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terça-feira, 5 de novembro de 2019

Salvação pela fé ou pelas obras? - parte 3



11. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941


SALVAÇÃO PELA VIDA DE JESUS, DIZ PAULO
                      - JESUS É SALVADOR -

É suficiente ler os escritos do apóstolo para que se apanhem suas ideias nesse assunto. Pouparemos esse trabalho ao leitor. Continue a acompanhar-nos e verá a plena concordância do iluminado da estrada de Damasco com seu Senhor, o que vale por dizer - com todo o colégio apostólico.

Uma coisa bastante curiosa (falemos sempre com a máxima franqueza) é o silêncio absoluto que se guarda quanto ao fato de Jesus não haver dito que a salvação é somente pela fé, com exclusão das boas obras... “.    

Porquê? ... Então todos os discursos, todas as encantadoras lições do Mestre dos mestres, não contêm completo o seu pensamento? Será admissível que Jesus, o Mestre perfeito, o didata completo, reconhecido até por seus inimigos como cheio de inigualada sabedoria (“Nunca homem algum falou como este homem”, (João, VII, 46) - será admissível que o Mestre excelso tivesse deixado na sombra algum ponto da sua doutrina, máxime na parte mais importante que é a da renovação moral do homem para o tornar digno de possuir o reino de Deus?

Não! Jesus não falava por metades, mas por inteiro, sem sombras, sem ambiguidades, sem reticências. Dava sentido claro a suas palavras, e, quando os ouvintes denunciavam alguma dúvida, imediatamente volvia o Mestre no mesmo caminho e aí dava tudo por miúdo:

"Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem, mas o que sai da boca, isso é o que faz imundo o homem." E respondendo Pedro, lhe disse: Explica-nos essa parábola. E respondeu Jesus: "Também vós outros estais ainda sem inteligência? Não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce ao ventre, e se lança depois num lugar escuso (escondido)? Mas as coisas que saem da boca vêm do coração, e estas são as que fazem imundo o homem; porque do coração é que saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias; estas coisas são as que fazem
imundo o homem. O comer porém com as mãos por lavar, isso não faz imundo o homem." (Mt., XV, 11 a 20).

Eis aí o Mestre ensinando tão claramente, que chegou a dar uma soberba liçãozinha de fisiologia popular, fisiologia sabidinha por todo o mundo, até pelas crianças! No entanto, Ele se admirou de que o discípulo Pedro e os demais, “ainda” precisassem de explicação mais particularizada, numa parábola simplíssima como essa... Mas, como Mestre, não queria que seus ouvintes perdessem um ponto que fosse da sua doutrinação. Daí, esse cuidado, esse interesse por esmiuçar seu pensamento, a fim de ser assimilado por todos:

Se a salvação dependesse somente de uma pois outra coisa não é a fé teórica -, como Jesus não disse nada a respeito?...

Pois, é nesse assunto, precisamente nesse assunto, que Ele foi de uma clareza sem par, de uma clareza impressionante. Aguarde-nos a paciente atenção do leitor. A figura empolgante de Paulo ainda não esgotou o assunto. Acompanhemos os passos do apóstolo, penetremo-nos da ideia que ele fazia quanto à altura, e profundidade, e extensão do amor de Deus, desse amor que é a causa da salvação dos homens.

Concentremos nossa mente neste assunto, e veremos as fulgurações do pensamento do grande pregoeiro da Fé.

“Deus é amor, diz o Novo Testamento; Deus quer que todos os homens se salvem." (1ª Epist, de João, IV, 8; I Tim., II, 4).

“A interpretação destas palavras tão claras - diz um eminente doutor da Sorbonne -, quer por parte dos protestantes, quer por parte dos católicos, é que, após uma única prova, realizada na terra em condições que muitas vezes não dependem absolutamente da vontade do homem, estes, em quantidade, serão por Deus condenados a suplícios eternos.

“Elevemo-nos muito acima da ideia de um Deus tirano, que fazia tremer até um homem de gênio, como Pascal, sob a angústia atroz de uma condenação eterna.

“Deus é amor”. Criou, pois, as almas por amor, para levá-las a viver uma vida de amor com Ele, Deus, Pai Celestial de todos, para que eles sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti, repete muitas vezes Jesus, no admirável capitulo XVII do Evangelho segundo João."

- Deus é amor. Então, diz a nossa razão, diz a nossa consciência, não é possível conceber a Fonte de Amor jorrando ódio, desesperação, blasfêmias, que isso tudo é o inferno.

Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade - diz o grande Paulo. E si Deus quer, que é o que falta para que o querer de Deus se realize? Se é da vontade de Deus que todos, TODOS, sejam salvos - que impedimento haverá para se opor à realização da vontade de Deus?

Esta questão é muito séria, e não menos séria deve ser a nossa honestidade mental, que precisa encarar de frente essa questão.

Deus é amor, Deus é o Infinito do amor, e esse Amor infinito “quer” a salvação dos homens, a perfeição dos homens, criaturas de Deus. Que falta para se cumprir esse querer?

Antes de Paulo, Jesus já o dissera: “Não é da vontade de vosso Pai que pereça um destes pequeninos." (Mt., XVIII, 14). A parábola da ovelha e da dracma também afirma essa vontade de Deus. (Lc., XV; 14). E, antes de Jesus e de Paulo, o profeta anunciou ao povo que Deus não quer a morte do ímpio, mas que ele deixe o mau caminho e viva. (Ezequiel, XXXIII, 11).

Se Deus não quer o perecimento de um só de seus filhos, façam os homens o que quiserem fazer, criem teorias, organizem escolas filosóficas - e a vontade de Deus será realizada. Eis a razão da descida de Jesus à Terra. Não há prodígios de raciocínio que provem o contrário, e “torna-se erro toda verdade que pretenda suprimir as outras verdades."

Jesus veio a Terra para mostrar o caminho da salvação. Entendamos o vocábulo salvador. Acompanhemos o Doutor da Sorbonne.

O homem que se afoga precisa de um salvador que o ajude a sair da água onde ele se submerge. As almas mergulhadas na Matéria necessitam de uma força do alto que, pouco a pouco, as desprenda dos liames, das seduções, das fraquezas de baixo: necessitam de um salvador e o Salvador é o Amor Celestial, é a Força Celestial encarnada no Cristo Jesus.

Tal o fogo - a que os teólogos chamam a "graça", abafando com essa palavra o que ela quer dizer - tal o fogo que Jesus veio, como o disse, acender ou reacender neste mundo e do qual quer ver incendiada toda a Terra. “O reino de Deus está dentro de vós”, o verdadeiro fundo do reino humano é o reino divino.

Tal o sentido da palavra de Jesus (Luc. XVII, 21).

E que é o que “está dentro de vós?” O fundo do ser humano, verdadeiramente humano, é a alma, é o amor. Sim, muitos sabem o que é o amor verdadeiro e se preocupam com suas almas. Entretanto, para a imensa maioria dos mortais, isso é o que há de mais desconhecido e de mais indiferente. Só esse amor pode conceber a realidade do amor de Deus revelado em Jesus, o Filho do Homem”.

Essas ideias teve as Paulo, do que dá testemunho aquela extraordinária proclamação da sua fé em Deus, em Jesus, mas fé racional, manifestada pelo entendimento e pelo amor: “Não sou eu já o que vivo, mas Cristo é que vive em mim”. (Gálatas, lI, 20).

Isso, dizia Paulo aos Gálatas. Aos Coríntios dava por outras palavras o mesmo pensamento: “Se algum é de Cristo, é uma nova criatura; passou o que era velho, notai que tudo se fez de novo”. (II Cor. V:17).

É o atestado da reforma moral, com o nome de regeneração. Aos irmãos da igreja de Filipos (Macedônia) pregava assim a renovação do homem: “Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é santo, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, si há algum louvor de costumes, isto seja o que ocupe os vossos pensamentos”. (Filipenses, IV:8).

Tal a ideia central do seu apostolado: fazer do crente uma nova criatura nos pensamentos, nas palavras, nos atos, na conduta, nos hábitos, na vida do corpo físico, aqui sob o rigor de absoluta temperança. Essa inflexível norma de higiene da mente e do corpo, é bem o traço moral que caracterizava a figura austera de "Saulo de Tarso", o homem de vida casta: “Digo também aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se permanecerem assim, como também eu. Mas se não tem dom de continência, casem-se, porque melhor é casar-se, que abrasar-se" (no fogo das paixões). (I Cor. VII: 8,9)

Fazer dos crentes novas criaturas, era o objetivo não só de Paulo, como dos demais apóstolos e, na velha dispensação (mosaismo), de todos os profetas. Tal a finalidade da Moral do Livro Sagrado, e por isso foi perpetuado o pensamento divino nessas páginas.

Quem mais, nas páginas sagradas, puder dizer como Paulo, “sejam como eu”, isto é, livre da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos? Nenhum, nem mesmo o mais sábio de todos os reis de Israel, Salomão, cuja sabedoria era superior à de todos os orientais e egípcios, atestada por “três mil provérbios e mil e cinco cânticos” (III Reis, 14:30-32). Toda essa erudição empalidecera por algum tempo, do ponto de vista moral, pois que seu possuidor viveu por muito tempo engolfado na materialidade, em companhia de suas “setecentas mulheres e trezentas concubinas", às quais consagrava paixão “ardentíssima” (III Reis, XI:2).

Por ser dessa pureza de caráter e de vida é que Paulo estava talhado para grandes empreendimentos na rota da espiritualidade, como "vaso escolhido" pelo Grande Perseguido, para levar o Evangelho “diante das gentes (nações), e dos reis, e dos filhos de Israel” (Atos, IX:15).

Essa testemunha é que soube organizar a estruturação do plano de "salvação", nos moldes que recebera diretamente do seu Mestre, para instruir, para exortar, para ensinar, para repreender as comunidades que se formavam no campo da nova doutrina.

E como entendia Paulo a obra de Jesus? Que significa a morte do Cristo?

Ele responde a essas interrogativas, e o faz com toda a lealdade, com toda a clareza, para que suas cartas sejam entendidas pelos destinatários, muito embora a seu colega diga que nelas “há algumas coisas difíceis de entender”. (II Pedro, III, 16). Ouçamo-lo:

Se quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais agora, estando reconciliados, seremos salvos pela sua vida". (Romanos, V: 10). Claro, límpido, cristalino, brilhante, o pensamento do apóstolo. Não há, não pode haver dois modos de interpretar esse pensamento. Aí, nesse versículo destinado aos crentes da cidade da Roma imperial, afirma Paulo que a salvação ou renovação do homem é realizada pela vida de Jesus. Como isso? É o Evangelho que responde, porque no Evangelho encontrou Paulo a fala de Jesus: "O MEU preceito é este, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este, de dar um a própria vida por seus amigos." (João, XV, 12, 13). Paulo recebeu esse ensino, não por intermédio de algum dos apóstolos, mas diretamente de Jesus (Gálatas, I: 11, 12). Escreveu a carta aos Romanos no ano 58, ao passo que João compôs o "seu" Evangelho depois do ano 65.

Está explicado o meio de alcançar a salvação ou renovação do homem: pela vida de Jesus, vida-modelo para todas as criaturas de todos os tempos. Jesus quer que o imitemos em nossa vida, sim, vida de devotamento e de renúncia, de realizações e não de projetos, mas de fraternismo real, positivo, capaz de sacrifício igual ao do Modelo-perfeito. Sim! É por este caminho, só por este caminho, que nós, caminheiros deste plano onde predominam as formas geométricas, teremos de salvar nossa alma do poder das seduções da Terra. É esse o único caminho, não porque nós o dizemos, mas porque Jesus o declarou de modo taxativo, limitativo, restritivo: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim.” (João, XIV: 6).
           
Sim. Jesus VlVO, e vivo por toda a Eternidade, é a Verdade que nos libertará da condenação das trevas da ignorância (João, VIII: 32)... E a Verdade é que unificará os homens, como unificou o Filho e o Pai (João, XVII:21). O Filho é “um” com o Pai, porque as palavras do Filho são o pensamento do Pai, e as obras do Filho são a vontade do Pai.

É a vida de Jesus que nos leva a compreender e a praticar o pensamento e a vontade do Pai, a fim de alcançarmos a nossa “salvação”, isto é, a nossa renovação. “Salvação é iluminação de si mesmo" (Emmanuel).
           
Escutemos o grande legislador hebreu: “A vida do animal está no sangue" (Levítico, XVII, 11). E Paulo; o grande apóstolo da Fé que remove as montanhas da nossa ignorância, escudado na palavra de Moisés, cita o emblema do Levítico, a imagem, a prefiguração do sacrifício do Calvário, e declara aos Hebreus: Sem efusão ou sem derramamento de sangue não há remissão, não há perdão, não há expiação de provas (Epist. aos Hebreus, IX, 22). E no Calvário houve derramamento de sangue.

Diz o rev. Charles R. Brown: “O sangue é a vida. A sua função no corpo humano é purificar e alimentar o organismo. A vida moral do homem, agora enferma e enfraquecida, é purificada e renovada pelo derramamento da vida de Cristo; e esta vida recebida por nós com gratidão, tira a mancha, nutre a natureza enfraquecida e restaura a saúde moral". (Os Pontos Principais da Crença Cristã - Imprensa Metodista, São Paulo).

É o pensamento de Paulo. Se o sangue é a vida, como já o ensina a sabedoria popular, ou, segundo a expressão dos médicos e fisiologistas, se o sangue é a “vida circulante” --, concluímos, com Paulo, que os homens serão salvos da sua imperfeição, da sua enfermidade moral, pelo derramamento da vida do Cristo. A vida do Cristo, derramada em nossa vida, purifica e alimenta a nossa vida, e então poderemos dizer com o inspirado Paulo: Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim." (Gálatas, II, 20).

Acrescenta o exegeta norte-americano: “As próprias palavras “reconciliação”, “propiciação”, “justificação”, não se encontram nos Quatro Evangelhos. O Mestre, que falou como homem algum falou, findou sua carreira, entregou a sua mensagem, completou obra que o Pai lhe deu, sem nunca sentir a necessidade de usar qualquer destas palavras.” “O grande amor de Deus, que nunca foi comprado por quem quer que seja, desimpedido de qualquer embaraço governamental, salta as barreiras impostas pelo pecado e corre em busca dos perdidos para salvá-los. Temo-lo obscurecido com nossas elaboradas teorias. Temos enfraquecido a sua luz pela errônea aplicação de certas expressões nas epístolas. Estas expressões eram naturais para o espírito hebreu, treinado como fora num sistema eclesiástico onde os sacrifícios cruentos ocupavam um lugar proeminente.

 “Assim, diz a linguagem simples e precisa das Escrituras: "Somos salvos pelo sangue de Cristo:” “É a nossa união com a vida santa de Jesus, oferecida e derramada pela redenção do mundo, que nos restaura a favor e semelhança de Deus." (São nossos os grifos).

12. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

                              PAULO,
O MELHOR INTÉRPRETE DO EVANGELHO

O fariseu e perseguidor dos cristãos tornou-se o mais destemido agitador da ideia cristã. E não somente agitador, mas o melhor reconstrutor do pensamento do Perseguido. De todos os apóstolos, era o mais culto e, além deste atributo, possuía invejáveis recursos oratórios, conforme nos relata o belíssimo livro ‘Atos dos Apóstolos’, cujas páginas merecem carinhosa leitura. Lembremo-nos da perseguição feroz que lhe moveram os judeus e, muito principalmente, os fariseus, que não se conformavam com o fato de um ex-colega pregar a Cristo, e este crucificado, o que era "escândalo para os judeus e loucura para os gentios". (l Cor.; I, 23).

Acusado pelos judeus e preso na cidade de Cesaréia da Palestina, eis que os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo tramaram inteligente ardil para assassinar o ardoroso pregoeiro do Evangelho. Paulo devia ser levado à presença do governador, em audiência pública, no tribunal. Correram os judeus e pediram à suprema autoridade a morte do preso, acusado de graves delitos, mas sem uma única prova. Não atendidos, solicitaram então a transferência de Paulo para a prisão de Jerusalém, e no caminho dar-lhe-iam a morte.

Aberta a sessão do conselho, com a presença do governador como presidente, e demais autoridades, inclusive o rei Agripa (rei da Palestina, de que fazia parte a província da Judeia), este autorizou a Paulo a falar em sua própria defesa. Em meio do seu discurso, interpelado sobre se queria ser julgado em Jerusalém, respondeu Paulo que apelava para Cesar, pois, sendo cidadão romano, possuía todos os direitos e prerrogativas (privilégios) da cidadania e por isso devia ser julgado pelo tribunal da sede do governo imperial, isto é, na cidade de Roma.

Durante a sua oração, defendeu-se das acusações dos judeus, defendendo brilhantemente a doutrina do Nazareno, acoimada de “supersticiosa” e nociva. A certa altura da sua empolgante peça oratória, cimentada por urna argumentação vigorosa e irrespondível, o presidente do tribunal, o governador Pórcio Festo, aparteia: “Estás louco, Paulo; as muitas letras te tiram de teu sentido!" (Atos, XXVI, 24 e cap. XXV).

Não somente Festo, como todos os presentes, ficaram emocionados ante a impressionante auto defesa do grande apóstolo. Arrebatado pelo discurso que estava ouvindo, o rei Agripa interrompe o orador e diz-lhe estas palavras: “Por pouco me não persuades a fazer-me cristão".

A figura de Paulo merece estas referências, e estas, por mais repetidas que sejam, não causam enfado. É que a verdade é sempre bela, máxime quando anunciada por lábios puros, movidos por coração também puro como o do filho de Tarso.

Mais uma referência ou mais uma prova do valor extraordinário deste amorável servo de Jesus.

Poucos dias antes de passar o governo da Judéia a Festo, o ex-governador Felix, tendo sua mulher Drusila ao seu lado (e ela era judia), mandou chamar Paulo na prisão, para ouvi-lo sobre a doutrina de que se tornara pregador. “Mas como Paulo lhe falou em tom de disputa, da justiça, e da castidade, e do juízo futuro, Felix, todo atemorizado, lhe disse: Por ora, basta, vai-te; e quando tiver vagar, eu te chamarei.” (Atos, XXIV, 24, 25).

Desculpa descosida ou de mau pagador, essa, do sr. Felix... “Todo atemorizado”, engendrou essa escapatória, porque a palavra de Paulo foi uma brasa na sua consciência, brasa viva, assoprada pelas ideias de “justiça”, de “castidade”, de “responsabilidade” na vida presente e na vida futura!

Foi Lucas - autor dessa narrativa - quem escreveu essa passagem. Não quis Paulo, seu guia na terra, dar-lhe o teor do arrazoado que ele, Paulo, fez soar ao ouvido de Felix e de sua mulher. Podemos imaginar, todavia, que o eloquente defensor da doutrina de Jesus teria falado na “imortalidade da alma”, com aquela profundeza de sabedoria e firmeza de raciocínio com que falou aos coríntios, na primeira carta, capítulo XV.

Sim! “Todo atemorizado”! E não podia ser outro o estado de consciência de um homem que ouvira esta afirmativa: “procuro ter sempre a minha Consciência sem tropeço diante de Deus e dos homens” (Atos, XXIV, 16). Sim, “todo atemorizado”! Não era possível outro estado de alma, desde que "sabia perfeitissimamente", afirma Lucas, as coisas dessa doutrina, ele, então governador Felix, que ouviu o discurso de Paulo, quando este alegou a seu favor: “Eu hoje pois sou julgado por vós acerca da ressurreição dos mortos." (Atos, XXIV, 20, 21, 22).

"Todo atemorizado" - relata Lucas, porque, não querendo perder a graça dos judeus, perdeu a paz da própria consciência, conservando Paulo na prisão, quando estava em suas mãos o dar-lhe a liberdade! ...

Eis aí, leitor amigo, o estado de decadência moral a que se arrasta voluntariamente aquele que se faz surdo aos apelos da verdade!

E, assim, cumpria-se a risca aquilo que Paulo ouvira algumas horas após aquela visão que o cegara no caminho de Damasco, isto é, que ele seria testemunha de Jesus diante de todos os homens. (Atos, XXII, 15).

13. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Ó INSENSATOS GÁLATAS! EXCLAMA PAULO

Sobejas razões teve-as o apóstolo em censurar com veemência a inconstância dos gálatas e a facilidade que denotavam em aceitar o enxerto do Judaísmo no Cristianismo da irmandade. Não fora a ação pronta e enérgica que demonstrou, e talvez os gálatas, obedecendo à lei de Moisés, estivessem praticando as ações legais, as ações permitidas e mesmo ordenadas pela velha legislação, como estas:

Se o ladrão não tiver com que pague o furto, será vendido (como se vende um saco de carvão ou um metro de fita) (Êxodo, XXII, 3);

Se o irmão do defunto não quiser casar-se com a cunhada viúva e sem filho, esta lhe tirará o sapato de um pé e lhe cuspirá no rosto, diante dos anciãos (hoje, seria diante do Juiz, em audiência pública, no Fórum, presentes o respectivo escrivão, o oficial de justiça, os advogados e demais pessoas que habitualmente se encontram na Casa da Justiça) (Deuteronômio, XXV, 5 a 10);

Se teu irmão ou teu filho, ou filha, ou tua mulher a quem amas, ou o amigo íntimo a quem muito prezas, te quiser persuadir a seguir outra crença, matá-lo-ás: “seja a tua mão a primeira sobre ele e depois todo o povo lhe ponha as suas; morrerá coberto de pedras, porque quis apartar-te do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão”. (Deut., XIII, 6 a 18). (Hoje, seria quase infinito o número de uxoricidas, de homicidas, de fratricidas, feitos pela Lei de Moisés).

Se os habitantes de uma cidade quiserem proceder pela mesma forma, seguindo outro modo de pensar, em religião, todos eles serão passados a espada, até os gados, incendiadas as habitações e todos os móveis, “de maneira que consumas tudo em honra do Senhor teu Deus e fique um montão eterno de ruínas; não se tornará a reedificar, e não se te pegará as mãos nada deste anátema: para que o Senhor aplaque a ira do seu furor” (Deut. XIII, 12 a 18) (Hoje ... quantas cidades existiriam no planeta?.. A ira do Senhor estaria já aplacada? Provavelmente não haveria muitas fábricas de móveis, ou mesmo não haveria uma sequer!..)

Fixando a atenção nessas arrepiadoras ordenações do mosaismo, verá o leitor que essa severidade desapareceu na sombra longínqua do passado...

Pois essas medidas arrasadoras estavam a pique ou em risco de ser revigoradas pelos gálatas, por influência dos doutores judaizantes, que procuraram transtornar o trabalho feito pelo apóstolo. Daí essa linguagem enérgica e essa atitude rebarbativa do grande pioneiro da verdade: “Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade, vós ante cujos olhos foi já representado Jesus Cristo como crucificado entre vós mesmos?” “Tende-vos firmes, e não vos metais outra vez debaixo do jugo da escravidão” (da “lei” de Moisés, a “letra que mata”, porque ela só acusa e condena o homem, sem lhe dar força para livrar-se da transgressão). A lei mosaica não era para “os povos” mas tão somente para “um” povo: o judeu. Observa o rev. R. Pitrowsky: esse concerto (ou Velho Testamento) com as suas leis, não era somente uma lei nacional de Israel e local, mas também temporária (Êxodo, XIX, 3 a 6); porque as bênçãos e as maldições, vindas sobre os que o guardassem e o transgredissem, eram todas puramente temporárias enquanto nesta vida corporal; e nenhuma bênção ou maldição há que se refira a vida depois da morte. Leia Deut., XXVIII, 1 a. 68” - O Sabatismo à Luz da Palavra de Deus", pág. 27 - Casa Publicadora Batista, Rio 1925).

- A simples leitura desses textos da lei mosaica e dos dirigidos aos membros da igreja da Galácia, basta, por si só, para convencer a um leigo em biblismo, da inexigibilidade da legislação hebraica entre nós brasileiros... que não fomos tirados da terra do Egito...

Se Paulo não admitia nada do mosaismo dentro do Cristianismo - porque o mosaismo era só para aquele povo e para aquela época -; se Paulo não admitia a mistura de mosaismo com o Evangelho - lembrado que estava da palavra de seu Mestre: Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho, nem deita vinho novo em odre velho (Mt. IX, 16, 17) -, perguntamos: como se pode conceber, nestes dias do sec. XX haja crentes no Evangelho que citem o Deuteronômio, o Levítico como lastro de suas convicções? Desejaríamos saber qual o lugar da Europa ou da América, onde já se viu aplicada aquela horrível penalidade registrada em Deut., XXV, 11 e 12... Sim, não é impossível uma pendência dessa natureza e nessas circunstâncias e a mulher fazendo isso, para salvar o marido. Mas, ninguém terá dúvida em responder pela negativa, visto que as nações possuem os seus Códigos (Código Comercial, Código Civil, Código Penal) e por isso, dispensam o Código Penal Mosaico... Pelo menos,
os Anais Judiciários do Brasil, a contar do reinado de D. João III, em Portugal -, guardam silêncio quanto a algum caso como o previsto pelo legislador hebreu, em que uma mulher tem de ver amputar-se lhe a mão direita, por querer salvar a vida do seu marido, sem usar de arma alguma.

Sobejas razões teve-as Paulo, repetimos, em empregar aquela linguagem incisiva, mordente, na carta aos Gálatas. No caso, só esse estilo, tamanho era o pavor produzido no espírito do apóstolo pela ideia de haver crentes em Jesus Cristo amparados simultaneamente no Evangelho e na lei do Deuteronômio...

14. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

PREGA PAULO: 
"FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO"

Ouçamos a palavra erudita e esclarecedora do excelso paladino do Evangelho, na interpretação do pensamento de seu Mestre, em Mateus, XXV, vs. 31 a 46:

"Se eu falar as línguas dos homens, e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o metal que soa ou como o sino que tine (corpos sem alma nem coração). E se eu tiver o dom de profecia, e conhecer todos os mistérios, e quanto se pode saber; e se tiver toda a fé, até ao ponto de transportar montes, e não tiver caridade, não sou nada.

E se eu distribuir todos os meus bens em o sustento dos pobres, e se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não tiver caridade, nada disto me aproveita.

A caridade é paciente, é benigna; a caridade não é invejosa, não obra temerária nem precipitadamente, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.

A caridade nunca jamais há de acabar, ou deixem de ter lugar as profecias, ou cessem as línguas, ou seja abolida a ciência. Porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos. Mas quando vier o que é perfeito, abolido será o que é em parte.

Quando eu era menino, falava como menino, julgava como menino, discorria como menino; mas depois que eu cheguei a ser homem feito, dei de mão às coisas que eram de menino.

Nós agora vemos a Deus como por um espelho, em enigmas, mas então face a face. Agora conheço-o em parte, mas então hei de conhecê-lo como eu mesmo sou também dele conhecido.

Agora pois permanecem a fé, a esperança, a caridade, estas três virtudes; porém a maior delas é a caridade." (1ª aos Coríntios, capo XIII vs. 1 a 13).

É Paulo quem diz o que significa a "caridade", como o único caminho da redenção humana. Nada se pode acrescentar a essas palavras sublimes, inspiradas pelo amor cristão. Disse-as ele aos crentes da cidade de Corinto. Mas, encerram ensino universal. Servem para todo crente, de Corinto, de Roma, de Jerusalém, de São Paulo, do Rio de Janeiro.

É Paulo e não um filósofo grego, quem proclama ao mundo esta verdade salvadora: a caridade está acima da esperança, acima da fé. Essa encantadora e edificante apologia da divina virtude, quer dizer muito eloquentemente: Fora da caridade não há salvação.

Sim! Sabia muito bem o apóstolo que a caridade, ao contrário da sabedoria, está ao alcance de todo o mundo, do ignorante e do sábio, do rico e do pobre, porque é independente de toda crença particular. Sabia muito bem que "nenhum homem é condenado por não saber, mas sim por deixar de sentir; porque, o livro da sabedoria é um livro geralmente fechado; mas o livro do sentimento é universalmente aberto. Não é dado a todos possuir os segredos da ciência, mas sim as doçuras do sentimento, cujos tesouros estão à vista de todas as criaturas, disseminados no universo pela mão da misericordiosa Providencia. O sentimento é tudo, e por isso ele está ao alcance de todos. O sentimento é o amor, e o amor é a lei. O amor cobre a multidão dos pecados, porque é a chama que purifica e o bálsamo que consola. O que ama, pratica exclusivamente o bem, que é a reparação do mal, e a felicidade será o prêmio das suas obras amorosas”. Assim o disse Jesus, nessa passagem registada pelo primeiro evangelista, o apóstolo Mateus, e repetida a lição pelo grande Paulo, nessa linda joia da literatura cristã. E o ardoroso apologista da caridade falou também aos seus irmãos da cidade de Roma: "Porque estes mandamentos de Deus: "não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, não cobiçarás, e, se há algum outro mandamento, todos eles veem a resumir-se nesta palavra: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor do próximo não obra mal. Logo, a caridade é o cumprimento da lei" (sim, dessa lei de Cristo, que resume todos os mandamentos: amarás o teu próximo como a ti mesmo). (Rom. XIII, 9, 10).

Fora da caridade não há salvação. Tal o Evangelho sumariado pelo grande Paulo, tal o Evangelho resumido pelo Mestre na exemplificação especificada no cap. XXV de Mateus. E o doutrinador dos gentios apreendeu magistral e magnificamente o pensamento de Jesus, naquele discurso acerca dos heroísmos provocados pela caridade, virtude que sobrexcede a todas as virtudes - diz Paulo -, pois que é ela, que cumpre a lei de Cristo, lei sancionada no alto da cruz como selo da própria vida. No citado capitulo XXV do primeiro Evangelho e no capo XIII da primeira carta aos Coríntios, está o fundamento básico da doutrina do Filho do Homem. Ali estão as pedras angulares ou “pedras de esquina” de todo o edifício doutrinário do Cristianismo.

Se faltasse alguma teoria acerca de “reconciliação” ou “justificação”, de “propiciação” ou “predestinação”, Jesus e seu ilustre “Vaso Escolhido” teriam sanado a falta.

A seguir, encontrará o leitor as exemplificações que emergem da Palavra Divina, exemplificações, dizemos, e dizemos bem, porque é no transcurso da vida do Filho de Deus, nos três anos do seu missionarismo, que vamos colher as mais belas e perfumosas flores da Espiritualidade que nós não sabemos definir mas sabemos agora o que vale, o que significa e como se revela.

 15. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

             PORQUE "FILHO DO HOMEM"?

Antes, porém, dos casos que concretizam o método da “salvação” das criaturas, queremos por diante dos olhos do leitor o magnífico quadro do Doutor da Sorbonne, onde fulge a figura do Filho do homem. Nem todos sabem medir a altura e a profundidade e a extensão dessas três palavras. Nem nós o sabíamos, como era mister. Como ligeira preparação do espírito do leitor, seja-nos lícito dizer duas palavras sobre o autor dessa descrição. É um teólogo, não no sentido vulgar do vocábulo. É um doutor de verdade, filho da culta França. É Mélinge. Eis a diretiva mental do brilhante escritor:

A missão do clero não é impor a sua autoridade. (“A ninguém chameis mestre; um único é o vosso mestre, o Cristo.”). A missão do clero é instruir-se cada vez melhor e devotar-se cada vez mais. (“Aquele dentre vós que quiser ser o primeiro faça-se o servo de todos.”). O clero desceu a encosta dos arrastamentos humanos; cumpre-lhe subir por onde desceu. Transformar-se ou perecer, tal o dilema que o progresso da liberdade e da ciência impõe a todas as igrejas e, em primeiro lugar, à igreja romana que, sendo a mais poderosa, tem maiores responsabilidades.

O verbo inflamado de Mélinge conduz-nos a deslumbramento quase igual àquele que Pedro, Tiago e João experimentaram no monte Tabor, quando viram Jesus transfigurado em Luz. É que Jesus não pode ser impunemente fotografado. E quando um artífice do pensamento ousa focar lhe os traços morais, sente o que sentiu Saulo na estrada de Damasco, e cai em exaltação mental para subir às regiões da Luz, de onde pode ver o que é este mundo e o que são os homens. E Mélinge caiu, e subiu, para aprender, como aprendeu, que é grande demais esse Amor que por aqui passou, para ser descrito pela linguagem da Terra... Mas, na expressão da sua palavra inspirada como a de Paulo, o apóstolo francês sabe falar às almas porque sabe sentir como alma cristã. Eis por que, congregou, eletrizou e arrebatou auditórios vastíssimos, para repartir com eles esses tesouros de vida e de amor que soube fruir sozinho no coração do Evangelho.

Membro do sacerdotalismo romano, não era um submisso ao cesarismo teológico de Roma, porque “tinha olhos de ver” e via o desvirtuamento do Cristianismo na boca do clero e, sobretudo, na conduta do Vaticano.

Nas 420 páginas do seu soberbo trabalho, "O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários", traça magistralmente a biografia do Evangelho, interpreta fidelissimamente o pensamento que anima essas páginas sagradas. Fustigado pelo anseio de ser fiel elucidador da palavra divina, vai, ele próprio, aos originais gregos, de onde traduz as Epístolas do apóstolo Paulo, para estudá-las a fundo, como o fez. Submeteu-as a uma análise psicológica e, como analisar é decompor, ele decompôs a estrutura toda dessa maravilhosa obra de Paulo, auscultou lhe as pulsações de fé, de amor, de castidade espiritual, para concluir, como concluiu, que Paulo foi o maior dos apóstolos – “mas, apóstolo as avessas dos Apóstolos (diz) apóstolo do Universalismo, não do sectarismo; apóstolo da liberdade cristã, não da lei mosaica”.
           
Nessas quatro centenas de páginas, sente-se a vibração da alma do Padre Mélinge ou Padre Alta, Doutor da Sorbonne, alma profundamente cristã, que suportou com a mansuetude do verdadeiro discípulo do Cristo, toda sorte de perseguição das altas dignidades da Igreja, que não podiam tolerar tamanha santidade e tamanho talento no círculo estreito e sem prestígio do clero em decadência,

A magnífica obra "O Cristianismo do Cristo e o dos seus- vigários", foi vertida em português, num trabalho primoroso, graças à encantadora pena do eminente polígrafo e poliglota patrício, Dr. Luiz Olympio Guillon Ribeiro.

Fala Mélinge, numa descrição que emociona:

“Conforme a denominação que ele a si próprio deu e conforme o haviam anunciado os profetas, o Cristo não era somente o Messias dos Judeus, mas o Messias universal. Não era o “Filho de David”, encarregado por Deus de reerguer o trono do rei dos Judeus, a benefício deles, Era “o Filho do Homem”, encarnação total da natureza humana, com isenção do pecado; era a personificação, uma vez por todas realizada, de todas as glórias espirituais, de todas as belezas ideais, de todas as nobrezas do coração e de todas as bondades da alma; mas, também, de todas as humilhações, de todas as angústias, de todos os sofrimentos que podem torturar, sem a desonrarem, a Humanidade na superfície da terra.

“Refere o Talmud (livro que contém a lei e tradições judaicas) que Rabba, assistindo à agonia de Rab Nachman, lhe disse: “Mestre, eu quisera que me aparecesses depois de tua morte!" Rab Nachman lhe apareceu e Rabba lhe perguntou: "Sofreste muito?" –“Não mais do que sofre um cabelo que é retirado de uma xícara de leite!" respondeu Rab Nachman (“A Bíblia, o Talmude, o Evangelho”, pág. 369).

“Desejo-vos a todos, minhas Senhoras e meus Senhores, um fim tão suave quanto esse. Mas, confesso que admiro muitíssimo mais, chegando até à adoração, o agonizante do jardim de Getsêmani, esse crucificado do Gólgota, que é nosso Cristo Jesus.

“Não o vedes, abandonado, traído, renegado por aqueles a quem tanto amara e continua a amar com um amor que é devotamente absoluto? Ele as vê, aquelas traições, aquelas covardias, aquelas renegações. Qual dilúvio de lama, quais ondas de salsugem (sal nas águas do mar), ele vê, precipitando-se sobre a sua pessoa, em horrenda tempestade, todos os pecados, todos os crimes, todas as vergonhas, de todos os tempos, de todos os homens, da criação inteira: “Meus Deus, se é possível, passe longe de mim este cálice.” Não! Não é possível! É preciso que o bebas! Tu és o Homem; tu és a Humanidade e a criação resumida exclusivamente em ti: sofre, sofre mais! Cai ao chão banhado do suor de teu sangue! Sofre oh! Jesus: tu és eu; tu és todos nós que não vemos as nossas faltas, que não as queremos ver. É preciso que tu as vejas, tu; que elas te conspurquem, como se foram tuas! Chora sobre nós, que não sabemos chorar. Sofre por nós, que não sabemos sofrer. Deixa-te calcar aos pés na vergonha, para expiar o orgulho humano. Cai, cai, pobre corpo dolorido, para expiar a queda de todas as almas!

“Agora, levanta-te, Cristo Jesus! Teus amigos pensaram em ti! Aqui está o teu amigo Judas, que te vem oscular. Ali estão, conduzidos por ele, os que mais tarde se dirão teus soldados, os Romanos. Deixa-te trair pelo teu eleito; deixa-te atar pela tua coorte romana! Recebe o beijo do traidor, tu a quem nunca mais ninguém beijou depois de tua mãe! Em seguida, vai fazer-te excomungar pelo representante oficial da Religião, o Soberano Pontífice. Deixa-te condenar pelo representante oficial da Autoridade, o vigário de Cesar. Vai! recebe os insultos, recebe as bofetadas, recebe as varadas... Está bem! És agora o verdadeiro rei da Humanidade, que somos nós, com a tua coroa de espinhos e as tuas vestes irrisórias. Leva a tua cruz, Filho do Homem, para que os homens, aos quais tão ternamente amas, te mostrem como é que eles amam.

"Pronto! pregaram-te à tua cruz:

“-Tenho sede!” Bradas, adorável sedento de amor. Bebe a tizana (beberagem) de amor que os homens sabem servir:

É fel!
*

“Do alto do seu patíbulo, o seu corpo mais pesado se torna, estira lhe para baixo os braços em farrapos,

“Do alto do seu patíbulo, o seu corpo mais pesado se torna, estira lhe para baixo os braços em farrapos, pesa lhe sobre os pés cravados e os despedaça... E ele escuta os sarcasmos, com os uivos de ódio, pelos olvidados benefícios que a todos prodigalizou. É a justiça terrena; é o reconhecimento humano...

“Mais belo, de uma beleza mais tocante do que na glória do Tabor, ele sorri afetuosamente para os que o insultam. Depois, elevando os olhos para o céu, exclama: “Pai, perdoa-lhes; eles não sabem o que fazem!”

“Não! Não sabem! E quando o saberão?

“Algumas mulheres e um mancebo lá estão, no entanto a chorar. E um soldado da guarda diz: “Este homem era verdadeiramente Filho de Deus!”... Oh! Sim! Sim! encarnação divina de sobre humana coragem, de dolorosa beleza, de bondade infinita: Jesus, Messias de Deus, Nosso Senhor!"

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