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terça-feira, 11 de agosto de 2020

Revelação da Revelação




Revelação da Revelação
da Redação
Reformador (FEB) 1º Janeiro 1919

            Dentro em breve, possivelmente ainda este mês, estará publicada pela Federação, numa tradução nova, o primeiro volume da obra monumental e imorredoura que J. B. Roustaing publicou em 1866 com o título de “Os Quatro Evangelhos explicados em espírito e verdade” ou a “Revelação da Revelação”.

            Objetivando alcançar a máxima divulgação para essa segunda edição portuguesa daquela obra, única no seu gênero até hoje e que é verdadeiramente pedra angular da revelação espírita, profusa distribuição de circulares fez a Federação, no justo desejo de levar ao maior número possível de pessoas, espíritas ou não espíritas, a notícia de tal empreendimento e das condições, que ela procurou tornar as mais fáceis, em que a nova tradução pode ser adquirida.

            Que é, porém, o que nessas circulares, que necessariamente haviam de ser resumidíssimas, se lograria dizer que fizesse ressaltar a importância de tão valiosa obra, para justificar o empenho da Federação, o seu esforço por torna-la conhecida dos milhares de espiritas que conta o nosso país? Bem pouco, certamente.

            Mister se tornava, portanto, que, no seu órgão, ela dissesse e demonstrasse o que nos limites estreitos de uma circular concisa não conseguiria nunca: que, assim procedendo, cumpre o mais alto dever que lhe impõe a natureza da sua missão no seio da família espirita brasileira - o de propagar os Evangelhos, onde se acha exarada toda a obra da missão messiânica de Jesus, cujo desdobramento cuja amplificação nos trouxe, em seu nome o Consolador prometido - o Espiritismo.

            E propagar o conhecimento, em espírito e verdade, dos Evangelhos é executar trabalho da maior relevância, pois que é trabalho assecuratório da pureza dessa nova revelação trazida ao mundo pelos espíritos do Senhor, com o lhe patentear o objetivo superior, a suprema finalidade, que consiste em nos desempecer o caminho do aperfeiçoamento moral, aparelhando-nos dos meios e das forças que nos são indispensáveis para percorre-lo com passo seguro, sem nos desviarmos pelos perigosos atalhos que o margeiam.

            Eis dada a razão de ser deste artigo e dos que se lhe seguirão, permitindo-o Deus.

            Entretanto, pois que não se trata de uma obra pela primeira vez trazida a público, esses artigos seriam desnecessários se ela não houvesse já merecido a repulsa de alguns confrades, que chegam a estranhar se faça dela arauto a Federação, chegando mesmo outros desenvolver propaganda contrária à aceitação, por motivos que adiante apreciaremos.  

            Esta circunstância, aditada à conveniência apontada anteriormente, nos veio mostrar que lícito nos não era, no momento, nada dizer da reedição em português da obra a que aludimos; tanto mais quanto grande número de compatrícios nossos, espíritas muitos, outros não, acudiu ao apelo que lhes foi dirigido, subscrevendo antecipadamente para a sua publicação, com o que se fizeram credores do reconhecimento que aqui lhes testemunhamos.

            Explicados assim a origem, a natureza e o objetivo deste e dos demais artigos que venhamos a escrever sob o título que o encima, abordemos a assunto.

*

            Linhas atrás dissemos ser o Espiritismo um desdobramento, uma amplificação da obra evangélica, da missão de Jesus. Não avançamos nenhuma novidade, está claro, para quem não seja hóspede da doutrina dos espíritos. Também não foi como novidade que escrevemos essa proposição e aqui a repetimos, mas tão somente porque encerra uma verdade fundamental para a tese que nos propomos desenvolver.

            Verdade é esta (que decorre de outra nada menos importante e essencial para a boa compreensão do papel que o Espiritismo veio desempenhar em o nosso mundo; para o estabelecimento da sua significação, para que se reconheça como obra, verdadeiramente divina, pois que emanada da suma sabedoria reguladora do universo.

            Sim, ou o Espiritismo é obra esporádica e, nesse caso, efêmera tem que ser a sua duração e falaz o seu objetivo, como sucede a tudo o que não traz o cunho da perfeição característica da divindade, ou não o é e então constitui um elo da cadeia infinita que parte de Deus e a Deus volta, abrangendo tudo o que existe no universo inteiro. Como tal se acha ligado ao elo anterior e este não pode deixar de ser a revelação precedente, porquanto, desde que se reconheça no Espiritismo o cunho de obra divina, nele forçosamente se há de reconhecer uma revelação de verdades eternas.

            Surge deste modo o princípio fecundo em consequências de extraordinário alcance e exarado no contexto da doutrina espírita, o princípio da progressividade das revelações, cuja filiação sucessiva um dia remontaremos: quando houvermos chegado a uma altura espiritual donde nos seja possível lançar olhar perquiridor sobre as origens do nosso mundo e do nosso próprio eu. 

            Assentado este princípio, não nos deteremos em aprofunda-lo, pela razão de que isso já o fez. com a proficiência, a ponderação e a inspiração que lhe eram peculiares, o abnegado e esclarecido companheiro de cujo convívio terreno ora com saudade nos vemos privados - Pedro Richard. Para desse estudo admirável se inteirarem, não precisarão os que o queiram mais do que recorrer aos números do Reformador de setembro de 1917 a Janeiro de 1918. Aí se lhe deparará, demonstrado à saciedade, que as revelações são sucessivas e progressivas.

            Sendo, pois, o Espiritismo uma nova revelação, restauradora e ampliativa de outra anterior, e sendo esta a revelação messiânica, dizer Espiritismo é dizer Cristianismo. Mas, em que fontes, em que registros nos poderemos apropriar do conjunto desta revelação, da revelação cristã, dos seus ensinos capitais, das verdades que lhe formam a trama senão nos Evangelhos? E como obteremos o conhecimento perfeito das verdades que são o desenvolvimento ou o desvendamento de outras proclamadas antes, se com estas nos não familiarizarmos?

            Tanto basta para ficar patente que o Espiritismo sem os Evangelhos não seria mais do que um corpo sem cabeça, perdoe-se-nos a infelicidade da expressão. Queremos dizer um corpo de doutrina sem o coroamento indispensável - o ideal a realizar-se pela prática dos ensinamentos doutrinários, ideal cuja realização constitui o motivo, o fundamento das leis, dos princípios que a doutrina revela.

            Aos que só vejam no Espiritismo as relações do mundo visível com o mundo invisível, a produção dos fenômenos espíritas, ele absolutamente não é uma revelação, porquanto aquelas relações sempre existiram, em todos os tempos, e esses fenômenos sempre se produziram. Apenas, amadurecidas as inteligências para lhes apreender a verdadeira significação, eles se tornaram, por assim dizer, comezinhos, como efeitos que são de leis que puderam ser desvendadas nas suas aplicações mais elementares.

            Como revelação divina, isto é, como revelação de verdades que colimam a nossa purificação, a perfeição moral que nos aproximará da perfeição absoluta - Deus, o Espiritismo é o Cristianismo em toda a sua pureza e o seu estudo, a assimilação dos seus ensinos não se podem conseguir senão pelo estudo e meditação dos Evangelhos e a meta que se oferece aos nossos esforços não pode ser atingida senão pela prática das lições e exemplos evangélicos.

            Já se vai fazendo tempo de que todos quantos desejem ser sinceramente espíritas se compenetrem da verdade que vimos de anunciar, certos ele que, se não fizermos do Evangelho a bússola do nosso roteiro, andaremos ao léu pelas vizinhanças do Espiritismo, sem conseguirmos lançar âncora no porto de salvação a que ele conduz os que por ele buscam o seio amoroso do divino mestre.

            Porque assim o entende, porque tenha verificado dia a dia, nos anos já numerosos da sua existência, o acerto desse seu criterium, porque cada vez mais abundantes são os frutos que colhe da sementeira evangélica, tornando mais claros se tornam os princípios fundamentais da doutrina, é que a Federação, com ardor sempre crescente, concita todos os que hão abraçado o Espiritismo a se identificarem com o Evangelho, assimilando-o em espírito e verdade, à luz da revelação espírita.

            Como meio de o conseguirem, ela, ainda firmada no que lhe atesta a sua persistência nesse terreno, indica, aconselha e propugna o estudo da obra de Roustaing, ditada mediunicamente pelos próprios evangelistas, por ser até hoje a única que, para as nossas vistas limitadas, dissipa rodas as obscuridades da letra nas narrações evangélicas, conforme mostraremos, se nos faltar o auxílio do Alto.

*

            Mas, dir-nos-ão, porventura Allan Kardec, na sua obra, não abordou o estudo dos Evangelhos? Um de seus volumes não se intitula mesmo “Evangelho segundo o Espiritismo”?

            Respondendo a essa objeção, responderemos do mesmo passo aos que vêm, na propaganda que a Federação faz dos Quatro Evangelhos explicados em espírito e verdade o intuito de colocar em segundo plano a obra geral de Kardec, dando a primazia, para o estudo do Espiritismo, à de Roustaing.

            Nada menos exato nem menos lógico. Nas suas sessões de estudo da doutrina, sessões que se realizam duas vezes na semana, às terças e sextas feiras, e que constituem os elementos primordiais para se julgar da sua orientação doutrinária, a Federação estuda simultaneamente a obra de Kardec e a obra de Roustaing, esta às terças feiras e a outra às sextas. Este fato por si só demonstra a inanidade daquela presunção e torna evidente que nenhuma primazia a Federação estabelece de uma de tais obras sobre a outra. Mais ainda: mostra que, ao contrário, ela continua a reconhecer e proclamar sinceramente (e se o não fizesse falsearia a sua missão) quanto é preciosa e fundamental a de Kardec, reconhecendo e proclamando, ao mesmo tempo o imenso alcance, o extraordinário valor da de Roustaing, como complementar da primeira, que nela encontra a sua mais bela aplicação, o seu indispensável e natural desenvolvimento.

            Será isto, porém, objeto do nosso próximo artigo. .

Nota do Blog: Entendemos nós que, nos últimos anos do século XX, a FEB retirou os livros de Roustaing de seu catálogo e suspendeu os grupos de estudo desta Obra.  


Revelação da Revelação
da Redação
Reformador (FEB) 1º Fevereiro 1919

            Concluímos o nosso artigo anterior mostrando ser uma afirmação destituída de base, desmentida pelos fatos a de que a Federação relega para plano secundário a obra geral de Kardec, conferindo à de Roustaing notável primazia e declarando, ao contrário, segundo a orientação que a Federação mantém há longos anos na propaganda da doutrina dos espíritos, os “Quatro Evangelhos” são obra complementar da do Codificador do Espiritismo, obra esta última que se encontra na outra a mais bela afirmação dos princípios e leis que nos veio revelar.

            Efetivamente, não sendo o Espiritismo, conforme já o dissemos, senão o Cristianismo em toda a sua pureza, tendo surgido na Terra como terceira revelação, e não podendo haver entre as revelações divinas solução de continuidade, a revelação espírita mais imediato objetivo de certo não colimou que não o de aclarar as obscuridades necessárias da anterior, que não tornar patentes verdades, leis e princípios que tiveram de ser enunciados sob o véu quase impenetrável da letra, que haviam de produzir frutos primeiramente por interpretações literais, mas destinados a ser posteriormente compreendidos por maneira a acelerar a ascensão progressiva dos espíritos que compõem a humanidade visível e a humanidade invisível para seus altos destinos. Assim, é principal escopo do Espiritismo despojar do véu que as encobria muitas das verdades contidas nos ensinamentos de Jesus, ensinamentos que no seu conjunto formam exatamente a doutrina que se chamou o Cristianismo.

            Ora, Evangelhos são o repositório desses ensinamentos, são, pois, a consubstanciação dessa doutrina. Ressalta daí que, em última análise, o Espiritismo é, essencialmente, a chave dos Evangelhos, constituindo estes a sua base, os seus alicerces profundos. Sejam os Evangelhos postos de lado e o Espiritismo não passará, para cientistas e leigos, de um campo de experimentações e experiências que, quando mesmo individualmente proveitosas, não darão por si sós o resultado coletivo que ele se propõe alcançar e alcançará pela depuração e transformação moral dos espíritos, norteando os progressos que a humanidade toda tem que realizar.

            Por outro lado, desvendando verdades já enunciadas, ele as desenvolveu e ampliou, enunciando por sua vez outras que, complementares daquelas, irão sendo gradativamente compreendidas melhor. Se não fora assim as revelações não seriam progressivas, como são.

            De tudo isso se evidencia que a razão de ser primacial, superior, do Espiritismo é a elucidação completa dos Evangelhos, bem como de toda a obra apostólica decorrente das lições e exemplos do Cristo e ainda de toda a dos grandes missionários que o precederam e cujas obras, com a de Moisés, compuseram o tesouro da primeira revelação.

            Bem se compreende, portanto, que de perto tenha sido a missão de Kardec seguida da de Roustaing, que nos deu a aplicação imediata e, conseguintemente, a sanção do que pela outra fora revelado ao mundo.

            A isso objetam alguns que, se uma obra qual a de Roustaing fosse necessária naquele momento, dela teria sido incumbido o próprio Kardec, que merecera desempenhar o elevadíssimo encargo de missionário da terceira revelação. Nada tem de precedente semelhante objeção. Quem quer que conheça as vicissitudes, as lutas e tribulações que aquele grande missionário teve de enfrentar desde o momento em que deu a público a sua obra ao em que voltou a repousar de tanta fadiga no Além; quem não desconheça os esforços quase sobre humanos que houve de empregar para levá-la até ao ponto em que a deixou; quem não ignore que, no seu próprio sentir, muito lhe ficou por fazer, perceberá facilmente que, sem prejuízo grave para a tarefa principal que lhe cumpria desempenhar, não poderia ele tomar sobre os ombros, além da de que se desobrigou, a que coube a Roustaing.

            De que serviria ocupar-se ele, precisamente, com a parte complementar da obra que viera realizar, antes de haver conseguido firmar o primeiro passo, de haver mostrad0 que a parte fundamental era sólida, capaz de resistir aos golpes que de pronto a alvejaram, às investidas furiosas dos que logo pressentiram quanto aquela nova luz que do Alto descia sobre o mundo tinha de funesto par a estabilidade dos já carcomidos monumentos dos credos dominantes? Teria sido comprometer, de modo talvez irremediável, a obra toda. Semelhante ideia não lhe foi, por isso, inspirada. A segunda parte do trabalho a providencia delegou a outro, que a executou no tempo oportuno e oportunamente a tornou conhecida, isto é, quando já não eram mais de recear as primeiras rajadas do vendaval, quando já a semente lançada começar a germinar em vários pontos da Terra, assegurando próxima floração e abundantes frutos.

            A isto, os que não querem ver os fatos por este prisma verdadeiro revidam com a alegação de que, se assim fora, Kardec não houvera consagrado aos Evangelhos um dos volumes que publicou, intitulando o “Evangelho segundo o Espiritismo”.

            O fraco peso de semelhante argumento para logo, porém, se patenteia, uma vez que se considerem as coisas com espírito desprevenido e se atente no desígnio providencial a que obedeceu o aparecimento da nova revelação. Vindo esta, principalmente, como a pouco acentuamos, para elucidar as verdades evangélicas que haviam ficado encobertas pelo véu da letra, para desenterra-las do amontoado de deturpações que sobre elas se acumularam as errôneas interpretações literárias a que deram lugar, não era possível que desde o primeiro momento não ficasse marcado esse escopo, pela indicação da perfeita conformidade dos novos ensinos com os ensinos anteriores da moral cristã,

            Kardec, pois, foi impelido por inspiração dos que o guiaram no desempenho da sua gloriosa missão a abordar os temas principais da moral evangélica, recebendo sobre eles, de uma plêiade numerosa de altos espíritos, comunicações edificantes, que vieram demonstrar nada haver sido mudado, dentro da nova doutrina, no que respeita às bases em que o Cristo assentara a sua moral sublime. Por esse modo, se pôs o traço indicador da perfeita união, da íntima correlação entre a revelação messiânica e a revelação espirítica, preparando-se desde logo os efeitos mais amplos, mais completos e mais profundos que a segunda estava destinada a produzir pela revelação dada a Roustaing e pelas que ainda forem trazidas ao mundo mediante outros missionários.  

            Porventura, Kardec fez, no terceiro volume das suas obras, um estudo completo dos Evangelhos à luz dos princípios e ensinamentos que codificara no primeiro, um estudo que dispensa se o empreendimento de qualquer trabalho tendente a dar cabal e satisfatória explicação de todos os pontos deles, dos menos como dos mais obscuros pela nebulosidade intencional da letra? O próprio Kardec nos diz que não. É o que declara no artigo em que, pelas colunas da Revue Spirite, apreciou perfunctoriamente a obra de Roustaing, dizendo:

            É um trabalho considerável e que tem, para os espíritas, o mérito de não estar em contradição, por qualquer dos seus pontos, com a doutrina ensinada no “Livro dos Espíritos” e no dos “Médiuns”. As partes correspondentes às de que tratamos no “O Evangelho Segundo o Espiritismo” o são num sentido análogo. Aliás, como nos circunscrevemos de máximas morais (*) que, com raras exceções, são geralmente claras, elas não poderiam ser interpretadas de maneiras diversas elas não poderiam ser interpretadas de maneiras diversas. Por isso mesmo jamais fizeram objeto das controvérsias. Essa a razão que nos levou a começar por aí, a fim de sermos aceito sem contestação, aguardando, relativamente ao mais, que a opinião geral se achasse familiarizada com a ideia espírita.”  

                (*) O grifo é do blog.

            Aí estão traçadas pelo próprio Kardec os limites em que se confinou a sua obra no tocante aos Evangelhos.

            Dir-se-á, porém, que dentro desses limites devesse permanecer definitivamente encerrado o estudo ou melhor a explicação dos Evangelhos? Estaria esta completa em tais condições, nada mais haveria a fazer nesse terreno? É ainda Allan Kardec quem nos diz que não.

            De fato, no trecho que acima citamos, se leem estas palavras por ele escritas: “aguardando, relativamente ao mais, que a opinião geral se achasse familiarizada com a ideia espírita.”

            Alguma coisa mais, portanto, havia a ser feita. Fizeram-na os evangelistas por intermédio de Roustaing na obra “Os Quatro Evangelhos explicados em espírito e verdade”.

            Mais claras considerações sugere ainda esse tópico do Mestre venerado. Farão, porém, objeto de outro artigo.  

Revelação da Revelação
da Redação
Reformador (FEB) 1º Março 1919

            Concluímos o segundo dos artigos que sob o título acima temos escrito reservando-nos para, em outro, fazermos mais algumas considerações sobre o trecho que então transcrevemos, do que na Revue Spirite publicou o Sr. Allan Kardec acerca da obra de Roustaing.  

            Assinalamos que das próprias palavras do Mestre se infere com acerto que nem tudo ficara por ele feito, no tocante à explicação dos Evangelhos dentro do que se encontra no terceiro volume de suas obras, o que se intitula “Evangelho segundo o Espiritismo”.

            Publicando esse volume, declarou-o ele próprio, apenas deu começo ao que nesse terreno havia por fazer. “Essa a razão que nos levou a começar por aí”, tais são as suas palavras. E acrescentou: “aguardando, relativamente ao mais que a opinião geral se achasse familiarizada com a ideia espírita”.

            Temos assim que “o começo” da explicação dos Evangelhos à luz da doutrina dos espíritos ele executou, encontrando-se ainda na expectativa do momento, que ao seu elevado critério parecesse oportuno, para executa-la com relação “ao mais”, quando Roustaing publicou o seu trabalho.

            Toda a questão se resume, pois, por agora, em saber no que consistia esse “mais” e se a ele atendeu a obra de que foi missionário o Sr. Roustaing e ainda se esta, pecou por inoportuna. Quanto a este último ponto, o que já anteriormente escrevemos se nos afigura suficiente para tornar claro que nenhuma inoportunidade houve no aparecimento da obra roustainiana. Acresce, que estando tudo quanto concerne ao nosso mundo, à vida e ao progresso da humanidade terrena, como de todas as humanidades existentes no universo, subordinado a leis imutáveis e sábias, expressões de desígnios providenciais, nunca poderão os espíritos encarnados ser árbitros da oportunidade do que quer que entenda com questões de tão alta monta quando é certo que eles não o são muita vez nem dos mais insignificantes dos seus atos individuais. Evidentemente, da oportunidade da revelação a que Roustaing serviu de medianeiro só podia julgar e julgou a mesma inteligência que decidiu com respeito à da revelação de que antes fora Kardec o missionário. Assim sendo, e o é, desde que pretendamos, em nossa condição de encarnados, pronunciar-nos em tal matéria, nos arriscamos a incorrer em erro grosseiro.  

            Demais, a querermos, apesar de tudo, formar juízo a cerca dessa oportunidade, arrimando-nos às opiniões do próprio Kardec, seremos levados, parece-nos, a reconhecer que ela era manifesta, porque de fato não compreendemos fosse inoportuna, no momento em que apareceu a de Roustaing, uma obra que “tem para os espíritas o mérito de não estar em contradição, por qualquer de seus pontos, com a doutrina ensinada no “Livro dos Espíritos” e no “Livro dos Médiuns”, conforme o declara o Mestre no artigo de que precedentemente transcrevemos largo trecho.

            É essa uma afirmação que julgamos da maior relevância na apreciação, não já somente da oportunidade, mas do valor mesmo da “Revelação da revelação”, depondo eloquentemente em favor da sua procedência, da sua origem e, portanto, do seu alcance.

            Se por algum ou alguns dos seus pontos ela se mostrasse contraditória com a doutrina que os espíritos ensinaram e Allan Kardec codificou nos seus volumes, poderíamos ver nela uma obra destinada a diminuir, senão a anular, o valor da antecedente, como aponta-la como obra total ou parcialmente errônea, ainda que o não fosse, para a desacreditar fazendo pairar sobre ela prejudicialíssimas dúvidas. Não sendo contraditória com a primeira, nem objetivando retifica-la nos seus pontos capitais ou em alguns destes, ela toma evidentemente o caráter de obra confirmativa da outra, robustecedora dos ensinamentos dados por esta ao mundo.

            Se, porém, ela não objetivasse alguma coisa mais do que isso, teria sido, quando menos, ociosa, não deixando todavia de ser sempre prejudicial, uma vez que aos estudiosos da nova doutrina sobrecarregava o peso do estudo, sem nenhuma vantagem para o esclarecimento de suas inteligências pela ampliação do campo de suas cogitações e meditações relativamente aos grandes problemas referentes aos seres criados, às suas origens, à sua evolução e aos seus destinos.

            É claro, pois, que, de alguma forma, a obra de Roustaíng se havia de diferençar da de Kardec, embora mantendo-se as duas perfeitamente acordes. São acordes nos pontos de que ambas trataram. Diferençam-se por abordar a de Roustaing, esclarecendo-os convenientemente, assuntos ou questões sobro os quais a de Kardec ou nada dissera, ou só muito superficialmente explicara. Assim pois, aquela é, como não podia deixar de ser, complementar desta. Tanto basta para que o espírita verdadeiramente desejoso de o ser de fato, premunido por esse desejo contra o vírus de todo e qualquer fanatismo, que constitui tropeço enorme e perigo no progresso espiritual, não se exima de colher os benefícios que ambas podem e deve auferir, estabelecendo graciosamente para uma, em detrimento da outra, um cunho de dogmatismo, incompatível com a natureza da própria doutrina, que, de sua essência mesma, é progressiva.

*

            Os pontos pelos quais uma se diferença da outra, deixando de ser a mais recente simples repetição da anterior, constituem exatamente o “mais” em relação ao qual Kardec aguardava que a opinião geral se achasse familiarizada com a ideia espirita.

            E que era esse “mais”? Seria absolutamente secundária a importância de tudo quanto nele ficara englobado?

            Só às máximas morais o Mestre se circunscrevera, di-lo ele próprio. Sem dúvida elas são o principal na obra messiânica de Jesus, pois que formam o roteiro que ele traçou para a ascensão de todos os espíritos que o Pai lhe confiara aos páramos celestiais a que se elevara e donde o seu amor sem limites e a sua sabedoria irradiam de continuo sobre o mundo que habitamos.

            Limitou-se, porém, Jesus, no curso da sua missão, a enunciar essas máximas, que aliás se enfeixam todas na lei do amor, que é a lei das leis, como ele o proclamou quando disse estarem toda a lei e os profetas encerrados no mandamento que prescreve ao homem amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo?

            Não. Da exemplificação multiplicada de cada um de seus ensinamentos, de cada um dos princípios, das prescrições contidos na doutrina que trouxera ao mundo, doutrina que, no seu dizer, não era sua mas daquele que o enviara, fazia ele o maior cabedal, tanto que amiúde recomendava a seus discípulos e a quantos o rodeavam, que fizessem o que o estavam vendo fazer, que praticassem o que o viam praticar, que o imitassem nas suas obras, nos seus netos, no seu proceder. Tão grande, pois, quanto o das lições, das máximas, que dos lábios lhe saíam era o valor de suas obras, de seus atos, de seu proceder, de seus exemplos, em suma, e essa de certo a razão por que, escrevendo sob a inspiração do alto, os evangelistas consagraram tão larga parte dos Evangelhos à narração minuciosa dos fatos que consubstanciam esses preciosos exemplos.

            Ora, ninguém logrará estudar e apreender conveniente e frutuosamente os ensinos evangélicos, a moral evangélica se desprezar o estudo, a meditação de cada um dos seus atos, de cada uma das obras daquele que ao homem foi oferecido por modelo. Só assim o teremos diante de nós a desempenhar pessoalmente hoje como outrora a missão mediante a qual assentou a base da regeneração humana e agora começou a ultima-la enviando ao mundo o Consolador prometido.

            Mas, a inteligência desses fatos, dessas obras modelares não pode ser presentemente a mesma, quando outra é, graças à luz trazida por esse Consolador, o Espiritismo, a de muitas das palavras proferidas por aquele que as executou, a das próprias máximas morais, que nos ele legou nas páginas dos Evangelhos.

            Assim como estas, para produzirem seus primeiros frutos, tiveram que ser dadas aos homens envoltas no véu da letra, que só muito mais tarde, oportunamente, seria levantado, também os atos e as obras que as ilustraram tiveram que ficar ligados obscuramente à misteriosa divinização da personalidade excelsa que os praticava.

            Uma vez dissipadas as nebulosidades intencionais da letra dos ensinos, a fim de que pudessem produzir frutos melhores, mais ricos, mais preciosos do que os até então colhidos, mister se fazia que também se dissipasse o véu sob o qual falseada se mostrava aos olhos humanos a imagem do semeador divino, desaparecendo com as névoas da ignorância do passado a divindade humanizada ou o homem divinizado, o ser sobrenatural, e surgindo em seu lugar a figura radiosa de Jesus na sua plena realidade espiritual.

            Tudo isso se compreende no “mais” com que Kardec não julgou oportuno ocupar-se e que os mensageiros do Cristo consideraram de oportunidade revelar a Roustaing para conhecimento da humanidade, completando o que, por intermédio do primeiro, fora revelado e preparando o que, por intermédio de outros, ainda o será, em cumprimento destas do Divino Mestre, que nenhuma proferiu palavras em vão: “Nada há secreto que não venha a ser conhecido; nada há oculto que não venha a ser descoberto e a aparecer publicamente.”



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