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terça-feira, 5 de novembro de 2019

Salvação pela fé ou pelas obras? - parte 4



16. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

A fé e as boas-obras do ladrão na cruz

AS BOAS-OBRAS ABRIRAM 
A PORTA DO PARAISO

Palestra realizada em São João da
Boa Vista e também ao microfone da
Radio Educadora Paulista
e Radio Piratininga (24-2-1939 e 19-9-1940).

O assunto desta noite é de relevância para quem crê na autoridade do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Cabe-me imensa satisfação em apresentar-vos o modesto estudo por mim feito, de acordo com a exegese bíblica, e essa exegese quer dizer simplesmente interpretação gramatical e histórica dos textos sagrados.

Antes de esflorar o assunto, seja-me permitido um pequeno parêntese, para vos dizer a origem do tema desta minha palavra.

Há dois anos, Pedro de Camargo (o apreciadíssimo orador e escritor, conhecido também pelo pseudônimo de Vinícius) e eu, estivemos na encantadora cidade de São João da Boa Vista, a convite do infatigável pregoeiro da Verdade, nosso companheiro de ideal cristão, José Peres Castelhano, conhecido jornalista residente naquela localidade, onde dirige o seu belo órgão de imprensa, "Alvorada", muito apreciado na zona.

Era para realizarmos três palestras evangélicas, cada um, na sede da conhecida “Sociedade de Estudos Espíritas João Batista”.

Combinamos - os dois Camargo -, como amigos e primos, que não levaríamos da Capital nenhum tema desenvolvido. Deveríamos fixar o assunto de cada palestra, meia hora antes de nos dirigirmos para o local respectivo.    

Fomos agradavelmente advertidos de que seríamos ouvidos por numeroso auditório da culta cidade, máxime por distintos elementos da Igreja Presbiteriana local.

De fato: o vasto, novo e lindo salão de conferências esteve literalmente cheio, nas três noites. Centenas de pessoas de todas as categorias sociais. Cerca de vinte representantes da comunidade presbiteriana, inclusive o respectivo pastor (na primeira noite).

Nós, os oradores, falaríamos em dois períodos, um em seguida ao outro. Trinta minutos para cada um. Preferi falar em primeiro lugar, para que, em seguimento e sulcando as mesmas águas do Oceano do Evangelho falasse por último e para encerrar a sessão, o sempre inspirado Vinícius, que completaria a minha alocução.

- Meia hora antes, recebi a intuição de que devia focalizar o drama do Calvário, notadamente o papel desempenhado pelo ladrão crucificado à direita de Jesus. Tal o tema que me coube, e que desceu das alturas: “A fé e as boas obras do ladrão na cruz”.

Manda quem pode, e obedece quem deve: tal a sentença que tilintou aos meus ouvidos. E obedeci.

Pois bem. Em seguida ao meu palavreado, o meu muito querido Vinícius, também baseado só no Evangelho, falou sobre a “predestinação divina e a unidade do destino”. Era o tema, derivado do primeiro, que me coubera.

Vinícius produziu uma peça oratória que eletrizou e arrebatou o auditório nas asas de eloquência iluminadora, porque firmada na argumentação bíblica e na solidez granítica das conclusões lógicas, racionais, da unidade do destino, do único que o Pai dá a todos os seus filhos: o da perfeição, após e mediante a ininterrupta caminhada por toda a fieira evolucionária, no tempo e no espaço -, ou através dos séculos e do estágio nessas numerosas moradas da casa do Pai (João, XIV, 2).

A palavra fluente, edificante e cheia de fé de Pedro de Camargo, produziu grande, profunda e marcante impressão no espírito do atento auditório. O Evangelho despertou grande admiração e grandes simpatias no meio das centenas de pessoas que, pela primeira vez, ouviam a interpretação fulgurante e fiel, dada à palavra do "manso e humilde de coração" (Mt. XI, 29), no que diz respeito à unidade do destino.

Dada a origem modesta e despretensiosa do tema desta noite, convido-vos, meus benévolos ouvintes, a que meditemos juntos sobre o instrutivo passo evangélico.

Não ignoramos que o método de salvação ensinado e adotado por Jesus, era simples e sem as complicações muito próprias dos métodos de origem humana. Basta-nos ouvir o que nos dizem os redatores do Novo Testamento.

Certa vez um doutor da lei perguntou ao Mestre: “Que hei de eu fazer para entrar na posse da vida eterna”?

Como o interpelante era homem da lei de Moisés, respondeu Jesus com esta pergunta: "Que é o que está escrito na lei? Como lês tu?"

Responde o doutor da lei: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. E Jesus lhe disse: “Respondeste bem; faze isto, e viverás.”

Eis aí, meus prezados ouvintes, o método de salvação adotado pelo Mestre. Viu Jesus que esse doutor conhecia as palavras da lei mas não conhecia o espírito que vivificava essas palavras, e como Mestre paciente que era, Jesus diz apenas: Faze isso, e viverás. Isto é: ama a Deus e a teu próximo, e ganharás a vida em meu reino pois o caminho que vai ao meu reino é exatamente esse, o do amor; se fizeres isso, não precisarás de nada mais” nem de observância de sábados, nem de ritualismos que tu e teus correligionários observais.

Mas, esse doutor da lei era li-te-ra-Iís-ta, sabia de cor os dois mandamentos máximos da lei, mas não sabia quem era o seu próximo, porque a sua crença, o seu devocionismo, estava no cérebro e não no coração, estava na exterioridade da crença e não na objetividade da conduta. E tanto era verdade, que, retrucando, pergunta ele a Jesus: “E quem é o meu próximo?”

Nesta altura, o Mestre dos mestres vai simplificar ainda mais o seu método, apontando o exemplo colhido nas boas obras de um samaritano, que não sabia a lei nem decorara os mandamentos, mas sabia que era mal olhado e até excomungado pelos doutores da lei...

Pois Jesus lhe conta a história do homem espancado e roubado na estrada por terríveis salteadores que, por fim, deixaram a pobre vítima semimorta à margem do caminho; que passaram por ali, dois representantes do sacerdotalismo judaico, cada um por sua vez, e não ligaram atenção ao pobre homem, ao passo que um samaritano, aproximando-se, encheu-se de íntima compaixão e prestou toda assistência ao homem ferido.

Contada que foi essa pequena história, pergunta Jesus ao doutor da lei: qual destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? Respondeu logo o doutor: “aquele que usou com o tal de misericórdia." Concluindo, disse Jesus ao seu interpelante: “Pois vai, e faze tu o mesmo” ou, pratica boas obras também.

Esse caso ilustrativo apresentado por Jesus a um dos condutores da consciência religiosa do povo israelita, resolveu imediatamente as dúvidas que voejavam no espírito do eminente teólogo, acerca das condições para alcançar o caminho da espiritualidade, ao mesmo tempo que demonstrou a inutilidade da observância de ritualismo e liturgias como se verificava no culto religioso dos judeus. Ainda que elevado ás culminâncias do sacerdotalismo, esse doutor da lei estava em nível moral e espiritual muito abaixo do bom samaritano.

Vejamos agora a aplicação do método salvativo em um outro caso narrado no Evangelho. É o caso do ladrão e criminoso.

Relatam os evangelistas, especialmente Mateus, Marcos e Lucas, que Jesus foi crucificado juntamente com dois ladrões, um à sua direita e outro à sua esquerda. Descrevendo, ainda que resumidamente, o inominável crime contra o imaculado Filho de Deus, referem-se aos insultos, á zombaria, aos impropérios lançados à face do Inocente, pelas autoridades, pelos escribas, pelos anciões, que diziam: “Ele salvou outros, a si mesmo não se pode salvar; se é Rei de Israel, desça agora da cruz, e creremos nele.” E os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que haviam sido crucificados com Ele." (Mat., XXVII, 38 a 44).
             
Fixemos os olhos, prezados ouvintes, nesse quadro esplendente de luz e de beleza, luz e beleza, reflexos da doutrina do Mestre.

Conta-nos o Evangelho que os dois ladrões fizeram coro com os inimigos de Jesus, insultando-o. Eis que, repentinamente, cala-se o ladrão da direita, a quem a tradição deu o nome de Dimas. Não proferiu mais nenhuma palavra ofensiva contra Jesus. O outro - seja ele chamado Gestas -, continuou a tomar parte na orquestra infernal dos impropérios, dizendo por sua vez: "Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também." Mas o outro, repreendendo-o, disse:

"Nem ao menos temes a Deus, estando debaixo da mesma condenação? Nós certamente com justiça, porque recebemos o castigo que merecem as nossas obras; mas este nenhum mal fez. E disse: Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. Ele lhe respondeu: “Em verdade te digo que hoje serás comigo no paraíso.”

Esse, meus distintos ouvintes, o episódio empolgante, sublime, patético, a encerrar a última página da vida do Mestre de todos os mestres! Meditemos nas lições que a Sabedoria Infinita faz brilhar aí. Procuremos sentir o fogo daquele amor que incendiou o coração do malfeitor arrependido, ali na cruz.
           
*

Dimas, o ladrão crucificado à direita, num exame introspectivo, num rigoroso balanço em sua vida semeada de erros e de crimes, reconhece justíssima a penalidade que lhe foi aplicada e ao companheiro; a justiça humana, ainda que imperfeita em suas decisões e sempre injuriada pelos criminosos, é acatada naquele momento. Sentindo os impulsos da verdade e da justiça reconhece a monstruosa injustiça no julgamento e na condenação de Jesus. Fazendo o confronto de vidas, rapidamente avança com o pensamento e dá o primeiro passo no caminho das reparações, e procura ao mesmo tempo despertar a consciência entorpecida de seu companheiro de desregramentos. E fala: “Nem ao menos temes a Deus, estando debaixo da mesma condenação?”

É que os ouvidos de Dimas não mais podiam suportar as marteladas da impiedade de seu companheiro! Penalizara-se diante da cegueira espiritual de Gestas, ele, Dimas, que, momentos antes, também padecera dessa cegueira!

Poderei, prezados ouvintes, tentar uma reconstrução desse passo evangélico, colocando-me na posição de Dimas. E então teria sido assim o episódio:

“Ó meu companheiro de crimes! Nós, ambos, somos criminosos, e nada podemos dizer contra a justiça que nos mandou para este madeiro, porque merecemos esta condenação. Reconhece isto, e já! Desperta a tua consciência, ou antes, procura ouvir a tua consciência, que é testemunha silenciosa de teus atos e pensamentos; escuta lhe a voz e ela te dará o conhecimento íntimo de ti próprio e do que te rodeia. Ela te dirá que és criminoso como eu! Reconhece, porém, que esse que aí está entre nós dois, é um Justo, é um Inocente, é uma vítima da ingratidão, da maldade, da injustiça desse tribunal que o julgou e dessa multidão de assassinos! Vamos, meu companheiro, acorda do sono da morte e proclama esta verdade: Jesus é inocente e nós somos criminosos!

Que importa que Ele tenha sido traído por um, negado por outro, e abandonado pelos demais apóstolos e discípulos? Que importa que Ele tenha por epílogo de sua vida de pureza, de santidade, de renúncia e de amor, o abandono de todos e tenha como seu único advogado um ladrão? Ó companheiro de trevas, aceita, como eu aceito, a realeza espiritual desse Justo, e sentirás o que já estou sentindo neste momento: o deslumbramento ante as claridades desse Reino de Justiça, e de Paz, e de Amor!"

E não consta, prezados ouvintes, que o companheiro de Dimas houvesse repetido aqueles impropérios. Ter-se-ia arrependido? Jesus o sabe, como soube que Dimas não possuía fé como sinônimo de opinião religiosa, mas que praticou duas obras meritórias, duas boas-obras. Vejamo-las.

1ª obra: arrependendo-se da sua vida pecaminosa, graças à influência santificante de Jesus, ali, ao seu lado, não ficou calado egoisticamente, mas, ao contrário, sem temer a multidão fanatizada e enfurecida, procurou levar o seu companheiro pelo mesmo caminho do arrependimento, ao mesmo tempo que o exortou a reconhecer o Cristo como Senhor do Reino Espiritual (Aquele que fizer converter a um pecador do erro do seu descaminho, salvará a sua alma da morte e cobrirá a multidão dos pecados.) (Tiago, V. 20).

2ª obra: pregado na cruz, sem liberdade de movimento, não tinha, porém, presa a língua, como" já dera prova; e, sem temer o furor ou outros castigos da populaça e das autoridades ali presentes, proclamou e profligou o grande crime que cometiam na condenação de um inocente, ao mesmo tempo que reconhecia a realeza messiânica de Jesus. Assim procedendo, Dimas acusou a todos os algozes como injustos e assassinos, inclusive os membros do sinédrio ou Supremo Tribunal Eclesiástico dos judeus.

Nessa proclamação, da inocência de Jesus e da criminalidade daquela multidão, Dimas revelou as vibrações intensas de amor e de justiça que sentia em sua alma, e essas vibrações se tornaram conhecidas através da sua palavra destemerosa e cortante, e a palavra é sempre o instrumento da ideia, o veículo do pensamento! A palavra de Dimas foi uma estridente clarinada ao ouvido do outro malfeitor e também ao ouvido da turba enfurecida! E essa clarinada era um apelo, um convite, uma súplica ao arrependimento pelo inqualificável crime cometido coletivamente contra o Filho de Deus e Redentor da humanidade!

A fé desse criminoso revelou-se robusta, corajosa e encorajadora, através dessas duas boas obras, que espelharam, nitidamente o sentimento de justiça e de amor; de justiça para consigo mesmo e para com seu companheiro de maleficência; de amor à vítima inocente, a quem reconheceu como o verdadeiro Messias, cuja realeza espiritual reconheceu imediatamente, ao ponto de implorar o seu ingresso no Reino da Espiritualidade: “Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino!”


17. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941


Hoje serás comigo no paraíso

Pronunciada, em continuação, aos mesmos microfones (3.3.1939 e 26.9.1940).

NÃO À MORADA DE DEUS

Estas palavras do Mestre foram proferidas após a boa-obra de Dimas repreendendo o outro ladrão ou Gestas, para despertar-lhe a consciência insensibilizada. Esta boa obra encerra lições de alta significação educativa, tais os resultados ou consequências que devia ter provocado. Sim. Lembremo-nos, distintos ouvintes, de que estavam ali presentes, ao pé da cruz, muitas dezenas de consciências semelhantes à de Gestas.

Ladrão é aquele que se apodera do alheio, ou que gasta e estraga o que não é seu. Homicida é aquele que produziu a morte de alguém. É o que significam os vocábulos “ladrão”, “homicida”, segundo o nosso idioma e os nossos dicionários.

Um homem pode tornar-se ladrão ou homicida por atos ou por pensamento. O homem que furta uma peça de seda é menos ladrão que o juiz iníquo que venaliza as funções de sua judicatura, mandando pôr nas mãos do esperto endinheirado e dos intermediários os bens ou a única fortuna do mais fraco, bem como das viúvas e dos órfãos; o primeiro, pode ser um embotado ou insensível, sem consciência da enormidade da sua falta, ao passo que o magistrado iníquo tem conhecimento do mal a praticar e o pratica conscientemente, deliberadamente, calculadamente; aquele que com o punhal ou com o revólver tira a vida de seu semelhante, não é mais homicida que o caluniador que lança a desonra num lar, causando a morte moral de uma família, expondo-a ainda ao veneno da maledicência da sociedade em que vive.

Consequentemente, só de se dizer que, tão criminoso quanto o ladrão das coisas alheias é o homem que veste a toga de juiz para condenar o inocente e proteger o usurpador, o avarento, o devorador da casa das viúvas e dos órfãos. Semelhantes a estas consciências eram as consciências diante das quais falara Dimas, o ladrão arrependido. Gritam contra essas injustiças todas as agravantes, porque a vida moral não é inferior à vida física, mas, ao contrário, é mais preciosa porque imperecível, pois que a vida moral é a própria vida espiritual, a vida da alma, e a alma é imortal. A excelsitude desta verdade encontramo-la na moral evangélica.

          Disse um grande moralista lá do famoso Oriente berço de todas as grandes religiões e das grandes verdades morais -, que o homem não deve bater numa mulher nem mesmo com uma flor.

Pois o Autor da moral do Evangelho vai muito mais longe com o seu ensino na escola do sentimento. Disse Ele que o homem não deve ofender os seus semelhantes nem mesmo com o pensamento. Assim, torna-se réu de julgamento (no tribunal da própria consciência) aquele que diz a seu irmão: “raca” termo este altamente depreciativo, derivado do caldeu "réka" e que significa literalmente “vazio”, “insignificante”. Isso, na ofensa a um irmão. E Jesus indicou o complemento, nesta sentença de sublimada delicadeza: “Ouvistes o que foi dito ao antigos (isto é, na lei de Moisés): “Não adulterarás." Eu porém vos digo que todo homem que olhar para uma mulher, cobiçando-a, já no seu coração cometeu adultério.”

Eis aí o alicerce para a construção moral de todas as criaturas em todos os séculos. E esse alicerce foi visualizado ali na cruz pelo malfeitor arrependido, o bom ladrão ou Dimas, cuja consciência não se fez insensível à influência santificante do Mestre ali também pregado como se fora malfeitor.

Dominado pelas vibrações do sentimento de justiça, Dimas teve olhos de ver e ouvidos de ouvir, e começou a ver e a considerar as coisas de maneira diferente, a começar do julgamento de si próprio, e com todo o rigor: “Nossa condenação ao madeiro é justa, disse ele a Gestas, porque nossas obras não podiam merecer outra penalidade."

Oh! Quanta meditação, quanto ensino, quanta sabedoria encerra essa frase do malfeitor arrependido, agora transformado em juiz, e juiz em causa própria! Boa justiça é aquela que começa pela nossa casa, diz o provérbio popular.

Meditemos por alguns instantes, meus prezados ouvintes, diante dessa figura que tem o seu nome registrado ao lado do nome de Jesus!

Dimas, ainda minutos antes, estava mergulhado na cegueira espiritual -, e ei-lo transfigurado pelos primeiros clarões da espiritualidade! Imensa, a influência exercida em seu espírito pela aproximação do Rabino da Galileia! Já antevia o panorama da realidade desenhado no Além... Sacudido pelas vibrações do amor que antes desconhecia, ei-lo a contemplar a sua própria fotografia moral na face moral do companheiro pregado à esquerda de Cristo!

E avança no caminho do dever, agora obrigação indeclinável, procurando repartir com seu outrora companheiro de criminosas aventuras, as primeiras noções de justiça: apela para a consciência de Gestas, no sentido de levá-lo a um exame íntimo, a um exame introspectivo, a fim de reconhecer-se criminoso e muito merecedor do castigo na cruz. Este passo é a primeira obra de amor, a primeira obra de fraternidade e que pode ser vestida com a roupagem evangélica: desejar ao próximo aquilo que, invertidos os papéis, desejaria para si: “Tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também vós a eles, porque esta é a lei, e os profetas" (Mt. VII, 12).

Eis aí a grande e primeira obra, a boa-obra, fruto do verdadeiro amor.

Sabemos que, obra, não significa somente o produto da inteligência pela intermediação dos músculos da mão que empunha a caneta, o bisturi, o formão, a enxada, a sovela, a picareta, a trolha, o machado, o pincel. Obra é o resultado de uma atividade, e atividade quer dizer ação, e esta pode ser de forma material ou imaterial, mas sempre produzida pela inteligência e pela vontade. Uma palavra é uma obra, boa ou má; o médico que encoraja com sua palavra o doente abatido, pratica boa obra; aquele que, com bons conselhos, desvia um amigo da prática de um crime, pratica boa obra; a esposa que, com sua palavra encorajadora, apela para a razão do marido desempregado e que teme o fantasma da miséria, pensando no suicídio como solução para os problemas domésticos - e o convence do grande crime da covardia - essa esposa pratica uma boa obra; os pais que, com palavras endossadas pela autoridade do amor, conduzem os filhos na escola da moralidade, e os levam ao bom caminho, praticam boa, excelente obra. E assim por diante; toda palavra que orienta, que conduz, que desperta, que encoraja, que reanima, que reabilita, etc., é. boa-obra.

Se eu profiro uma calúnia ou uma simples mentira, pratico uma obra má, que pode gerar uma ou muitas obras da mesma natureza. Tudo isso é coisa muito bem sabida.

E o bom ladrão praticou boa-obra, excelente obra, batendo á porta da consciência de seu companheiro. Foi a primeira obra. A segunda obra, ou a segunda boa-obra, foi esta: levar o outro condenado a sentir esta grande verdade: que o Filho de Deus ali pregado era um Justo, um Inocente, um Imaculado, pois que momentos antes, havia suplicado ao Pai: “perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem!” - Esta, a boa-obra produzida pelo sentimento de justiça.

Conquistado o companheiro pela convicção destas duas grandes verdades, eis que era fatal porque inevitável, a explosão fulminadora de uma terceira verdade ou terceira obra, mais uma boa-obra praticada por Dimas e provavelmente aprovada por Gestas, e que era esta: a confissão da criminalidade daquela grande multidão! Esta terceira obra de Dimas assume importância excepcional! Fixemos, meus amigos, os olhos de nossa alma nesse quadro tão cheio de deslumbramentos! Transportemo-nos ao monte Calvário e ali veremos três cruzes, três supliciados. Ao centro, a cruz suportando o corpo do Imaculado; alguns metros à direita, outra cruz, com o corpo de Dimas ; outros tantos metros à esquerda, outra cruz, trazendo mais um ladrão e malfeitor como Dimas. Era Gestas.

Muitos metros mediavam entre as cruzes da direita e da esquerda, ou entre Gestas e Dimas. O vozerio da populaça era grande. Crescia de momento a momento o alarido das vozes tumultuárias, dos insultos, das blasfêmias, dos impropérios. Nesse momento ruidoso, para que Gestas pudesse ouvir e entender quaisquer palavras de Dimas, era preciso que este as proferisse bem alto, a plenos pulmões, superando o ruído da turba fanatizada, a cuja frente estavam os fariseus, os escribas, os levitas, os soldados e o comandante romano, e a plebe.

Explodira então ao ouvido de Gestas e de toda a multidão, a palavra inflamada de justiça e de amor do outro criminoso, nestes termos: “Mas, este, o Cristo, nenhum mal fez.”

Eis aí, meus benévolos ouvintes, a defesa brilhante, magistral, produzida por Dimas, a favor de um companheiro sujeito à mesma condenação, mas que tinha por si todas as dirimentes, porque era um inocente, um Justo, sem mácula! A explosão dessa verdade devia ter ecoado com o estrondo do raio naquelas consciências envilecidas. Sim! Essa vibrante proclamação da inocência de Jesus era, ao mesmo tempo terrível libelo acusatório contra toda a multidão. Na defesa do Justo e na acusação dos culpados, refulgia o apelo do ladrão arrependido a todas as consciências culpadas, para que também se arrependessem e procurassem reparar a monstruosa falta que cometiam. Era o Evangelho pregado por um ladrão...

E, assim, aquelas dezenas de olhos e de ouvidos ali ao pé da cruz, foram castigados pelo advogado de Jesus, não com os golpes do insulto ou do impropério, mas com aqueles açoites de luz e de amor!

Sim! De um coração contrito e já aquecido pelo fogo do amor, não era possível brotar senão essas flores, orvalhadas pelo Grande Amor ali encarnado e que instantes depois encerrou a sua escola diante do mundo, com o mesmo Evangelho, cujo último capítulo foi este: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem!”

*

Cônscio de que tinha grandes dívidas a saldar no outro Lado da Vida -, Dimas apela para quem ele sabia possuir todo poder: “Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino!”

“Sim, Mestre, de olhos abertos, agora sei quem tu és! Quando regressares ao teu reino, esse Reino da Paz, da Luz, da Justiça, do Amor, lembra-te deste estropiado que agora sabe medir a altura e a extensão de seus crimes! Lembra-te deste teu irmãozinho que já sente o refrigério da justiça a lenir as dores do arrependimento pelos insultos que te atirou ainda a pouco. Tu disseste aos homens: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim”. Disseste mais: “Aquele que me confessar diante dos homens, eu também o confessarei diante de meu Pai que está no céu; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai que está no céu.”

Oh, Senhor! Tenho confiança nessa promessa que fazes a todos os pecadores como eu. E é por assim confiar, que eu te peço: confirma, Senhor, diante do Pai Celestial, aquelas verdades que eu confessei há poucos minutos diante dos teus inimigos! Disseste mais, Senhor, que aqueles que te amarem e te seguirem, conhecerão a verdade e a verdade os tornará livres. Sim, Mestre, livres do poder das trevas, dessas trevas que envolvem esses teus acusadores e julgadores, para os quais, entretanto, invocaste a clemência e o perdão do Pai, porque na sua ignorância é que eles te condenaram. Oh, Mestre! Afirmaste que a Vontade do Pai é que não percas nenhum da raça humana, pois que és o Governador deste planeta. E prometeste ressuscitar todos no último dia. - ou seja regressarem à Pátria espiritual quando cheguem ao último dia da sua jornada na terra. E teus atos, tuas palavras, tua vida, são um exemplo vivo e confirmativo de que és o Salvador da humanidade inteira e não de uma fração, pois que os próprios que te condenaram - os maiores criminosos de todos os tempos - mereceram o fogo do teu amor!”

E assim, prezados ouvintes, o ladrão arrependido poderia ter continuado a discorrer sobre a excelsitude do amor de Cristo, amor sem privilégios porque sem limites.

Apreciemos a lição desse episódio, quanto à ideia feita por Dimas acerca do Reino de Jesus. Devemos não esquecer a situação moral do apresentante dessa lição: um ladrão arrependido.

*
           
Com a iluminação espiritual já adquirida, o bom ladrão não pretendia a beatitude contemplativa, estática, imobilizada, nem mesmo esperava ingressar numa região superior, onde os Espíritos gozam das claridades próprias dessas alturas.

Ele, o Dimas arrependido, já antegozava os esplendores desse Reino que não é deste mundo. E a melhor prova desse fato está na explosão do seu sentimento de amor, na incontida exteriorização do seu sentimento de justiça, ao ponto de se expor a outros castigos ou sevícias pelas autoridades a quem acusara de criminosos. Ora, quem se sente dominado pelo amor e pela justiça - que mais poderia desejar senão que esse estado de alma continuasse, que fosse sempre assim, numa verdadeira eternidade?

O bom ladrão, o nosso caro Dimas, já havia encontrado o caminho da paz. É esse o Reino de Jesus, reino espiritual, reino do Espírito, conforme a profecia pelos lábios de Isaías: “... e Ele se chamará o Príncipe da Paz" (cáp. 9, v. 6).

E Jesus confirmou que assim é, que o Reino de Deus não é lugar, não é região beatífica para alguns mas que é estado de alma, estado de consciência, estado de quem sabe amar, sabe sentir a força atuante da verdade e a força reabilitante e reparadora da justiça. Esse estado espiritual sentiu-o essa criatura que nos dá esta lição. Eis o ensino claro e sem ambiguidade, de Jesus: “O reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores, nem dirão: Ei-lo aqui, ou, ei-lo acolá, porque eis aqui está o reino de Deus dentro de vós” (Lucas, cap. 17, vs. 20 e 21 - tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo).

É esse o paraíso, esse estado de alma, esse Reino Espiritual, em que vivia o Mestre dos mestres. E tanto é verdade que o paraíso não devia ser tomado como um lugar ou região, que Jesus disse ao bom ladrão: “Hoje serás comigo no paraíso.” (Sabido é que o verbo “estar” indica um estado transitório, e o verbo “ser” indica um estado permanente. Exemplos: “João está pálido”, “Pedro é pálido”, “Fulano está doente”, “Beltrano é doente”, “Maria está alegre”, “Nair é alegre”. É fácil distinguir a diferença do sentido entre esses dois verbos).

Mas, para afastar qualquer dúvida que paire no espírito de algum crente no Evangelho, eis que o quarto evangelista, cognominado o discípulo amado, vem cortar a dúvida pela raiz, mostrando e demonstrando que o paraíso não é a morada de Deus.

Descrevendo o grande acontecimento que foi a ressurreição de Jesus, três dias depois da crucificação (notemos hem: três dias depois do “hoje serás comigo no paraíso”) -, o apóstolo diz que Ele, o Cristo, apresentou-se à Maria Madalena e, querendo esta abraçá-lo disse lhe Ele: “Não me toques, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus irmãos, e dize-lhes: Que vou para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.” (João, cap. 20, V. 17).

Eis aí, meus prezados ouvintes, a confirmação de que Jesus não falou, a Dimas, de paraíso como significando a casa do Pai, mas falou daquele estado em que Dimas já se sentia.

Objetará algum crente, com justificada razão: “onde esteve então Jesus, durante esses três dias após sua crucificação?”

Não respondemos nós, mas o apóstolo Pedro, na sua 1ª Epístola, cap. 3, vs, 18 e 20.

Diz ali, esse epistológrafo, que Jesus, depois de crucificado, desceu aos infernos ou mundos inferiores onde foi pregar o Evangelho da Verdade e da Esperança àqueles espíritos metidos no cárcere, na prisão, desde os tempos de Noé, ou há 3.000 anos. É que esses espíritos haviam pago o último centil (Mt. V, v. 26), sem o que não compreenderíamos o motivo da pregação de Jesus a esses encarcerados, pois sabemos que Jesus é o Caminho, e a Verdade e a Vida e só a verdade Ele podia ter pregado àqueles espíritos.

As expressões “cárcere” e “prisão”, significam, também, “encarnação”, pois o homem é um espírito encarnado, um espírito preso ou encarcerado no organismo terrestre. Esses espíritos rebeldes, a que se refere Pedro, receberam de Jesus a carta de alforria, a liberdade para continuarem a sua jornada evolucionária em outra estância, possivelmente a Terra, visto que eles se achavam fora da Terra, encarnados ou desencarnados, na erraticidade, devida à sua prolongada rebeldia.

O apóstolo Paulo dirá o motivo dessa pregação aos mortos, nos infernos ou estados inferiores. Lembremo-nos, meus benévolos ouvintes, de que a palavra “inferno” vem do latim “infernos”, cuja raiz é “infer”, que quer dizer “inferior”. Logo, esses espíritos de que fala o apóstolo Pedro na citada Epístola, achavam-se ou em algum planeta “inferior” à Terra, no “cárcere” ou na “prisão” da carne, encarnados como nós agora ou então não estavam revestidos de “corpo”, mas estavam na situação de “presos” ou “encarcerados” resgatando as suas faltas, em um espaço ou em um mundo “inferior” fora do nosso mundo. Lembremo-nos do “Credo dos Apóstolos”, adotado pelas igrejas cristãs, em o qual se diz ou se confessa que Jesus desceu aos infernos e ressuscitou ao terceiro dia.

“Infernos”, pois, significam “inferiores” isto é mundos inferiores. E assim fica esclarecida e explicada a razão da descida de Jesus para pregar o amor e a verdade aos espíritos que expiavam a sua rebeldia desde o tempo de Noé, durante trinta séculos. Concorda com esta assertiva nossa, a palavra do grande Paulo, que diz, na 1ª Epíst. a Timóteo, cáp. 2, o seguinte: “Deus quer que todos os homens se salvem e que cheguem a ter o conhecimento da verdade.” E, se Deus quer... é porque a sua vontade será feita, queiram ou não queiram os homens. Ora, sendo Jesus a Verdade - como Ele mesmo nos diz (João, XIV, 6,) explicada está a razão, explicando o fim da descida de Jesus ao inferno, para pregar a Verdade, que só ela libertará o homem da cegueira espiritual. 

            É o volume sagrado, pois, que nos ensina que a Verdade não é privativa, não é exclusiva da Terra, mas que a Verdade encarnada desce, como desceu; aos infernos, para realizar a finalidade da obra criadora de Deus que é o aperfeiçoamento pela luz, pelo amor, pela Verdade.

            E, bondosos amigos, se Paulo afirma que a vontade de Deus é que todos os homens se salvem e cheguem a ter o conhecimento da verdade, todos se salvarão e todos chegarão a conhecer a Verdade. O Bom Ladrão aí nos ensina.

            Tal o que aprendemos acerca da natureza do Reino de Jesus, através da vida de criaturas sem as fulgurações das ciências e das filosofias, mas portadoras dos tesouros do sentimento. E assim vemos quão simples era o método adotado por Jesus para a reabilitação ou renovação moral das criaturas.

            Admiramos esse método, compreensível por toda criatura, porque fundado na realização de boas obras, que são a linguagem do coração.

            Aqui, é o caso de Dimas, o ladrão e malfeitor que, nos derradeiros minutos de sua caminhada planetária, converteu sua língua, pouco antes arma da blasfêmia, em verdadeiro instrumento do amor, para abrir os olhos da consciência de seu antigo cúmplice e também para levar ao arrependimento aquelas dezenas de consciências, criminosas por cumplicidade, no maior crime de todos os séculos; ali, é o caso do Bom Samaritano o indesejável entre os judeus, mas apontado por Jesus como verdadeiro filho de Deus, porque semeador de boas obras; acolá, é o publicano Zaqueu, o pecador mal visto e malquisto pelos judeus, como defraudador de seus semelhantes, mas declarado filho de Deus, porque em seu coração o Mestre leu uma linda página de reabilitação moral e de edificação espiritual; mais além, é o centurião romano, nascido e criado no paganismo, na carreira militar, longe de qualquer conhecimento da doutrina cristã, mas possuidor de fé como jamais vira Jesus igual, no meio de todo o povo de Israel; é ainda a mulher samaritana, que não era solteira, nem casada, nem viúva, enxovalhada pelos Judeus, mas que exultou de alegria ao ouvir a palavra reabilitadora de Jesus, e mereceu, por isso, a graça de ouvir a extraordinária profecia acerca do desmoronamento dos dogmas e do culto externo, profecia que se realiza aos olhos de todo o mundo (João, cáp. IV); ainda mais além, é a pecadora Maria Madalena, merecedora da penalidade máxima segundo o juízo dos escribas e fariseus, mas declarada filha de Deus, porque possuía alma e coração que sabiam sentir e amar como o não souberam os filhos do chamado “povo eleito”. E tão profundo e tão elevado foi o amor pela Verdade, que recebeu Madalena, ela só, a gloriosa missão de anunciar aos apóstolos a ressurreição do Mestre!

            E foi assim, com criaturas humildes e obscuras, e até desclassificadas, e mal olhadas pelos condutores da consciência religiosa dos israelitas, que Jesus Nosso Mestre permitiu que se escrevessem as páginas esplendentes da sua vida, para ensinar que o caminho da casa do Pai está aberto, como sempre esteve, mas para alcançá-lo é mister saber amar, não com os lábios mas através das boas-obras, como o fizeram essas criaturas mencionadas na biografia do Filho do carpinteiro.

            Para finalizar, repitamos, meus distintos ouvintes, as palavras que Dimas poderia ter dito quando pelejava por conquistar o coração de Gestas:

            Que importa que Jesus tenha sido traído por um discípulo, negado por outro, e abandonado pelos demais apóstolos? Que importa que Ele tenha por epílogo de sua vida de santidade e de pureza o abandono de todos e tenha como único advogado um ladrão?

            Ó companheiro de trevas, aceita, como eu aceito, a realeza espiritual deste Justo, e sentirás o que já estou sentindo neste momento: o deslumbramento ante as claridades desse Reino de Justiça, de Paz e de Amor! . Livres das trevas espirituais, poderemos continuar na escalada evolucionária, para resgatar o nosso passado tempestuoso. Acredita no que te digo, pois ouviste o que me disse o Mestre: “Hoje serás comigo no paraíso!”

18. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941


O Evangelho das boas-obras
O exemplo de um Publicano
A LIÇÃO DE ZAQUEU

            Primeiramente, algumas notas explicativas ao leitor.

            Não nos esqueçamos de que a Terceira Revelação não veio trazer doutrina diferente da anunciada pelo Cristo, como erroneamente supõem alguns. Veio interpretar e desenvolver o que estava em germe, no Evangelho. Lembremo-nos sempre de que Jesus avisou os seus discípulos e demais ouvintes, de que só mais tarde, no transcurso dos séculos, seriam conhecidas certas verdades contidas veladamente no Evangelho. Não era possível, não era conveniente tirar o véu que ocultava o complemento da sua palavra, devido à incapacidade intelectual não somente do colégio apostólico como da própria época. Lembremo-nos sempre da advertência feita e que poderia ter sido com estas palavras bem claras, bem simples e bem significativas:

            Vós não podeis suportar, agora, as outras verdades que eu tenho para dizer ao mundo. Mais tarde, porém, o Espirito de Verdade, o Consolador, vos esclarecerá com a interpretação e desenvolvimento do meu pensamento encerrado no Evangelho, e vos conduzirá a adquirir outras verdades decorrentes, como desabrochamento que são da semente ora lançada no vosso espírito.”

            Tal devia ter sido o pensamento de Jesus, e tudo indica que assim devemos considerar. "Mas - dir-se-á - porque Deus não revelou aos homens, de princípio, toda a verdade? Resposta: pela mesma razão por que não se ensina à infância o que se ensina aos de idade madura. A revelação limitada foi suficiente a certo período da humanidade, e Deus, a proporciona gradativamente ao progresso e forças do Espírito.

            Perguntamos, por nossa vez: poderiam os discípulos compreender a imensidade do espaço e a pluralidade dos mundos, antes da ciência ter revelado aos homens as forças vivas da natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro papel da Terra e sua formação? Antes da Astronomia descobrir as leis regentes do Universo, poderia compreender que não há alto nem baixo no espaço, que o céu não está acima das nuvens nem limitado pelas estrelas? Poderiam identificar-se com a vida espiritual antes dos progressos da ciência psicológica? Poderiam conceber depois da morte uma vida feliz ou desgraçada, a não ser em lugar circunscrito e sob uma forma material? Não. Compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito vasto para a sua concepção; era: preciso restringi-lo ao seu ponto de vista para alargá-lo mais tarde. Uma revelação parcial tinha sua utilidade, e embora sábia até então, não satisfaria hoje.

            Se o Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é porque julgou conveniente deixar certas verdades na sombra, até que os homens chegassem ao estado de compreendê-las. Como Ele o confessou, o seu ensino era incompleto, pois anunciara a vinda daquele que devia completá-lo; assim, pois, previra que as suas palavras não seriam bem interpretadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; em suma, que se desfaria o que Ele fez, desde que todas as coisas devem ser restabelecidas; ora, só se restabelece aquilo que foi defeito. Por completar o seu ensino deve entender-se no sentido de explicar e desenvolver, e não no de ajuntar verdades novas, porque tudo se encontra no Evangelho em estado de germe, faltando-lhe só a chave para se apanhar o sentido das suas palavras.

            É chegado o tempo da nova ou Terceira Revelação. A primeira Revelação era personificada em Moisés, a segunda no Cristo, a terceira não o é em indivíduo algum; as duas primeiras são individuais, a terceira é coletiva. Ela é coletiva no sentido de não ser feita ou dada como privilégio a pessoa alguma, por consequência, ninguém pode inculcar-se como profeta exclusivo; foi espalhada simultaneamente por sobre a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a mais alta da escala, conforme a predição do profeta Joel e repetida pelo apóstolo Pedro, nestas palavras:

            “Nos últimos tempos, disse o Senhor, derramarei o meu espírito sobre toda carne (ou sobre todas as criaturas); e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos velhos serão instruídos por sonhos, e os vossos mancebos terão visões” (Livro do profeta Joel, cap. 2 vs. 28; livro dos Atos dos Apóstolos, cáp. 2 vs. 17 e 18).

            A Terceira Revelação não proveio de nenhum culto especial, a fim de servir, um dia, a todos, de ponto de reunião. As duas Revelações, de ensino pessoal, foram forçosamente localizadas, isto é, apareceram num só ponto, em torno do qual a ideia se propagou, pouco a pouco; mas foram precisos muitos séculos para que elas atingissem as extremidades do mundo, sem mesmo o invadirem inteiramente. (Note-se que o Cristianismo é professado por 500 milhões de almas, e a população total do globo é mais de quatro vezes maior).

            A Terceira Revelação tem isto de particular: não sendo personificada em um só individuo, surgiu simultaneamente em milhões de pontos diferentes, que se tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se esses centros, os seus raios reúnem-se pouco a pouco, como os círculos formados por uma multidão de pedras lançadas na água, de tal sorte que, em dado tempo, acabam por cobrir toda a superfície do globo. (Este ponto merece a máxima atenção! A eclosão ou derramamento do espirito de que fala Joel, é em todos os continentes da Terra, sem distinção de classes sociais, sem distinção de crenças nem de nacionalidades. Impressionante é o fenômeno, que atrai a atenção de todo mundo, muito especialmente daquelas pessoas que duvidam de tudo e de todos...

19. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941


PORQUE "ESPIRITISMO" E NÃO "ESPIRITUALISMO"?

           
            Responda, ainda, o ilustre educador e médico (*) francês, autor do Livro dos Espíritos ou Filosofia Espiritualista, bem como de mais oito obras.

            (*) Do Blog: Kardec não foi médico! Vide “As mesas girantes e o Espiritismo” Ed. FEB, por Zêus Wantuil.

            “Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue, porém, daí, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas.  

            Como especialidade ou espécie, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade ou gênero, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras Filosofia Espiritualista.”

            Espiritualismo, repetimos, é termo genérico, porque indica o gênero, que abrange tanto o Espiritismo como o Protestantismo, o Catolicismo e o Ortodoxismo Oriental. Espiritismo é termo específico, porque indica a espécie, assim como, Protestantismo também é termo específico, visto que pertence ao gênero “Espiritualismo” mas não à espécie chamada Espiritismo. Todos os espiritas são espiritualistas, mas nem todos os espiritualistas são espíritas.

            Outra explicação, de fundo evangélico, diz mais, ao nosso ver, para significar a razão do nome “Espiritismo”.

            Todas as doutrinas filosóficas e religiosas trazem o nome da individualidade fundadora; dizemos o MOSAISMO (palavra formada do nome Moisés, mais o sufixo ou terminação "ISMO"), o CRISTIANISMO (do nome Cristo, em latim Christus; Christiani, os cristãos, mais o sufixo "ISMO"), e assim por diante, como seja: o Maometismo, o Budismo, o Calvinismo, o Mesmerismo, o Luteranismo, o Comtismo, etc.

            A Terceira Revelação é a voz do Espírito de verdade, prometido por Jesus, e significa, portanto, a voz do Espírito, nome que não designa individualidade alguma; encerra uma ideia geral, que indica ao mesmo tempo o caráter e a fonte da doutrina: que vem trazer à Terra.             

            Acrescentando-se o sufixo "ismo" à palavra Espírito, teremos Espiritismo, doutrina do Espírito de verdade ou Consolador. Ver-se-á que, no vocábulo Espiritismo, não aparece o nome, de indivíduo, mas persistirá sempre o caráter do ensino do Espirito, de acordo com a misericordiosa promessa do Mestre dos mestres.

            Esse Espírito, chamado o Consolador, é, no pensamento de Jesus, a personificação, a corporificação de uma doutrina soberanamente consoladora, cujo inspirador deve ser o Espírito de verdade. Espirito Consolador, enviado por Jesus (portanto, subordinado, obediente a Jesus, e o enviado não pode ser igual mas inferior àquele que o envia; quem manda, tem maior autoridade do que aquele que obedece).

            O Espiritismo é uma doutrina que pode permanecer eternamente com os homens, segundo aquela promessa de Jesus. Não é uma doutrina individual ou uma concepção humana; ninguém pode dizer-se criador dela. É o produto do ensino coletivo dos Espíritos ao qual preside o Espírito de verdade. Este ensino nada suprime do Evangelho: completa-o e elucida-o; por meio de novas leis que revela, juntamente com as da ciência, faz compreender o que era ininteligível, e admitir a possibilidade daquilo que a incredulidade encarava como inadmissível.

            A doutrina de Moisés, incompleta, ficou circunscrita ao povo judeu; a de Jesus, mais completa, derramou-se por toda a parte pelo Cristianismo, mas não converteu o mundo inteiro; o Espiritismo, mais completo ainda, tendo raízes em todas as crenças, converterá a humanidade.

            Pela Terceira Revelação, o homem sabe de onde vem, para onde vai, porque está na Terra, porque sofre temporariamente: ele vê por toda parte a justiça de Deus. Sabe que a alma progride incessantemente através de uma série de existências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que pode aproximá-lo de Deus, conforme o imperativo de Jesus: “Sede vós logo perfeitos, como também vosso Pai Celestial é perfeito.” (Mt. V, 48). Essa perfeição não será conquistada relampeantemente, quando a criatura fechar os olhos para este mundo. É lógico, é racional. Um bandido, um facínora, que viveu matando, depredando, desgraçando, desonrando e espalhando a viuvez e a orfandade, não pode, de um salto, alcançar essa perfeição, a menos que se negue a Justiça de Deus.

            Pela Terceira Revelação, sabe o homem que não há criaturas deserdadas, nem mais favorecidas umas do que outras; que Deus não criou nenhuma privilegiada e dispensada do trabalho imposto às outras para progredir; que não há seres perpetuamente votados ao mal e ao sofrimento; que os designados sob o nome de demônios, são espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que fazem mal no espaço, como faziam na Terra, mas que se adiantarão e se aperfeiçoarão; que os anjos ou espíritos puros não são seres à parte na criação, mas Espíritos que atingiram o fim, depois de terem seguido a fieira do progresso; que, por essa forma, não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes, mas que toda a criação deriva da grande Lei de Unidade regente no Universo e que todos os seres gravitam para um fim comum, que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos a custo de outros, visto serem todo filhos das suas próprias obras. A Terceira Revelação é, em suma, a ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como, de suas relações com o mundo corporal.

            Espiritismo é um vocábulo onde ninguém descobre sombra do nome de alguma pessoa. Vê-se logo, na composição dessa palavra, o elemento terminal "ismo" sufixo este que indica sistema e coordenação, atribuídos ao elemento principal do vocábulo Espirito. Consequentemente, trata-se de uma palavra indicadora de princípios coordenados, sistematizados, de molde a formarem um todo científico ou um corpo de doutrina.

            Longe de ideias sectárias, o Espiritismo significa corpo de doutrina moral, doutrina científica, doutrina espiritual -, ensino, disciplina, regras e diretrizes para a vida do espírito ou alma. E o Evangelho do Mestre é tudo isso, porque é a Ciência do Bem Viver, é a Ciência da Espiritualidade, é o Código do Dever.

            Na velha dispensação ou na época do mosaismo, os profetas anunciavam a renovação ou reabilitação moral do homem, sem as exigências que ainda existem e vigoram em alguns agrupamentos de caráter religioso. No livro do profeta Miqueias, capo VI, versículo 8, está escrito com bastante clareza o seguinte: “Eu te mostrarei, ó homem, o que te é bom, e o é, sem dúvida, que tu obres segundo a justiça, e que ames a misericórdia e que andes solícito com o teu Deus.”

            Eis aí o mesmo ensino dado pelo Mestre da Galileia. Afirma Miqueias que Deus não requer das criaturas senão a prática da justiça e da misericórdia, como regras certas, capazes de fazer a felicidade neste mundo.

            Quem ama e pratica a justiça é porque sabe amar o seu semelhante, dando-lhe o que lhe deve ser dado, a começar da assistência moral, da assistência afetiva ou do coração, até a assistência material, socorrendo-o nas suas aflições e nas suas necessidades.

            Deixemos a figura já bastante conhecida e bastante analisada do Bom Samaritano, e vejamos uma outra figura, tirada dentre o povo judeu. Também neste caso, vemos Jesus procurar, não um dos maiorais ou dentre os principais da classe dirigente, dos escribas e fariseus.

            Trata-se de um publicano. Como sabemos, os publicanos eram assim chamados, por serem cobradores de impostos romanos (cobradores de rendimentos públicos). Bastava o fato de aceitarem esse cargo, para serem odiados pelos judeus em geral, que viviam amargurados por verem o seu povo debaixo do jugo do império romano. Era mesmo possível que os publicanos exorbitassem de suas funções, como coletores federais, cometendo injustiças e mesmo apropriando-se de uma parte da arrecadação dos impostos, cobrados além da tabela.

            Conta-nos o terceiro evangelista, no cap. 19, que Jesus fez uma visita a um publicano rico, chamado Zaqueu. Os escribas e os fariseus, vendo essa visita, murmuraram, admirados de que Jesus não tivesse escrúpulos de entrar na casa de um homem pecador, como diziam.

            A presença do Mestre foi suficiente para provocar uma revolução nas ideias e nos sentimentos do publicano. Tão profundamente benéfica a influência da aproximação de Jesus, que Zaqueu sentiu intensas vibrações lá no seu íntimo, ao ponto de, espontaneamente, fazer esta confissão:

            “Senhor, eu estou para dar aos pobres metade dos meus bens, e naquilo em que eu tiver prejudicado a alguém, pagar-lhe-ei quadruplicado.”

            Foram essas as palavras, as únicas palavras que pronunciou. Não declarou a sua crença, não externou medo da condenação eterna, não disse que frequentava algum templo, enfim, não fez nenhuma profissão de fé. Reconheceu-se imperfeito, reconheceu a possibilidade ou mesmo a probabilidade de haver guardado para si dinheiro alheio, mas, de pronto prometia restituir o alheio quatro vezes mais, de forma a não lhe restar no bolso nenhuma parcela alheia. E, olhando para mais longe, via muita gente necessitada, carente de auxílio. Então, num rasgo de simpatia, confessou a Jesus que ia dar a metade dos seus bens, a metade da sua riqueza aos pobres, mas despojada da rapina.

            E o Mestre, após ouvir essa confissão toda espontânea, apenas disse: “Também este é filho de Abraão. Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que tinha perecido.”

*
            Lembremo-nos, nesse episódio, de que Jesus passava por uma rua, cercado de numerosa multidão que o buscava para ganhar alívio para seus males físicos e morais.

            Zaqueu, sendo baixo de estrutura, não podia ver a fisionomia do Mestre; e, não resistindo à curiosidade de contemplar essa famosa entidade que só espalhava benefícios e simpatias, correu adiante e subiu a uma árvore, assim estaria garantida a satisfação da sua justificada curiosidade. Nem se lembrou de que era membro do funcionalismo público, e por isso talvez, não lhe ficasse bem, encarapitar-se no galho de uma arvore, como fazem os meninos. Não olhou para isso, não procurou saber se era bonito ou não, trepar numa árvore. O que desejava era tão somente satisfazer ao coração.

            Eis que, ao passar a multidão, Jesus olha para Zaqueu, e, sem lhe fazer pergunta sequer, diz apenas isto: “Zaqueu, desce depressa, porque importa que eu fique hoje em tua casa”. - Nessas poucas palavras, Jesus deu uma soberba lição a todos os membros da sua comitiva. Ele sabia muito bem que aquele homem com as pernas trançadas na árvore, era mal olhado e mesmo odiado pelos judeus, só pelo fato de aceitar a função de um cargo estabelecido pelo governo romano. E por esse motivo, merecia, como mereceu, o veneno da difamação promovida pelos fariseus e pelos demais representantes da religião judaica.

            Assim mal visto e difamado, Zaqueu não podia frequentar o templo ou igreja de Jerusalém, aos olhos de cujos professantes seria tido como herético, ou adepto de doutrinas contrárias às do povo eleito.

            Já nos foi dado fazer rápido comentário em torno da parábola do Bom Samaritano. Vimos que a posição dos samaritanos não era melhor que a de Zaqueu e dos demais publicanos. Os samaritanos não eram materialistas, não eram incrédulos, pois que adoravam a Deus no templo que levantaram ao pé do monte Garizim, afastado de Jerusalém. Eram dissidentes, razão por que não comungavam com os judeus.

            Jesus mostrou o erro grave desse separatismo, indo buscar exatamente um desprezado dos judeus para apontá-lo como verdadeiro praticante da solidariedade e da fraternidade.

            Em outra vez coube a Zaqueu a escolha do Mestre, para mostrar igualmente que o ser “publicano” nada era, como empecilho para saber amar. E Zaqueu foi tido como irmão de Jesus, porque filho de Deus.

            Nestes casos, ressalta vivo o ensino segundo o qual, não existem privilegiados nem condenados. Estas condições, estes dois estados condicionais, existiam, de fato, mas foram criados pelo religiosismo judaico, pelo orgulho do farisaísmo, essa forma disfarçada de incredulidade, de incredulidade com roupagem de espiritualismo.

            Quando o fariseu orava lá no templo - no caso figurado por Jesus -, podia muito bem ter dito: "Oh, meu Deus! Eu sei que sois infinitamente justo e misericordioso! Sei que sou imperfeito aos vossos olhos, mas não sou um injusto, um adúltero, um ladrão, como os demais homens, assim como esse publicano ali a um canto, neste templo.”

            Para esclarecer aquelas multidões sedentas de luz e famintas de consolação, era preciso derribar o falseado doutrinarismo religioso dos doutores da lei, e mostrar o nenhum valor do credo farisaico na edificação moral dos homens. Para tanto, Jesus não procurou exemplos dentro do povo de Israel, mas, precisamente, propositadamente, deliberadamente, apresentou figuras estranhas ao judaísmo, exatamente aquelas figuras desprezadas e até marcadas pelo Supremo Conselho Eclesiástico ou Sinédrio, como seja o Centurião Romano, pagão reconhecido; a Mulher Samaritana, esta, de baixa condição moral; o Bom Samaritano, o publicano Zaqueu. Estas personagens representam significativo papel no programa educacional do Grande Mestre.

            A primeira personagem é o Centurião ou comandante de um batalhão romano; um estranho, um estrangeiro, fiel, talvez, ao culto pagão da Roma Imperial.

            A segunda personagem é a Mulher Samaritana, que por ser samaritana, estava proibida de falar com judeus, e Jesus era judeu...

            A terceira personagem é o Bom Samaritano, e a quarta é o publicano Zaqueu.

            Notemos que Jesus não faz referência alguma ao “modo” de crer dessas criaturas. Este ponto não é sem importância para ser desprezado. Há razão intencional no silêncio do Mestre, quanto a esse ponto, mas razão que fala por si, sem necessidade de explicações. Basta que consideremos o modo de agir do Mestre, e estará esclarecido o que se nos afigurava razão “oculta”. Repisemos o que atrás ficou dito: o publicano Zaqueu mereceu especial atenção de Jesus, porque era um transviado, um decaído; reconhecia que havia claudicado nas funções do cargo, havia andado como um coxo, no caminho do dever, prejudicando a seus semelhantes. Mas, sob a influência da pureza de Jesus, ali presente, sentiu-se mal, devido aos gritos da própria consciência. E irrompendo vulcanicamente o desejo de se tornar digno da estima daquele visitante cuja presença lhe proporcionara tão agradável impressão, eis que imediatamente se lembrou de suas vítimas, e não quis mais saber desses tortuosos caminhos. Era o primeiro passo para a reparação do passado pejado de faltas.

            Nenhuma exigência lhe fez Jesus. Zaqueu não formulou nenhum pedido. Não disse que desejava aplacar a ira de Deus, não invocou perdão para o seu passado tenebroso. Abriu o seu coração, e manifestou o sentimento de amor por seus semelhantes, com os quais queria viver, daquela hora em diante, em harmonia, único meio de equilibrar a sua vida. Sentia as mais intensas vibrações do sentimento de justiça, e esse sentimento apontava-lhe os novos rumos para uma nova vida.

            Nos outros episódios narrados pelos evangelistas, geralmente dizia Jesus: “-Vai que a tua fé te sarou”, ou “Seja feito segundo creste”.

            No caso deste publicano, apenas disse o Mestre: “-Este também é filho de Abraão; porque o Filho do homem veio salvar o que havia perecido.” E Zaqueu estava salvo da escuridão em que vivia. Jesus, que é a luz dos homens, viu aquela alma iluminar-se com a sua presença. E, diante da confissão espontânea do pecador, de que não mais continuaria a cometer descaídas, e que iria viver em paz com os homens, a quem daria toda a assistência possível - nada tinha Jesus a objetar, nada a exigir de um filho pródigo que buscava a casa paterna, no silêncio imposto pela voz da consciência satisfeita.

            Esse exemplo, o de Zaqueu, deve ser imitado, na mudez da sua eloquência. Essa criatura não olhou para fora de si, como o fariseu, não disse a Deus que os demais homens são criminosos. Essa criatura, agora transformada no seu interior, não disse a Jesus que sairia pelo mundo para doutrinar os homens. O que se sabe acerca de Zaqueu é só o que ali está no terceiro Evangelho. Um homem que cuidaria de se corrigir a si, somente a si, valendo-se do potencial de energias gerado por sua fé no poder e no amor de seu Mestre. Não pretendia ganhar o Reino dos Céus como inspetor de polícia secreta como o fariseu que, mecanizando sua reza, nela denunciava a Deus os demais homens, que são uns injustos, uns ladrões, uns adúlteros” (Luc. XVIII, 11) - Não! Pretendia abrir o coração, limpá-lo de suas impurezas, a fim de transformar-se numa nova criatura, para continuar a merecer o olhar e a amizade de Quem o chamou de "filho de Abraão". E já sentia as primeiras doçuras do Reino de Deus, ante a nova visão do mundo e das criaturas, por quem já nutria uma simpatia estranha, com o propósito de ser-lhes útil.

            Explicada está a razão por que Jesus apontou o Capitão romano e o coletor Zaqueu como portadores da verdadeira espiritualidade, da verdadeira fé, esta sem exemplo entre o povo de Israel.

            A Mulher Samaritana foi a escolhida como missionária entre os seus co-provincianos, e a sua palavra devia propagar-se, como se propagou, às províncias próximas. Os seus ouvintes lhe deram crédito, porque ela começou a sua pregação anunciando os seus próprios pecados, e pecados bem graves... “Vinde, e vede um homem que me disse tudo o que eu tenho feito; será este porventura o Cristo? - Saíram pois da cidade, e vieram ter com Ele”. (João, IV 29, 30). Sim!

            Ele me disse tudo o que eu tenho feito, entre cujos pecados este: que minha vida é irregular, é desonesta, pois que não sou solteira, nem casada, nem viúva; que tive cinco maridos, e o homem com quem estou vivendo não é meu marido... Mas, pedi-lhe a “água viva”, a “Moral Evangélica”, que Ele disse possuir... “Ora daquela cidade foram muitos os samaritanos que creram em Jesus por causa da palavra da mulher que dava este testemunho: Ele me disse tudo quanto eu tenho feito. Vindo pois ter com Ele os samaritanos, pediram-lhe que se deixasse ficar ali com eles. E Ele ficou ali dois dias. E foram então muitos mais os que creem n'Ele, pelo ouvirem falar. De sorte que diziam à mulher: não é já sobre o teu dito que nós cremos n'Ele, mas é porque nós mesmos o ouvimos, e porque sabemos ser este verdadeiramente o Salvador do mundo." (Vs. 39 a 42).

            Essa decaída é que devia difundir a notícia profética segundo a qual, todos os credos, todos os cultos externos, todas as exterioridades de religiosismo teriam de desaparecer, de perder o seu uso, pois que Deus é Espírito, é Amor, é Inteligência, é Pensamento, e, sendo Ele o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos pelos homens... (Discurso de Paulo no areópago ou tribunal ateniense de magistrados e de sábios, em Atos dos Apóstolos, XVII, 24).

            Sim! O verdadeiro, o único templo para morada do Amor, da Inteligência, do Pensamento, é o coração dos filhos, templo sem dogmas, sem dissidências, sem ritualismos, estas barreiras que determinam o separatismo entre os homens, entre as denominações que se presumem cristãs - semelhante, esse separatismo, ao existente entre os judeus e os samaritanos.

            O Bom Samaritano não foi nomeado missionário, porque já o era, comprovadamente, missionário silencioso e não predicante.

            O Mestre não exigiu de Zaqueu, não exigiu do Samaritano, não exigiu da Mulher de Samaria, nem do Centurião, nem de Maria Madalena ou de outra qualquer criatura -, nenhuma observância ou obediência a determinadas regras religiosas. Nunca falou aos discípulos que deviam aconselhar os homens a professarem esta ou aquela fé religiosa. Nenhuma exigência neste sentido. Aquela mulher apanhada em adultério, a essa mesmo, disse o Mestre apenas estas resumidas palavras: “Nem eu tampouco te condenarei; vai, e não peques mais.” (João, VIII, 11).

            Não somente isso. O Novo Testamento não registra a curiosidade de Jesus em saber a crença alheia. Quando aquele doutor da lei, cheio de erudição religiosa, indagou sobre o modo de ganhar o reino de Deus, ouviu em resposta: “Que é o que está escrito na lei? Como lês tu?” (Luc. X, 26) - Nessa passagem evangélica, após haver ouvido o Interrogante recitar com acerto o mandamento máximo da lei, quis o Mestre por em evidência o legalismo literalista do doutor, que sabia ler a lei com os olhos carnais mas não com os espirituais; sabia a letra mas ignorava o espírito vivificador da letra; o doutor da lei não tinha olhos de ver, pois não quem era o seu próximo...

            Mas, qual o motivo por que Jesus não procurava conhecer a crença dos que o cercavam? Simplesmente para ser coerente com o seu Evangelho, Ele, que pregou o Universalismo ou a unidade do destino, como se vê nesses exemplos citados, que refletem nitidamente a sua doutrina: “Quem não é contra vós, é por vós. Pelo fruto é que se conhece a árvore. Assim, luza a vossa luz diante dos homens; que eles vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus”.

            Eis aí inteiro o seu Evangelho: pelas obras é que seremos julgados. No cap. XXV de Mateus está a chave de ouro com que o excelso Mestre fechou o assunto. Ali está resumida a sua escola, a sua doutrina ou seja todo o seu pensamento que é o pensamento do Pai.

            Com o comentário a esse notável capítulo é que encerraremos a tese epigrafada na página inicial desta obrinha: "Seremos salvos pela fé ou pelas obras?"

            Antes, porém, de esflorar o importante assunto, preciso se faz ligeira análise da expressão “suplício eterno”, que se lê no ultimo versículo desse capítulo do livro inicial do Novo Testamento.

            Mas, há outros pensamentos nas páginas sagradas que merecem, e, mais que isso, que requerem meditação. Tomemos o que se contém na palavra:

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