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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Jardim sem flores



Jardim sem flores
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Julho 1952

            Todos gabavam a incomparável beleza daquela mulher, de cujos olhos meigos parecia irradiar imensa ternura. Fizera-se, muito conhecida nas “festas de caridade”, por sua delicadeza de maneiras e sabia cativar os que dela se aproximavam nas reuniões sociais, sempre sorridente, envaidecida pela lisonja fácil dos homens frívolos que a cortejavam.

            - Ela é um verdadeiro anjo! Está sempre pronta a ajudar os infelizes! - exclamavam,  extasiados.  

            E o tempo ia passando, aparentemente devagar, mas, na realidade, bem mais depressa do que todos sentimos. Nunca se vira aquela mulher elegante, bonita e atraente faltar a uma “festa de caridade”, onde, muitas vezes, a miséria sugere movimentos, mais de mero exibicionismo individual, do que de sincera solidariedade humana.

            Sua caridade consistia em parecer boa. Não havia reunião elegante de certo vulto a que ela não estivesse presente, sem fazer nada mais do que "flertar", ouvir galanteios, sorrir e propagar a colaboração que emprestara ao trabalho de assistência aos pobres, ainda que jamais houvesse sentido de perto a emoção do sofrimento daqueles que amargam as consequências da provação terrena. Seu porte impressionava bem e a sua fisionomia agradável concorria para fortalecer o pressuposto da sua bondade. No fundo da alma, porém, não vibrava: era fria e estéril. Cuidava de si mesma e por simples impulso ególatra se sentia em paz com a consciência, retirando da carteira duzentos ou quinhentos cruzeiros para adquirir um “convite” para “festas de caridade”. Pessoalmente, não atendia a nenhum infortunado, a menos que pudesse ter alguém capaz de lhe testemunhar o gesto magnânimo.

*

            Na intimidade, entretanto, esse anjo de candura passava a maior parte do tempo diante do espelho, requintando-se na “maquillage”. Buscava todas as minúcias para o embelezamento de seus vestidos. Embora rica, pagava mal à paupérrima costureira que a servia, maltratando-a com frequência, quando as costuras não lhe saíam a contento. Nem sabia também avaliar a riqueza de contar com a companhia de uma veneranda mãezinha, cujos cabelos brancos desrespeitava, sempre que sensatos conselhos lhe eram dirigidos. De desgosto em desgosto, a anciã acabou tendo os seus dias abreviados. Mesmo assim, a filha ingrata não lhe dispensou os cuidados de que carecia. A morte da velhinha foi a princípio recebida com indiferença, e até mesmo com irritação. Para cumprir as exigências da etiqueta social, teria que se privar durante algum tempo das reuniões elegantes, das “festas de caridade”, onde a esperavam infalivelmente os louvaminheiros da sua mocidade e de sua beleza.          Tinha, porém, que simular sentimento. Por isto, adotou a atitude que melhor lhe convinha em semelhante conjuntura. Expediu comunicações às suas finas amizades, participou aos jornais e às rádios emissoras, preocupada em conhecer-lhes as referências ao seu nome, a propósito da morte da mãe sofredora. O enterramento foi feito com o maior aparato possível, após a cerimônia de encomendação do corpo. Houve missa de réquiem. Para ela, tudo corria admiravelmente, pois o templo se enchera de gente importante. Quem atentasse para a tristeza do seu semblante se surpreenderia com o contentamento que lhe inundava o coração. A morte da genitora havia sido para ela um grande acontecimento social, uma prova robusta do seu do seu prestígio.

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            Mas as leis de Deus são sábias e inflexíveis. O fastígio dessa dama fútil ainda perdurou alguns anos - Depois, começou a declinar. Ela compreendeu com desespero que sua época estava no fim - Apegou-se a tudo quanto podia para conservar o antigo prestígio social. É que os tempos mudam com a multiplicação dos anos. Foi quando o seu verdadeiro caráter se revelou diante das amizades fictícias que a sua calculada generosidade havia criado. Foram diluindo lentamente e ela chegou à maturidade completamente só. Nem sequer possuía vontade para fazer, por si mesma, a caridade que auxiliara apenas para se projetar no mundo social. Dentro em pouco, os humildes ficaram conhecendo de perto sua legítima natureza moral. Não suportava ambientes de pobreza e de dor e se apavorava ante a aproximação de pessoas enfermas. Quando lhe chegou a hora de partir foi que compreendeu o grave erro da vida artificial que levava: não tendo caridade sincera com ninguém, nem com a própria mãe, faltou com a caridade para si mesma, porque não pode colher flores quem semeia espinhos. Contudo, como é infinita a misericórdia divina, surgiu uma empregada velha, que a conhecera na infância, a qual lhe fechou os olhos no momento derradeiro.

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            Esta é a história simples e dramática de uma mulher bela, mas egoísta. Tão bela que lembrava aos seus cortejadores um jardim florido. Sua alma, entretanto, era apenas um jardim sem flores.




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