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sábado, 2 de maio de 2015

A Velha História da Traição de Judas

A Velha História
da Traição de Judas

Arthur da Silva Araújo
Reformador (FEB) Abril 1971

            É velho costume chamar-se “Judas” às pessoas que agem com falsidade,
traiçoeiramente, praticando atitudes incorretas. A histórica personagem tornou-se símbolo da ignomínia humana; e nós, como que agravando a situação, continuamos ofertando-lhe, pela força do hábito, pensamentos negativos e destruidores.

            A questão, por ser delicada, requeria comentários esclarecedores, os quais, por seu turno, reclamavam prévio estudo da personalidade de Judas. Fomos conduzido, assim, a consultar “Os Quatro Evangelhos”, de J. B. Roustaing, encontrando, no segundo volume, este valioso pronunciamento:

            “Entre os doze estava Judas, que traiu a Jesus. Era um Espírito elevado em inteligência, mas, pedindo permissão para auxiliar a Jesus, se encarregara de uma missão acima de suas forças, tomara um peso superior ao que lhe era possível suportar, e faliu”.

            E no terceiro volume há esta preciosa elucidação:

            “Judas, que era um Espírito desejoso de adiantar-se, mas orgulhoso, e por demais confiante nas suas forças, pedira, antes de encarnar, que lhe fosse concedido participar da obra do Cristo, esperando tirar dessa participação abundantes e preciosos frutos. Em vão seus Guias lhe fizeram ver os escolhos contra os quais iria chocar-se. Em vão lhe disseram ser ainda muito fraco para suportar tão grande peso, e lhe mostraram que, obumbradas suas resoluções e esperanças na carne, os sentimentos de inveja e de cobiça despertariam e o arrastariam inevitavelmente a uma queda, que tanto mais perigosa seria quanto mais obstinado ele perseverasse no seu propósito”.

            O tema é apaixonante e pode ser apreciado por variados ângulos, levantando-se hipóteses que permitam o nosso entendimento acerca do triste episódio.

*

            Primeira hipótese:

            Ter-se-ia Judas realmente conduzido de maneira venal? Ter-se-ia movimentado, no lamentável acontecimento, impulsionado apenas pelos imperativos do dinheiro? Teria beijado o Mestre em troca de vantagens financeiras?

            Não nos parece tenha sido essa a sua meta, porque era ele, na verdade, pessoa digna e proba (embora disso discordasse o apóstolo João), a ponto de ter sido o escolhido pelo Mestre para exercer as funções de tesoureiro do colégio apostólico. Cabia-lhe angariar fundos, fazer coletas e providenciar donativos, de modo a que o agrupamento dispusesse do numerário suficiente para atender a aflitos e necessitados que buscavam, além dos benefícios espirituais, alimentos e agasalhos.

            Tudo indicava que Jesus devesse ter escolhido Mateus para essa função, face à sua maior experiência no trato do dinheiro, como antigo cobrador de impostos. Surpreendentemente, porém, Judas foi o indicado para esse mister, para o que deve ter contribuído a retidão do seu caráter.

            Admitamos, entretanto - só para raciocinar -, que Judas se tivesse deixado envolver pelo polvo da corrupção. Teria ele, em consequência, sido comprado pelo valor, verdadeiramente ridículo, de trinta moedas de prata? Não teria sido mais lógico que fugisse com a bolsa das esmolas? Por que, então,satisfeito nos seus intentos, apelou para o suicídio?

            Segunda hipótese:

            Assegura-se que Judas, praticando a traição, estaria servindo de instrumento para que se confirmassem as escrituras. Ora, a aceitar-se tal versão, Judas teria sido escolhido por Satanás (?!?), especificamente, para a prática do grave delito. A Doutrina que nos consola e felicita, consagrando o livre arbítrio recusa a fatalidade. Como, pois, aceitar a. interferência de Satanás? A ser isso verdade, Judas não seria uma figura odiada por muitos, como acontece, merecendo ser trata do, ao inverso, como verdadeiro mártir do Cristianismo, fazendo jus ao nosso respeito e à nossa admiração.

            A admitir-se que Judas tivesse sido utilizado por Satanás, para confirmação das escrituras, estaríamos lançando por terra o próprio edifício doutrinário.

*

            Terceira hipótese:

            Judas era judeu e, como tal, mui justamente sonhava com as alegrias do seu povo. Admite-se tenha sido um autêntico patriota. Movido, portanto, por motivos libertadores, se teria ligado ao Nazareno na convicção de que Ele, sendo o Messias prometido, chegara exatamente para oferecer carta de alforria à sua raça oprimida.

            Com a continuação do convívio com Jesus, porém, fora se convencendo de que o Mestre não viera para solucionar o problema de Israel, mas, na verdade, para oferecer um programa de salvação para todos os povos, entrelaçando pretos e brancos, ricos e pobres, felizes e desgraçados. Não viera para aquinhoar este ou aquele povo ou raça, mas para entrar em ligação com todos, objetivando conduzi-los, através dos caminhos da compreensão e do amor, aos estágios mais altos da felicidade.

            Caberia a Judas, se quisesse, dar as costas ao Mestre, desligando-se do agrupamento apostólico. Por que traí-lo? Por que as trinta moedas? Por que o suicídio?

*

            Quarta hipótese:

            Outra razão a ser considerada é a que se relaciona com a perda da confiança em Jesus, face às suas frequentes afirmações de humildade.

            A declaração de que seria subjugado pelas forças dominantes e condenado à morte, poderia ter enchido Judas de apreensões, temeroso das fraquezas do Mestre e talvez preocupado quanto aos riscos que também viesse a correr.

            Admitamos - só para argumentar - que Judas tivesse pensado na conveniência de se afastar de Jesus, colocando-se, desse modo, em posição de maior segurança pessoal. Caso acontecesse a perda da fé, cabia-lhe transferir-se para as hostes adversárias, reunindo-se às altas figuras de Roma e da Palestina.

            Trair Jesus é hipótese absurda, notadamente quando esse ato teve como epílogo os gestos de arrependimento e de vergonha, refletidos no suicídio.

*

            Quinta hipótese:

            Recorda-se que Jesus, certa vez, em Betânia, na casa de Maria, irmã de Lázaro,
teve seus pés banhados por unguento de alto valor, e que Judas, também presente, recriminou o fato, com veemência - como bom tesoureiro -,' sugerindo se vendesse o perfume de modo a que, com o dinheiro arrecadado, melhor pudessem ser atendidos os pobres.

            Jesus, que sabia estar sendo tramada sua “morte” e, ainda, que seu corpo, de acordo com a tradição judaica, deveria ser aromatizado para descer ao sepulcro, replicou a Judas:

            - “Maria guardou esse perfume para a minha sepultura”.

            Traumatizado com a censura pública, Judas teria jurado vingança, planejando a
entrega do Mestre aos seus algozes. A tese é fraca, mas, ainda que a aceitássemos, como justificar o recebimento das moedas de prata e o gesto extremo do suicídio?

                                                                       *

            Verificamos, desse modo - sempre admitindo hipóteses -, que as da venalidade, da ligação com Satanás, do patriotismo, da perda da fé e da mágoa não se ajustam à realidade dos fatos.

            Uma outra, entretanto, pode ser considerada, evidentemente mais sensata, e que, no nosso humilde entender, melhor esclareceria o episódio. Prende-se à possível precipitação de Judas, dentro do apressado julgamento da conduta de Jesus.

            Como bem retratou Roustaing, Judas era “um Espírito elevado em inteligência”, que confiava demais nas suas forças” e, ainda, que esperava obter “abundantes e preciosos frutos” na participação da obra de Jesus. Pensava que o Mestre era muito doce, que suas palavras eram realmente formosas, que seus conceitos eram por demais comoventes, mas que sua obra vinha se processando de maneira muito lenta, quando eram exigidas medidas e providências enérgicas e capazes de assegurar rápida vitória.

            Judas, que “se encarregara de uma missão acima de suas forças, que tomara um peso superior ao que lhe era possível suportar”, como está em “Os Quatro Evangelhos”, ficara verdadeiramente estarrecido ao ouvir, dos lábios de Jesus, a anunciação de que “menor seria o maior” e de que o “que se humilhasse seria exaltado”.

            Tendo testemunhado muitos dos chamados “milagres”, e sabendo ser Jesus um enviado de Deus, passara a se convencer de que o Mestre possuía condições para fulminar qualquer de seus adversários, desde que recorresse à sua imensa força. Tomando esse ponto de partida e escudado no seu enorme orgulho, foi permitindo que em seu cérebro se alojasse a ideia de que Jesus, pelo simples exercício da vontade, destruiria as barreiras levantadas pelo sacerdócio judeu e pelos delegados de Herodes.

            Judas amava profundamente a Jesus e aceitava, em sua inteireza, a comovente mensagem de salvação que Ele nos veio trazer, mas, a par disso, sempre afoito, considerava que o Mestre vinha prejudicando a marcha, dos acontecimentos e retardando a vitória final ao insistir nas teclas da humildade e do perdão ilimitado.

            Não tinha dúvidas quanto à pureza dos sentimentos de Jesus, os quais sobrepairavam às maldades humanas, mas também sabia que essa conduta não era a mais indicada, uma vez que as circunstâncias estavam exigindo pulso forte, reclamando ação vigorosa, de modo a facilitar a disseminação dos ensinos pregados. Eram os sentimentos de “inveja e cobiça” que “o arrastariam inevitavelmente a uma queda”.

            Compreendia que o movimento cristão era muito lindo, mas que jamais chegaria a triunfar com a simples participação de pescadores humildes e de pessoas de poucas letras ou de reduzidas condições financeiras.

            Sua cabeça estalava e ia admitindo a possibilidade de uma junção estratégica com as forças dominantes, que detinham o prestígio social e o poder econômico, visando ao inimigo comum, representado pelos obstáculos do caminho.

            É bem provável que Judas tenha conversado com Jesus acerca das ideias que povoavam o seu cérebro, na busca aflitiva de uma fórmula capaz de harmonizar os interesses da comunidade cristã com os do grupo oposto, mediante aliança tática que se completaria com o consequente expurgo dos elementos que revelassem, mais tarde, oposição aos princípios esposados por Jesus. Sempre recorrendo à evasiva, certamente o Mestre ia deixando sem resposta as inaceitáveis sugestões de Judas, o que o levava a maior inquietação e desespero.

            Judas passou a armar, então, o tenebroso plano: sugeriria aos adversários a prisão de Jesus e Ele, então, dispondo de poderes divinos, liquidaria formal e categóricamente com seus algozes.

            O fruto, no entender de Judas, estava pronto para ser colhido, não se justificando as protelações.

*

            Judas acabou por tomar a terrível resolução, avistando-se com os altos dignitários do Sinédrio, a pretexto de lhes pedir um auxílio para a bolsa das esmolas, ocasião em que obteve a nefanda ajuda das trinta moedas. Ao curso dessa entrevista, com muita astúcia, ter-se-ia queixado de Jesus, insinuando a possibilidade de sua prisão, para tranquilidade de todos. Os sacerdotes e os escribas vibraram de alegria, acertando-se as minúcias do acontecimento que finalizaria com o insulto do Calvário.

            O Mestre conhecia tudo que se passava e não estava alheio aos pensamentos de Judas, permitindo, contudo, que eles se desenvolvessem, em evidente sinal de respeito ao livre arbítrio do discípulo irrequieto. Apesar disso, Ele amava a Judas, tanto que, naquele dia trevoso, quando os soldados foram detê-lo, Jesus o saudou com estas palavras repassadas de carinho:

            - “A que vieste, amigo?”

            Naquele momento difícil, Jesus não recorreu a palavras de acusação ou de queixa. Tratou Judas de “amigo”, porque reconhecia o amor que o discípulo lhe dedicava e o erro que estava cometendo. Sabia que Judas caminhava para um despenhadeiro, mas não lhe cabia impedir a experiência que havia livremente escolhido.

*-

            Quando os soldados romanos detiveram o Mestre, Judas, a distância, antegozando a vitória, teria pensado:

            “- Chegou a hora. Ele reagirá com sua força divina, fulminando os opressores.”

            Mas Jesus, ao contrário das previsões, deixou-se prender, pacificamente, como se fosse criatura comum. Traumatizado com o espetáculo, Judas pôs-se em pranto e, como que aturdido, olhava para aquelas cenas e não as assimilava, porque jamais concebera a derrota de Jesus perante os homens. Experimentava a dura e amarga realidade: Jesus fora preso e seria condenado à morte, cabendo-lhe toda culpa pelo acontecido. Era o único responsável.

            Com a alma estraçalhada, teria retornado ao Sinédrio, desesperado, para devolver as trinta moedas de prata que haviam sido o pretexto da entrevista, e, após, alucinado, entregou-se ao suicídio.

*
            O Espírito Humberto de Campos, em “Crônicas de Além-Túmulo” , oferecendo valioso depoimento de Judas, recorda a luta então existente: o Sinédrio desejando o reino do Céu e, Roma, o reino da Terra, com Jesus entre essas duas forças antagônicas, na sua pureza imaculada. Judas confessa ter planejado a revolta surda, mas acrescenta que tudo se desenrolara de maneira imprevista e com desfecho que não estava nas suas cogitações.

*

            Dois mil anos depois, continuam os homens recorrendo ao insulto, chamando-se de “Judas” ... Recordam a traição do apóstolo, examinando-a superficialmente, através da “letra que mata”, sem se mostrarem dispostos a procurar as causas determinantes da traição, que foram marcadas, é certo, com acentuado orgulho, mas, de igual sorte, com o sublimado afeto que o discípulo afoito dedicava ao meigo e doce Pastor de nossas almas.


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