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terça-feira, 17 de setembro de 2019

A ideia de laicismo



A ideia de laicismo - 1
C. Wagner
Reformador (FEB) Maio 1923


“Quando Jesus acabou de falar, a multidão se achou admirada da sua doutrina, porque ele a instruía com autoridade e não como os Escribas.”    Mt VII, 28

“Ora, estavam por ali, sentados, alguns Escribas em cujos corações se aninhavam estes pensamentos: Como pode este homem proferir tais blasfêmias?    Mc. II, 6 e 7

“E diziam: Este não é o filho de José?”

Estas passagens nos conduzem a um terreno de combate entre a autoridade interior e a autoridade tradicional, ou exterior, em matéria de religião.

Para mais práticas, mais diretas tornarmos as observações que vamos fazer sobre este assunto, convido-vos a refletirmos juntos acerca do lugar que, no domínio da religião, ocupa o que se poderia chamar a religião original, ou, em outros termos, a religião leiga.

Muito de propósito emprego este termo “leigo”.

Ele hoje se repete amendadas (repetidas) vezes nos jornais, nas conversações, nas polêmicas, nas leis.

Em geral, tem, no espírito de toda gente, um sentido simplista e restrito.
Seus limites são os de uma região muito palmilhada, onde significa, principalmente, anti religioso ou irreligioso.

Leigo e profano são sinônimos, para alguns.

Muitos mesmo confundem leigo e ímpio, pondo nisso grande dose de boa vontade, ou de má vontade, se preferirdes.

Parece que o termo “leigo” indica alguma coisa de novo, de muito recente, ao sabor do juízo dos campeões do passado; alguma coisa de novíssimo, segundo os espíritos fortes. Estes últimos veem nisso uma possante vaga que vai submergir a Terra e varrer definitivamente o mundo, não direi clerical, mas religioso.

Outros empregam o vocábulo “leigo” para designar uma espécie de imparcialidade indiferente entre os velhos cultos, ainda professados por certos grupos de homens de antiquada mentalidade, mas, apesar de tudo, venerável, porque o homem é sempre digno de respeito naquilo que entende com a sua vida interior. Em regra geral, raros são os nossos contemporâneos que hão explorado um tanto as províncias infinitas da noção de “leigo”.

Essas desconhecidas províncias formam precisamente o terreno aonde quero hoje conduzir-vos e começo por apresentar uma tese, que tentarei fundamentar com uma série de fatos:

Em religião, como em tudo, em ciência, em arte, em sentimento, o que lhes serve de base é o elemento leigo. No seu princípio, a religião é leiga e, na sua essência profunda, leiga tem que se conservar.

Leigo significa: popular, humano, de um humanismo universal e fundamental.

O mundo leigo é mais antigo do que todos os outros.

Laicificar, em matéria religiosa, não consiste em mudar fórmulas, dogmas e ritos, na moeda corrente do pensamento atual. Consiste ainda menos em suprimir uma cruz do frontão de uma igreja; fazer sair do pretório um Cristo; tirar a um monge a sua cogula (túnica como a dos beneditinos); a uma religiosa a sua touca. Laicificar é, em verdade, volver à raiz humana das instituições, das crenças, dos costumes, dos sentimentos. O espírito laico é o mais antigo, não porque, folheando livros e esquadrinhando datas, se lhe possa assinar certificados da mais alta ancianidade (longo tempo de existência), mas porque não tem idade. Ele se prende ao mundo das realidades, que não são de nenhum tempo particular, porém de todos os tempos e que primam a todas as outras, simultaneamente, pela sua antiguidade, pois que datam de sempre, e pela sua novidade, pois que incessantemente renascem em manifestações inéditas.

Vamos mostra-lo, mediante uma série de observações.

1

Procuremos antes de tudo uma analogia e tomemos um exemplo à evolução cientifica.

O saber humano fez o seu aparecimento no espírito e pelo labor de alguns que careciam de qualidade especial para recolhe-lo.

A ciência foi, a princípio, leiga e imprecisa; depois, pouco a pouco, se catalogou, especializou, sistematizou. Uma lei normal impele o espírito nessa direção, a fim de que adquira mais ordem e clareza. Ao cabo de mais ou menos longo período, uma tradição cientifica vem a achar-se estabelecida, com suas instituições, seu pessoal encarregado de velar pelo tesouro da experiência e de manter as ideias recebidas.

Mas, uma vez atingido esse grau de organização, vemos comumente a ciência degenerar em mandarinato. Por cima da capacidade primordial do homem, a de observar e pesquisar, forma-se uma espécie de dura e impenetrável concha, semelhante à dos cágados (tartarugas). Entre o espírito e a realidade se interpõem as teorias feitas e acabadas. Chega um momento em que os que têm modos originais de ver e o instituto das pesquisas, os que preferem folhear o grande livro da natureza a repetir, pura e simplesmente, as observações dos outros, se sentem comprimidos, sufocados. Então, com vigoroso esforço, levantam e fazem em estilhaços aquela concha, a fim de que os órgãos vitais do conhecimento humano não fiquem comprometidos.

*

Por toda parte se pode observar esse progresso do espontâneo para o convencional, do autêntico para o artificial.

Atentai no mundo dos sentimentos. Em sua origem, quando são muito verdadeiros, neles notamos um certo número de expressões, de manifestações tão pessoais e sinceras, quanto eles próprios. Pouco a pouco, porém, à força de se repetirem e imitarem, entram no período convencional. Sofrem uma filtração através de espessas camadas de hábitos e costumes herdados, que os descoram e lhes tiram o que têm de sincero e direto. Na vida das sociedades, períodos se apresentam em que os sentimentos são de tal maneira artificiais, em que o pó das convenções se superpôs tão bem à essência mesma do coração, em que a expressão do que cada um sente está a tal ponto estereotipada, que os homens parecem autômatos de gestos regulados e sem personalidade. Onde quer que, então, se mostre um nada de sentimento inédito, um pouco de verdadeiro humanismo; onde quer que um real e forte brado do coração se faça ouvir, logo toda gente entra a respirar, como se alguém acabasse de quebrar uma chapa de chumbo posta sobre todas as cabeças.

Porém, diante da força e das manifestações do sentimento autêntico, assustam-se os guardas ferozes das convenções e se põem a proclamar a necessidade das muralhas que a sabedoria secular erguera em torno dos sentimentos, a fim de os proteger e disciplinar.

Eles se sentem responsáveis e incumbidos de guardar o santuário do lar e do amor. Na realidade, entretanto, já não guardam senão molduras vazias. Esqueceram o verdadeiro Deus dos lares e, no dia em que esse Deus lhes aparece, não o reconhecem e o renegam. A regra convencional, estabelecida para salvaguardar a vida familiar, acaba por embaraça-la e destruí-la.

*

O mesmo se dá em matéria de religião.

No alto do monte Moriá, não havia a princípio mais do que um altar de pedras toscas, onde, à falta de qualquer outro santuário, ia Abraão, o venerável patriarca, oferecer seus sacrifícios.

E a lei, a princípio, era a lei não escrita, da qual diz a Escritura santa:
“Ele não está no céu... não está além mar: está bem perto de ti, nos teus lábios e no teu coração (1) .”

(1)    Deuteronômio XXX, 14

O progresso e o tempo mudaram tudo isso...

Gradativamente, o culto de Abraão, com o seu altar informe, se enriqueceu, cercando-se de maior magnificência. A lei foi gravada em tábuas de pedra e venerada como divindade. Doutrinas, à guisa de brilhantes escrínios, se construíram, para encerrar cuidadosamente as pérolas e as gemas dos sentimentos religiosos. Uma categoria especial de homens foi designada, dentro da tribo de Levi, para zelar pelo santuário, para conservar o ensino e presidir aos sacrifícios.

Assim nasceu e se acentuou a hierarquia sacerdotal. Nos rolos sagrados se fixou a palavra viva e a ciência sutil do escriba se entrelaçou nas letras do texto, como a hera parasita nas anfractuosidades (saliências) dos vetustos muros.

Então, o culto e a lei e a prece e o sacrifício deixaram, lentamente, o solo popular, o sulco onde a vida germina das profundezas e entraram no período de cristalização, de mumificação. Numa palavra, caíram no mecanismo clerical.

Veio tempo em que a lei não era mais do que letra morta, o nome de Deus mais do que simples vocábulo, a alma mera inscrição outrora nítida e brilhante, agora obscura e a se apagar cada vez mais.

Até mesmo a fonte da religião pareceu ter secado. Debaixo do céu mudo,
a terra não mais ouvia oráculos. Estava captada a torrente da vida que no princípio correra.

As águas estagnadas deixam de fertilizar a planície e, a poder de inércia, se tornam venenosas.

Entregue aos que o guardam sem o vivificarem, o tesouro religioso do passado degenera e desce à categoria de capitais mortos, confiados a pessoas que já não dispõem da energia, nem da inteligência necessárias para fazerem girar o seu dinheiro. Toma o aspecto desses latifúndios que vão parar a mãos de criaturas indolentes, para quem a terra é apenas objeto de platônica posse, impotentes que são para fecunda-la pelo trabalho.

Quando as instituições religiosas, paulatinamente desenvolvidas através de sua laboriosa e normal evolução, chegam afinal ao período de estagnação  e morte, mister se faz que a religião renasça pela raiz. Então, após longo penar das almas na incerteza, flageladas pela fome e pela sede espirituais, nasce um homem em quem as necessidades e as aspirações de sua época ganham consciência. Sucede a esse homem o que a Escritura descreve a miúde, quando diz: A palavra de Deus lhe foi dirigida.

Torna-se um profeta.

No profeta, colaboram simultaneamente estas duas forças: a alma de uma multidão e o espírito divino, forças que o consagram para ser criador e vítima: criador de uma nova ordem de coisas; vítima da antiga ordem de coisas.

Velha e irredutível oposição existe entre os profetas, despertadores de almas, e os sacerdotes, matadores dos profetas.

O profeta é, por excelência, o leigo, que não pertence a nenhuma casta
Particular, que não tem mandato oficial. É, pura e simplesmente, um homem, que a inspiração, a quem devemos as grandes e irrevogáveis instruções íntimas, foi buscar, ou junto de seus rebanhos, ou num trono, ou numa cela de monge, ou não importa onde. É um homem em quem a religião se acha em estado, por assim dizer, selvagem, sem ter ainda sofrido qualquer domesticação, porquanto as ideias são como as plantas e os animais. Há cravos selvagens e cravos de estufa; rosas de aposento e rosas da montanha. Há águias de viveiro e leões de pátio; águias dos cumes e leões do deserto. No mundo humano, temos ideias agrestes, rústicas, ideias de ar livre, selvagens, independentes, e ideias domesticadas, prisioneiras, flores de cor desmaiada, águias de asas cortadas, leões anêmicos.

Quando um desses leões de gaiola, portador, geralmente, de pomposos títulos e de uma genealogia, encontra um verdadeiro leão, olha-o com distinto desdém, como que a lhe dizer: “Tu, um leão! onde está a tua jaula? o lugar de um leão é atrás de fortes grades. Não és um leão, pois que não tens jaula.”  

Com a mesma razão, com igual justiça, os homens das ideias domesticadas e das palavras mortas, os guardas titulados das instituições, cujo espírito já se evaporou, dizem ao profeta: “Blasfemas! quem te deu o direito de falar?” E os escribas, escudados na sua sabedoria, exclamam, apontando para o Cristo: “Donde vem este homem? Não é o filho de José? Não é escriba, nem sacerdote e a nenhuma escola pertence. Quem lhe dá o direito de falar assim?

É como se pedissem ao furacão os passaportes e seus documentos à brisa
da tarde. Os homens da luz oficial e artificial contestam ao sol o direito de brilhar! Tal foi sempre a pretensão deles, que são os mesmos em toda parte. Qualificaram a Sócrates de ateu, ao Cristo de preposto de Belzebú.

Assim também foi que, em nosso tempo, alguns fanáticos da ciência privilegiada acusaram Pasteur de exercer ilegalmente a medicina.




A ideia de laicismo - 2
C. Wagner
Reformador (FEB) Junho 1923



Não só, como o provam todas as experiências, o elemento leigo é o elemento inicial das religiões, mas também é por seu intermédio que elas se alimentam e refrescam ao longo de toda a sua evolução e, quando a anquilose (rigidez nas articulações), a velhice, a decrepitude as atingem, é por meio dele que se rejuvenescem.

Que teria sido das religiões, no mundo, se, de tempos a tempos, não houvessem surgido homens em os quais elas reviviam?

Quaisquer que sejam a antiguidade, a beleza, o valor, a verdade fundamental de uma religião, se ela não renasce, morre de formalismo. Renascer é a lei de toda verdadeira vida. Preciso se faz que a religião se retempere constantemente em suas origens leigas. Aí está a Fonte da Mocidade.

As famílias nobres, de grande ancianidade (longo tempo de existência), cujos nomes as vezes remontam muito longe no passado, são, no entanto, bem jovens, em comparação com o plebeísmo de que descendem, plebeísmo poderoso, original, que faz que Carlos Magno descenda de Pepino e que tudo o que há de nobre no mundo deva suas qualidades, seu sangue, a algum sólido plebeu que representa o começo da raça. Do sangue vermelho do plebeu é que provém o sangue azul das velhas famílias.

Ai destas, ai dos países, se se não revigoram nos grandes reservatórios, nas cisternas profundas da seiva plebeia. Secam-se lhes as medulas e um sangue empobrecido é o que lhes corre nas artérias.

Anteu, o velho gigante da mitologia, era invencível porque, no momento
preciso em que seus inimigos iam obriga-lo a beijar o pó, nova força lhe advinha do contato com a terra, sua mãe.

No mesmo caso está a humanidade religiosa.

Chegadas a um certo ponto de desenvolvimento, tendo-se tornado um pouco estranhos pela forma e pelo conceito, as religiões perdem o vigor combativo e a capacidade de conquistar, a menos que toquem o solo popular, nutriente e tonificante.

Nossos sentimentos, mesmo os que se aplicam a vida diuturna, não se conservam bem vivos, senão quando há neles um elemento primaveril. Só sob a condição de que haja um pouco de amor a reflorir, todos os anos, como os rebentos novos, os nossos sentimentos de família se mantêm verazes. De outro modo, são quais flores fenecidas, a que somente a recordação dá valor, impregnando-as, porém, de melancolia, Não são elas as testemunhas do que já não vive? Quantos e quantos os lares onde a afeição já não passa de relíquia incapaz de reflorir em manifestações novas! Quantos dogmáticos, que são simples herbários (coleção de plantas dessecadas)! Quantos credos, simples plantas fanadas (amputadas)!

*

Pelo contato direto com o saber de seu tempo é que um sábio, embora idoso, guarda a frescura, e se mantém ao nível do saber moderno, mutável, a lhe crescer em torno. Não rompeu com o seu tempo: as duas funções fundamentais da vida, da vida comercial como de toda vida orgânica, nele se conservam. Recebe e gasta; aprende e esquece; adquire e consome.

Aos organismos muito velhos é comum o acidente de experimentarem profundas perturbações funcionais. Eles guardam consigo as substâncias nocivas e rejeitam os alimentos vivificantes. Não é essa, exatamente, a moléstia que, nos dias atuais, atacou certas coletividades religiosas, obstinadas em excluir e expulsar o que de melhor possuem? Outra enfermidade que se alastra nas religiões envelhecidas é a tendência que manifestam para se declarar completas, definitivas: nada mais se recebe e nada mais sai. Tais religiões se colocam por si mesmas em estado de conserva. Lacrado se acha o vaso que as contém. Nele não mais penetra o ar, porque o ar, que vivifica os vivos, destrói os mortos. E esses mortos do mundo espiritual, que pretendem governar os vivos, declaram: Ne varietur! Sint ut sunt, aut non sint! (‘Que não se alterem. Que sejam como são ou deixem de existir’. Resposta do Geral dos jesuítas, Padre Ricci, a alguém que lhe propunha modificar os estatutos da Companhia). É a eterna formula, não de uma só categoria de conservadores extremados, ou de um único clericalismo religioso, mas de todos.

Nesse momento de suas existências, as pretensões que elas alimentam se tornam uma ameaça para a vida ambiente: as necrópoles por demais vastas comprometem a higiene da cidade.

É então que surge a necessidade premente, que digo? O imperioso dever que temos de nos reabastecermos, de fazermos provisão de ar puro e de pensamentos rejuvenescidos. Para nos preservarmos das influências destruidoras que nos espiam, a nós e as nossas crenças, cada um é convidado muito seriamente a renovar o seu patrimônio interior, a refazer o seu inventário moral, a voltar-se sobre si mesmo. É convidado a laicificar a sua religião, isto é, a tornar viva, atual, familiar a sua fé, tira-la do vetusto escrínio em que já não se ousa tocar, tão venerável é ele, e a pô-la em circulação na vida cotidiana. Aquele, que se condena a comer o pão que seus antepassados cozeram, vem, afinal, a encontrar somente pedra. O dever de cada geração consiste em amassar ela própria a sua farinha e cozer o seu pão. Só assim este se lhe transformará em suco e em sangue.

Se a nossa época se submeter a esse trabalho necessário, não só dará à sua vida uma base mais substancial, como também se livrará ao mesmo tempo da peste de sectarismo que a corrói. Vivendo dos elementos simplificados e puros da sua religião, cada um se sente capaz de apreciar as dos outros. Sob todas as efígies das diversas moedagens, descobrir-se-á o mesmo metal primitivo. Simultaneamente, cada um se terá colocado em posição de fraternal encontro com todos os homens de boa vontade, ainda que estranhos a qualquer agrupamento religioso. Todos os grandes movimentos de renovação da humanidade foram movimentos de regressão para o laicismo, para a  simplicidade, para a popularidade primordial.

Sempre o mesmo fenômeno: Em meio de uma época de esterilidade espiritual, de penúria e de miséria, entre oráculos que deixaram de falar e remédios que já não curam, um homem toma a resolução de ser de novo, muito simplesmente, isto - um homem. Tem a coragem de erguer a fronte para a mensagem das estrelas e de fitar com olhar tranquilo e sincero o vórtice de sua alma. Renuncia a todas as cartas que se hão levantado do Universo e, guiado apenas por essa palavra de ordem, obscura, mas invencível, que Deus escreve no coração dos pioneiros, aventura-se por sobre as ondas desmedidas, onde há riscos, mas onde é puro o ar, onde se efetuam as grandes descobertas e de onde se veem, branqueando no horizonte, as praias dos novos mundos.

Essa coragem é a Fé e esse homem salva-o a sua fé. Ele torna a encontrar o Deus vivo e reabre, para os outros, as fontes da vida profunda.



A ideia de laicismo - 3
C. Wagner
Reformador (FEB) Junho 1923


Um fato evidente mas que pode parecer singular aos que apenas conhecem o Cristianismo através das máscaras heráldicas e da majestade pétrea dos dogmas, é que o Evangelho, na sua origem, na pessoa do Cristo, na pessoa dos apóstolos, na forma do ensino e pela ausência completa de ritual, foi uma religião essencialmente e absolutamente leiga. Já o velho Judaísmo, pelo veto de seus profetas, afastara de seu templo as imagens visíveis de Deus, que fatalmente induzem as multidões às grosseiras idolatrias. Conservara tão somente a habitação, mas o habitante era espírito. Com o correr dos tempos, oh! a Casa se tornou o ídolo. E, sentado no monte, o Cristo, quando seus discípulos, tomados de veneração pelo velho Templo e pelas suas santas tradições, lhe disseram: “Que edifício! Que maravilha!” O Cristo, o Filho do homem, se viu obrigado a responder-lhes: “De tudo isto não restará pedra sobre pedra.”

Com efeito, se é certo que nunca ninguém teve em mais alto grau do que
Jesus a veneração de todas as tradições sagradas, o sentimento filial que se deve nutrir para com os Paes, sentimento sem o qual não há história sólida, também é inegável que ninguém melhor do que ele compreendeu o perigo das tradições mortas. Sabia que, com o perpassar dos anos, em toda casa construída por mãos humanas, a Idolatria nos espreita por detrás de todos os preceitos de lei e de todas as fórmulas de doutrina. Sabia que, se não morre a tempo, a letra mata o espírito, como o ovo mataria o passarinho, se não assentisse em quebrar-se, ao soar a hora do nascer deste último.

Quando, naquela época, acesa ia a luta entre Garizim, o templo dos Samaritanos, e Morijá, o templo dos Judeus, e de cada um dos dois montes adversos os anátemas choviam sobre o outro, como se continua a praticar em nossos dias, a fim de provar ao próximo que a nossa religião vale mais do que a sua, o Cristo mostrou a sem-razão dos dois clericalismos em guerra, dizendo:   “Vem o tempo, e já veio, em que não mais se adorará nem neste monte, nem no outro. Deus é espírito e quer que os que o adoram o adorem em espírito e verdade.”

Ser-lhe-iam indiferentes as formas do culto? Não. Da necessidade delas, ou, pelo menos, de sua graça e utilidade, não tinha ele a compreensão? - Tinha-a muito bem; mas sabia que, desde que existem o espírito e a verdade, as formas brotam incessantemente, novas e frescas, da fonte inesgotável do coração. Sob essa condição, exclusivamente, a forma é benéfica e não usurpa o lugar da substância. Uma forma venerável por si mesma é inimiga do fundo e se torna, afinal, o túmulo do espírito, com relação ao qual lhe cabe a missão de ser o envoltório maleável e dócil.

*

O Cristo é um leigo, um homem do povo, que nada tem que ver com a casta dos sacerdotes e não lhes toma de empréstimo os métodos.

Ele se consideraria traidor à sua missão, se buscasse para si outro prestígio que não o da verdade, a brilhar com o seu brilho próprio e reclamando apenas a homenagem das consciências retas. Propagou sua doutrina, mas sem mandato oficial e foi um escândalo eclesiástico aquela sua maneira informe e perfeitamente anárquica, ao parecer dos profissionais da religião, de organizar o reino de Deus com pescadores encontrados à margem de um lago, a lançar suas redes, e que jamais se haviam assentado aos pés dos grandes mestres da época. Entretanto, essa aparente desordem resultava de uma ordem superior.

A fim de chegar até ao veio profundo, onde se sente brotar das fontes eternas uma água que dessedenta para sempre, não lhe era preciso desembaraçar-se da cegueira dos monopólios e do orgulho dos sacerdócios? Para tocar as cordas de ouro adormecidas no fundo do coração dos homens, as cordas divinas que ressoam ao influxo das coisas eternas, não lhe era preciso renunciar à expressão estereotipada, que não faz vibrar mais coisa alguma, e achar de novo, muito simplesmente, o grito da alma humana? Não era preciso, para restaurar o ideal moral e a santidade da vida familiar e diuturna, renunciar às pretenciosas riquezas de uma santidade artificial, volver a essas santas banalidades de que a humanidade é feita e dar-lhes uma expressão tão viva, tão atual, que, embora velhas como o mundo, tais coisas parecessem novas, como a fresca manhã?

O Cristo pregou uma religião tão leiga, que seus sacramentos são a transposição, para o espiritual, dos atos correntes da vida; uma religião tão simples, que Deus traz nela um nome sem qualquer lustre deste mundo, um nome não tomado aos tiranos orientais, nem aos senhores da terra, nem aos reis que comandam e que por vezes esmagam os povos, mas um nome colhido nos lábios das criancinhas, junto dos berços que balançam. Nunca se saberá bem quanto são leigas todas estas coisas - o presépio de Belém, a oficina de Nazaré, a cruz do Calvário, de um laicismo rude e escultural, talhadas na rocha viva desta vida humana que tem por destino ser formada de aparente miséria e de invencível grandeza, do limo da terra e do sopro de Deus.

Quanto ao templo, disse Ele: “Sois vós o templo de Deus; os homens são a Igreja, o edifício vivo, cada uma de cujas pedras sois vós.” E não sabemos quão preciosas são essas pedras; não, não sabemos, nós que nos arrastamos na lama dos caminhos de que mármore puro somos feitos. Não sabemos, nós que apodrecemos no isolamento, longe dos nossos irmãos, que invencível baluarte de ternura e bondade poderíamos ser. Não sabemos com que magnífico templo, com que cúpula, vasta qual o firmamento azul, poderíamos enriquecer a humanidade se, erguendo-nos do nosso pó, nos encostássemos uns aos outros, como vivas pedras do templo vivo. Não sabemos quantas coisas, para as quais os nossos olhos, hoje cegos, não têm olhares, veriam os luzir nas nossas noites, se, afinal, a claridade, vindo de nossa alma renovada vinda do Deus interior, iluminasse as sombrias estradas que a humanidade, há séculos, palmilha, ferindo os pés.

Irmãos meus! Conto ter-vos posto no começo da senda. Fareis o resto da jornada.

No princípio é que está a religião leiga. Ela é direita, simples, desembaraçada, sem ornamento, nem auréola, e é divina, porquanto o que é verdadeiramente humano, de uma humanidade original e autêntica, eis o que é divino.

*

Nunca se extirpará do coração humano a fibra religiosa. Ela faz parte do nosso patrimônio universal. Mas, para que conserve a sua generosa influência, preciso é que se renove em cada geração. Laicificar a sua religião é dever de todo homem, como de toda coletividade religiosa. Nossas almas vivem do que de leigo guardamos em a nossa religião. O bispo e o teólogo, como os simples fieis, se acham adstritos à mesma lei. O que de mais puro, de melhor, de mais eficaz existe no tesouro religioso que possuem são os raros elementos simples e primitivos que eles conservaram e que se vivificam diariamente no contato com a realidade. Esses elementos formam o capital, os bens de raiz, o ouro em barra, com relação ao que, os dogmas, os ritos, todo o aparelho intelectual ou cerimonial da religião figuram o papel-moeda.

Que vale o papel, quando não mais represente riqueza realizável? Eis aí exatamente o que vale a religião privada de sua base leiga.

Para quem tem consciência do lugar que a religião ocupa no mundo, é que se mostra a necessidade urgente e o imperioso dever dos tempos atuais. Se a nossa época se submeter a esse trabalho indispensável, não só dará à sua vida, ameaçada de inanição moral, mais substanciosa base alimentar, como também se livrará da peste de sectarismo que a devora. As sociedades se retalham em seitas, quando perdem o hábito de volver tais fontes, ao mesmo tempo que o uso de pensar por si mesmas. Logo que se tenta esse passo sério em busca do essencial, as coisas secundarias passam a plano inferior.

Ora, é sempre por amor destas últimas que os homens se dividem. Mutuamente nos dilaceramos, porque vivemos na superfície; nas profundezas, fraternizaríamos pelas raízes. O sectário religioso ou leigo, apenas uma coisa esqueceu, a única que tem real valor: que ele é um homem. Ao sectário, é sempre estranho tudo o que tenha caráter humano.

Muito se fala de cisma e não é de admirar: o cisma prolifera por toda parte. Todo grupo mostra tendência a se fracionar em subgrupos e os homens se saúdam a golpes de anátemas. Que anacronismo! Como pode ser que, neste tempo, a que a história deu as suas grandes lições de unidade, a que a ciência forneceu as provas da solidariedade fundamental e os mais amplos meios de realiza-la, só tenhamos libertos os olhos para o que nos divide? Que oposição entre a amplitude dos nossos destinos e a estreiteza das nossas vistas! Quem nos veja, cada um entrincheirado na sua caverna, terá a impressão de que somos trogloditas.

O momento que passa, porém, não pede almas de trogloditas, pede homens animados de espírito vasto, fraterno, verdadeiramente católico, isto é, universal. Dá-se assim que, por surpreendente contraste, os termos leigo e católico, um significando popular, universal o segundo, são meros sinônimos de outra palavra capaz de absorve-los ambos, a palavra: humano. Limpe-se, pois, do espirito hierárquico cismático a religião, cujo dever é tender sempre para o universal, não pelo espírito de dominação, mas pelo amor; não se separe nem da família, nem do pensamento vivo, nem do espírito público, nem dos crentes que estão de parte! Limpem-se também, por sua vez, do espírito cismático os que fazem profissão de laicismo; deixem de excluir do patrimônio humano a fibra religiosa, que é fibra vital! Faça-se mais leiga a religião e que o espírito leigo cultive melhor seus domínios religiosos! E teremos achado a fórmula do futuro.

*

Assim é que precisamos, em o nosso tempo, encontrar de novo a Fé. Segundo a palavra da Escritura, ela não está no céu, onde não poderíamos procura-la, nem além dos mares longínquos: está nos nossos lábios, está nos nossos corações.


Tenhamos simplesmente a coragem de ser homens; executemos este ato interior, o mais audacioso que uma criatura possa praticar; abramos crédito, crédito ilimitado, ao Poder paternal em que o mundo repousa. Sejamos crentes, como os rochedos em suas bases, como os pássaros que batem as asas para regiões que nunca viram, mas certos, de instinto, que as encontrarão.

Sejamos homens pela Fé profunda na humanidade; amemos à velha família dolorosa e militante. Lembremo-nos de que o nosso primitivo plebeísmo constitui a maior riqueza e que o santuário mais antigo, mais venerável, não construído por humanas mãos e que jamais nenhum martelo do tempo reduzirá a pó, é o santuário humano, primevo, leigo, edificado pelo próprio Deus, capaz de renascer sob formas novas, em cada idade diferente. Para a manutenção desse santuário trabalharam todos os que hão proporcionado à humanidade um pouco de ar fresco, quando ela gemia em espaços confinados.

Nessa tarefa trabalharam os profetas, o Cristo, os mártires, os reformadores, todos os que, pertencendo a não importa que religião, pela forma exterior, comungaram, nos momentos mais sagrados de suas vidas, na substância profunda da humanidade, e que são irmãos de seus irmãos, por cima das muralhas de Morijá e das barreiras de Garizim.


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