio, inércia e insensibilidade” nada mais é do que uma ilusão dos nossos sentidos, pois no outro plano também há: calor, movimento e vibração. Deus, sempre sábio, não sujeitou o espírito ao deperecimento com a matéria. Não há morte, não há extinção, mas transformações. A matéria se decompõe, perde a forma primitiva, mas não os seus elementos essenciais, que se fundem com outros elementos e vão constituir outras formas. Por conseguinte, a matéria não morre; modifica-se. Então, se a matéria não se extingue, persistindo na combinação com outras matérias e contribuindo para auxiliar novas formas de vida, porque o espírito, que é centelha divina, iria desaparecer, desfazer-se, ficar para sempre destruído!

            Amisael enxugou os olhos com a manga da camisa e retomou a palavra:

            - O espírito, quando abandona o invólucro material, retoma ao plano espiritual de onde veio, regressa à sua verdadeira pátria e lá recomeça nova tarefa, visto que a morte não propicia o descanso eterno, porque todos temos de caminhar incessantemente para a perfeição, que é Deus! Na Terra, coagido pelas limitações da carne, subordinado às leis físicas, o espírito não possui o desembaraço que pode alcançar na vida espiritual. A morte liberta-o, mas não lhe dá o prêmio do repouso eterno, por isso que o maior prêmio que se pode alcançar está no aperfeiçoamento das nossas qualidades individuais.

            A vida, na Terra e no Espaço, é uma busca incessante para o melhor. Chama-se a isso, meus amigos, evolução.

            - Mas você, interrompeu Baguf, não demonstrou sentir a morte de seu pai. Nem sequer pôs luto ...

            - Meus sentimentos são... meus. Basta que Deus seja testemunha das minhas dores íntimas. Se eu corresse para a rua, gritando, desesperado, então vocês, consoante a tradição, concordariam que a partida de meu pai me havia ferido fundamente o coração. O luto nada significa. Quem tem a alma esclarecida pelas lições do Cristo, não deve engolfar-se na treva para testemunhar a terceiros uma dor que é principalmente sua. Se o meu ponto de vista sobre a morte é diferente da opinião que vocês sustentam, naturalmente minhas conclusões não podem ser iguais às dos que pensam de outra maneira. Mais do que nunca, meu pai e minha mãe vivem no recesso do meu ser. Passaram para um mundo melhor, e isto é motivo suficiente para que o meu coração se alegre. O sentimento que
trago no coração me ilumina o espirito. Para que cobrir meu corpo de crepes, anunciando trevas, quando tudo dentro de mim anuncia claridades?

            Baguf, escravo de dogmas estreitos, balançava, com visível desalento, a cabeça grisalha. Amisael, porém, permaneceu senhor de si:

            - Todos temos o dever de aproveitar o tempo e trabalho útil. Porque entregar-me ao desespero, quando há tanto que fazer? A morte é apenas um incidente na vida do espírito. Eu faltaria com o respeito a Deus e a meus pais, se me ativesse a preconceitos que a Razão não pode aceitar. Lá, do outro lado da vida, aqueles que me puseram no mundo ficariam decepcionados comigo, se eu me entregasse ao acabrunhamento estéril por ter sido cumprida uma lei divina. O Sol nasce e morre todos os dias. Mas, renasce amanhã, cumpre sua missão e volta de novo ao ocaso. A aurora é uma maravilhosa festa de luz para. os olhos humanos: chama os homens à labuta, põe os seres em movimento para a execução de suas tarefas. O crepúsculo é um espetáculo que comove o coração. Mostra que o astro-rei, depois de nascer entre fulgores magníficos e de executar sua missão fecunda, vai, a pouco e pouco, ocultando-se no poente, para a morte de cada dia, para o repouso transitório, a fim de que, ao aurorar seguinte, ressurja cheio de esplendor para a lide habitual. O espírito é como o Sol: tem a sua aurora, o seu trajeto e o seu crepúsculo, Nascer, viver, lutar, morrer e renascer, esta é a Grande Lei.

            Depois desse discurso, Amisael regressou ao lar, mais contente ainda, porque sentia estar amparado por entidades invisíveis, cujas vibrações delicadas lhe faziam perceber a grandeza da sua evolução moral.

            E a vida, para ele, continuou como continua, no mundo espiritual, a vida daqueles que, por injunções das leis divinas, deixam o corpo material como dádiva de gratidão à Terra Mater.

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