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terça-feira, 23 de agosto de 2011

03 / 09 Textos do Centenário


Alvorada de luz
num mundo de trevas

por Indalício Mendes
in Reformador (FEB) Abril 1957
Parte 3/3

A espinha dorsal do Espiritismo

     Havendo recebido a árdua incumbência de coordenar e ajustar os ensinamentos recebidos dos Espíritos, Allan Kardec realizou magistral tarefa, legando ao mundo a Codificação, que é a espinha dorsal do Espiritismo.
     Vamos mencionar algumas dessas preciosas joias do pensamento espírita, que se encontram na grande obra que está completando seu primeiro centenário.

     “O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita.

     “Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível, cuja destruição pela morte lhes restitui a liberdade. Entre as diferentes espécies de seres corpóreos, Deus escolheu a espécie humana para a encarnação dos Espíritos que chegaram a certo grau de desenvolvimento, dando-lhe superioridade moral e intelectual sobre as outras.

     “A alma é um Espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório. Há no homem três coisas: 1º, o corpo  ou ser material, análogo aos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2º, a alma ou ser imaterial, Espírito encarnado no corpo; 3º, o laço que prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito. Tem assim o homem duas naturezas: pelo corpo, participar da natureza dos animais, cujos instintos lhe são comuns; pela alma, participa da natureza dos Espíritos.

     “O laço ou perispírito, que prende ao corpo o Espírito, é uma espécie de envoltório semi-material. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro. E Espírito conserva o segundo, que lhe constitui um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, porém que pode tornar-se acidentalmente visível e mesmo tangível, como sucede o fenômeno das aparições.

     “O Espírito não é, pois, um ser abstrato, indefinido, só possível de conceber-se pelo pensamento. É um ser real, circunscrito, que, em certos casos, se torna apreciável pela vista, pelo ouvido e pelo tato.

     “Os espíritos pertencem a diferentes classes e não são iguais, nem em poder, nem em inteligência, nem em saber, nem em moralidade. Os da primeira ordem são os Espíritos superiores, que se distinguem dos outros pela sua perfeição, seus conhecimentos, sua proximidade de Deus, pela pureza de seus sentimentos e por seu amor do bem: são os anjos ou puros Espíritos. Os das outras classes se acham cada vem mais distanciado dessa perfeição, mostrando-se os das categorias inferiores, na sua maioria, eivados das nossas paixões: o ódio, a inveja, o ciúme, o orgulho, etc. Comprazem-se no mal. Há também, entre os inferiores, os que não são nem muito bons nem muito maus, antes perturbadores e enredadores, do que perversos. A malícia e as inconsequências parecem ser o que neles predomina. São os Espíritos estúrdios ou levianos.

     “Os espíritos não ocupam perpetuamente a mesma categoria. Todos se melhoram passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita. Esta melhora se efetua por meio da encarnação, que é imposta a uns como expiação, a outros como missão. A vida material é uma prova que lhes cumpre sofrer repetidamente, até que hajam atingido a absoluta perfeição moral.

     “Deixando o corpo, a alma volve ao mundo dos Espíritos, donde saíra, para passar por nova existência material, após um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanece em estado de Espírito errante”.

     “Tendo o Espírito que passar por muitas encarnações, segue-se que todos nós temos tido muitas existências e que teremos ainda outras, mais ou menos aperfeiçoadas, quer na Terra, quer em outros mundos. A encarnação dos Espíritos se dá sempre na espécie humana; seria erro acreditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no corpo de um animal.

     “As diferentes existências corpóreas do Espírito são sempre progressivas e nunca regressivas; mas, a rapidez do seu progresso depende dos esforços que faça para chegar à perfeição.

     “As qualidades da alma são as do Espírito que está encarnado em nós; assim, o homem de bem é a encarnação de um bom Espírito, o homem perverso a de um Espírito impuro.

     “A alma possuía sua individualidade antes de encarnar; conserva-a depois de se haver separado do corpo.

     “Na sua volta ao mundo dos Espíritos, encontra ela todos aqueles que conhecera na Terra, e todas as suas existências anteriores se lhe desenham na memória, com a lembrança de todo o bem e de todo o mal que fez.

     “O Espírito encarnado se acha sob a influência da matéria; o homem que vence esta influência, pela elevação e depuração de sua alma, se aproxima dos bons Espíritos, em cuja companhia um dia estará. Aquele que se deixa dominar pelas más paixões, e põe todas as suas alegrias na satisfação dos apetites grosseiros, se aproxima dos Espíritos impuros, dando preponderância à sua natureza animal.

     “Os Espíritos encarnados habitam os diferentes globos do Universo. Os não encarnados ou errantes não ocupam uma região determinada e circunscrita; estão por toda parte no espaço e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contínuo. É toda uma população invisível, a mover-se em torno de nós.

     “Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo físico. Atuam sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das potências da Natureza, causa eficiente de uma multidão de fenômenos até então inexplicados ou mal explicados e que não encontram explicação racional senão no Espiritismo.

     “As relações dos Espíritos com os homens são constantes. Os bons Espíritos nos atraem, nos sustentam nas provas da vida e nos ajudam a suportá-las com coragem e resignação. Os maus nos impelem para o mal: é-lhes um gozo ver-nos sucumbir e assemelhar-nos a eles.

     “As comunicações dos Espíritos com os homens são ocultas ou ostensivas. As ocultas se verificam pela influência boa ou má que exercem sobre nós, à nossa revelia. Cabe ao nosso juízo discernir as boas das más inspirações. As comunicações ostensivas se dão por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestações materiais, quase sempre pelos médiuns que lhes servem de instrumentos. Os Espíritos se manifestam espontaneamente ou mediante evocação.

     “A moral dos Espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta máxima evangélica: Fazer aos outros o que quereríamos que os outros no fizessem, isto é, fazer o bem e não o mal. Neste princípio encontra o homem uma regra universal de proceder, mesmo para as suas menores ações.  Ensinam-nos que o egoísmo, o orgulho e a sensualidade são paixões que nos aproximam da natureza animal, prendendo-nos à matéria; que o homem que, já neste mundo, se desliga da matéria, desprezando as futilidades mundanas e amando o próximo, se  avizinha da natureza espiritual; que cada um deve tornar-se útil, de acordo com as faculdades e os meios que Deus lhe pôs nas mãos para experimentá-lo; que o Forte e o Poderoso devem amparo e proteção ao Fraco, porquanto transgride a lei de Deus aquele que abusa da força e do poder para oprimir o seu semelhante. Ensinam, finalmente, que, no mundo dos Espíritos, nada podendo estar oculto, o hipócrita será desmascarado e patenteadas todas as suas torpezas; que a presença inevitável, e de todos os instantes, daqueles para com quem houvermos procedido mal constitui um dos castigos que nos estão reservados; que ao estado de inferioridade e superioridade dos Espíritos correspondem penas e gozos desconhecidos na Terra.

     “Mas ensinam também não haver faltas irremissíveis, que a expiação não possa apagar. Meio de consegui-lo encontra o homem nas diferentes existências que lhe permitem avançar, conformemente aos seus desejos e esforços, na senda do progresso, para a perfeição que é seu destino final.” (23)

     Nos trechos do resumo da Doutrina Espírita que acabamos de transcrever, temos a espinha dorsal do Espiritismo. Tudo gira em torno da Doutrina e quem a não conhecer jamais poderá dizer que conhece o Espiritismo. Nossa Doutrina é ao mesmo tempo uma bússola e um escudo, orienta e defende o homem, na caminhada da vida terrena, ensinando-lhe rumo mais curto e mais seguro de alcançar a felicidade. Oferece-lhe meios para abrigar-se das surpresas do mundo espiritual, porque, seguindo os preceitos doutrinários ele se fortalece para a vida física e para a vida do espírito. Atrai a proteção dos Espíritos de luz e naturalmente oferece mais resistência ao assédio dos Espíritos impuros.
    
            Eis porque o estudo atento da Doutrina Espírita é de excepcional importância, e sua exemplificação, da melhor maneira que se possa, uma garantia de dias tranquilos e fecundos no futuro.

Três homens e um só pensamento

     Temos procurado evidenciar neste trabalho os pontos de contato existentes entre Kardec, Pestalozzi e Rousseau, como esclarecimento aos pontos de vista que expusemos, de que o Espiritismo foi uma consequência natural das necessidades humanas, desprezadas pela indiferença dos então responsáveis pela orientação espiritual do homem no Ocidente, quanto às lições do Evangelho. A herança do Cristo foi malbaratada pelas preocupações suscitadas por interesses mundanos e políticos, assim como pela ambição do poder temporal. O Espiritismo restabeleceu na Terra o primado do Cristianismo verdadeiro, em sua forma de pureza primitiva. Todavia, é preciso que não permitamos a contrafação de seus ensinamentos, pois há no redil lobos disfarçados de ovelhas. Elementos egressos de outras crenças se afastam, às vezes, dos preceitos kardecistas para introduzirem práticas inadequadas no Espiritismo, em virtude de não se terem libertado de velhos preconceitos católicos. O Espiritismo de Kardec não tem liturgia, não realiza cerimônias de casamento, de batismo, crismas, consagrações, missas, etc. O Espiritismo, consoante o que se encontra em O Livro dos Espíritos, é simples, sem fórmulas, sem rituais.

     A ideia espírita, que é a ideia fundamental de Jesus, se assenta na Justiça de Deus. Para Kardec, o homem tem de ser educado nos princípios legitimamente cristãos, puramente evangélicos, para se fazer feliz e tornar felizes os seus semelhantes. Essa felicidade tem de se basear na justiça, que também serve de pedestal à liberdade real. “Efetivamente, o critério da verdadeira justiça está em querer cada um para os outros o que para si mesmo quereria, e não em querer para si o que queria para os outros, o que absolutamente não é a mesma coisa. Não sendo natural que haja quem desejo o mal para si, desde que cada um tome por modelo o seu desejo pessoal, é evidente que ninguém jamais desejará para o seu semelhante senão o bem. Em todos os tempos e sob o império de todas as crenças, sempre o homem se esforçou para que prevalecesse o seu direito pessoal. A sublimidade da religião cristã está em que ela tomou o direito pessoal por base do direito do próximo" (24)


     Compreende-se, portanto, que, “considerada do ponto de vista da sua importância para a realização da felicidade social, a fraternidade está na primeira linha: é a base. Sem ela não poderiam existir a igualdade, nem a liberdade séria. A igualdade decorre da fraternidade e a liberdade é consequência das duas outras”. (25) Havendo fraternidade, há justiça; havendo justiça, há liberdade. “Falamos da liberdade legal e não da liberdade natural, que, de direito, é imprescritível para toda criatura humana, desde o selvagem até o civilizado.” (26)

     “Liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras constituem, por si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria  o mais absoluto progresso da Humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação.” (27)

     “Aqueles três princípios são, pois, conforme acima dissemos, solidários entre si e se prestam mútuo apoio; sem a reunião desses, o edifício social não estaria completo. O da fraternidade não pode ser praticado em toda a pureza, com exclusão dos dois outros, porquanto, sem a igualdade e a liberdade não há verdadeira fraternidade.” (27) “Sente-se, porém, que as bases sociais não estão sólidas; a cada passo o solo treme, por isso que ainda não reinam a liberdade e a igualdade, sob a égide da fraternidade, porque o orgulho e o egoísmo continuam empenhados em fazer se malogrem os esforços dos homens de bem” (28)

     Kardec preconiza, portanto, o amor entre os homens, pois a fraternidade nada mais é do que amor.

     Para Pestalozzi, “Quanto mais puros, verdadeiros e educados forem o amor e a religiosidade, mais pura, verdadeira e educada será a capacidade comum que neles se fortifica, dando, como resultado seguro, a felicidade, a operosidade, a constância, a tenacidade e o espírito de sacrifício”” (O Canto do Cisne), e frisa que “o amor é o eterno fundamento da educação.” (Como Gertrude ensina seus filhos) (29) “É oportuno lembrar aqui que a palavra religiosidade, empregada por Pestalozzi, não tem nenhum significado sectarista, nem mesmo metafísico: ela exprime apenas a vida moral do homem nas suas relações com os seus semelhantes, baseadas no amor.” (30)

     “Ele era cristão, mas o seu cristianismo era livre de qualquer dogma. O seu espírito era dotado de uma extrema tolerância para com a crença dos outros.” (31) Esta sua frase sintetiza a condenação do egoísmo e exalta a fraternidade: “Não vives exclusivamente para ti na face da Terra.” (Vigília de um solitário.) (32)

     Para Rousseau, “o grande erro é dar muita importância à vida, como se o nosso ser dependesse dela e como se depois da morte nada mais existisse” (33), acrescentando: “E quando deixamos o nosso corpo, apenas deixamos uma roupagem incômoda.” (34) Vejamos esta afirmativa: “Creio que a alma sobrevive ao corpo suficientemente para a manutenção da ordem; mas quem sabe se é tão suficiente assim para que possa durar sempre? Todavia, concebo que o corpo se use e se destrua pela divisão das partes. Mas não posso conceber uma tal destruição do ser pensante; e não imagino como ele possa morrer. Presumo, pois, que ele não morra. Desde que encontro consolo nesta presunção, que nada tem de desarrazoável, porque havia eu de temer entregar-me a ela?. (35)

     O homem deve apurar suas qualidades morais, do contrário jamais terá a tranquilidade de consciência que procura. “Nossos verdadeiros mestres – disse Rousseau, com muita propriedade – são a experiência e o sentimento,  e nunca  o homem sente melhor o que mais convém ao homem do que nas relações em que ele mesmo se encontra.” (36)

Prelúdio da grande alvorada

     Neste trabalho, situamos a Renascença como ponto inicial da luta pela emancipação intelectual do homem, porque as ideias, asfixiadas pela intolerância da escolástica, adormentadas pela ignorância audaciosa que se amparava em dogmas estreitos e inaceitáveis à luz da razão, despertaram do letargo a que haviam sido levadas pelo ultramontanismo prepotente e cruel. O homem se fatigara de tatear nas trevas da Idade Média, numa submissão humilhante. Sua reação começou pelas artes e pelas letras. Reencetava, pois, a marca civilizadora que fora interrompida com a supressão da liberdade de pensamento. Era mister que essa liberdade fosse conquista a qualquer preço. Assim aconteceu. As idéias cresceram, insuflaram o movimento enciclopédico e este gerou a Revolução Francesa. As forças que haviam criado as Cruzadas acenderam as fogueiras da Inquisição, nódoa indelével na história humana. Os homens de pensamento livre, entretanto, acabariam por extinguir as labaredas da iniquidade e do ódio contra a evolução das ideias.
     Em 1855, um homem de moral sólida e de cultura robusta, que fora o grande discípulo de Pestalozzi, tem sua atenção despertada para as “mesas girantes” e, após natural relutância, resolve, por amor à Ciência e à Verdade, estudar seriamente os fenômenos que tanto interesse suscitavam na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte. Concluíra que as manifestações de inteligência reveladas pelas “mesas girantes” somente poderiam provir de um poder inteligente que as movimentava. Sem abdicar em nenhum modo da autocrítica, esse homem – o médico e professor Hippolyte Léon Denizard Rivail – entregou-se profundamente ao estudo dos fenômenos que vinham desafiando a inteligência e a argúcia dos cientistas da época. Sua incredulidade acabou vencida pela evidência dos fatos, até que, em uma sessão mediúnica realizada em casa do Sr. Roustan, no dia 30 de Abril de 1856, Rivail teve a primeira revelação da missão que iria cumprir. Atuava como médium a Srtª Japhet. Eis como Rivail, que mais tarde seria o nosso Allan Kardec, se refere ao fato: “Foi essa a primeira revelação positiva da minha missão e confesso que, quando vi a cesta voltar-se bruscamente para o meu  lado, e designar-me nominativamente, não me pude forrar a certa emoção.” (37)
     Em 11 de Setembro de 1856, Rivail recebe, na casa do Sr. Baudin, uma mensagem mediúnica firmada por “Muitos Espíritos”, assim redigida: “Compreendeste bem o objetivo do teu trabalho. O plano está bem concebido. Estamos satisfeitos contigo. Continua; mas lembra-te, sobretudo quando a obra se achar concluída, de que te recomendamos que a mandes imprimir e propagar. É de utilidade geral. Estamos satisfeitos e nunca te abandonaremos. Crê em Deus e avante.” (38)

Clarão Bendito num Mundo de Trevas

     Não iremos rememorar as lutas e os sacrifícios de Rivail para levar avante a nobre e espinhosa missão. Sua história é por demais divulgada para o fazermos novamente aqui, com as minúcias habituais. Diremos tão somente que, entregues os originais no começo de 1857 à Livraria E. Dentu (Palais Royal, Galérie  d’Orléans, 13 – Paris), surgia a 18 de Abril do mesmo ano a primeira edição de O Livro dos Espíritos.

Allan Kardec ressuscita

     Estava para ser lançada a obra fundamental do Pentateuco espírita. Rivail se mostrava embaraçado quanto ao nome que devia subscrevê-la. Foi quando seu Guia espiritual lhe sugeriu a conveniência de adotar o nome de Allan Kardec, que ele tivera em outra encarnação, ao tempo dos Druidas. Operava-se, desde modo especial, a ressurreição de Allan Kardec, nome que seria, como já o é, o lábaro do Cristianismo redivivo, em sua pureza primitiva, sem ritos, sem corpo sacerdotal, sem pompas litúrgicas, sem práticas estranhas aos ensinamentos de Jesus e incompatíveis com o progresso mental do homem.

Luz, bálsamo, esperança

     O Livro dos Espíritos se espalha, anda de mão em mão, suscita comentários. É a luz, é o bálsamo, é a esperança, o “Consolador” prometido por Jesus-Cristo no Evangelho! Conforta os corações, esclarece as criaturas, aponta-lhes, com irrefutável lógica, o caminho da compreensão da vida e dos problemas que ela apresenta. Mostra com irresistível evidência que o dogma da ressurreição da carne é um absurdo indigno da inteligência humana, e ao mesmo tempo ensina que a ressurreição do Espírito, pela reencarnação, é a afirmativa serena, profunda e irresistível da sabedoria e da misericórdia de Deus. Depois de quase dezenove séculos, reencontrava a Humanidade a verdadeira Religião do Cristo de Deus! Em Marselha, no Seminário, o clero se agira, inquieto, com o êxito de O Livro dos Espíritos. Há ordem para que a obra seja seriamente estudada, a fim de se orientar uma ofensiva da Igreja contra a grave ameaça que pairava sobre o Catolicismo. Esse pavor, que persiste até hoje, não impede que, em diferentes ocasiões, haja surgido de dentro da Igreja opiniões serenas sobre o Espiritismo. Menciona Léon Denis, em Cristianismo e o Espiritismo, 5ª edição, pág. 298, que “o abade Laçanu, em sua História de Satanás, assim apreciava o alcance moral desta obra: “observando-se as máximas de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, faz-se o bastante para se tornar santo na Terra.” E é justamente por isto que os livros de Kardec e o Espiritismo são raivosamente combatidos pela Igreja, pois eles instruem, esclarecem, edificam, mostram ao homem o verdadeiro sentido da vida material e a legítima significação do Espiritismo, como força retificadora e salvadora da Humanidade. A época  ainda era de intolerância ferrenha num país de grande evolução intelectual, como a França. Por isto, Kardec, em benefício da causa incipiente, teve de agir com prudência, pois os recursos empregados pelo clero contra a liberdade de pensamento eram piores do que hoje em nosso país.  Mas a prudência não importava em inação, de modo que Allan Kardec continuava na tarefa grandiosa.

O auto-de-fé de Barcelona

     Multiplicava-se o interesse do povo pelo O Livro dos Espíritos. Allan Kardec vê aumentada a sua correspondência, é procurado e pessoalmente consultado sobre problemas espíritas; desenvolve uma atividade prodigiosa e exaustiva.

     De Barcelona, M. Lachatre, ali estabelecido, pede-lhe grande número de exemplares, já então também O Livro dos Médiuns e da Revue Spirite. A grande doutrina atravessava fronteiras, expandia-se, empolgava, arrebatava quantos dela tomavam conhecimento, por sua lógica, por sua admirável racionalidade e pela simplicidade de seus argumentos. Em Barcelona, porém, o clero agira com rapidez, pois o bispo exercia a fiscalização das livrarias e contava com todo o apoio das autoridades públicas, como ainda acontece hoje em diversos países. Impressionado, o bispo regressou apressadamente de Madrid e ordenou, já em Barcelona, que as obras de Allan Kardec fossem aprendidas e queimadas em praça pública pelo carrasco oficial. Era uma revivescência da Inquisição. O fato enchia de volúpia os morcegos da intolerância religiosa. Não podendo queimar Kardec, o que faria de bom grado, o piedoso bispo queimava os livros... A sentença foi fixada para 9 de outubro de 1861.
     Na Espanha, crescera inusitadamente a procura de O Livro dos Espíritos e o interesse pelo Espiritismo. Pessoas que chegavam da França e conseguiam entrar na Espanha com as obras de Kardec, eram assediadas pelos que ardiam de desejo de conhecê-la e estudá-la. O “auto-de-fé de Barcelona” ficou sendo um marco de glória para o Espiritismo e a data de 9 de outubro de 1861 merece ficar na memória dos espíritas de todo o mundo e da Humanidade livre das algemas da escravidão sectária.
     Eis o extrato do processo verbal da execução:
     “Aos 9 de Outubro de 1861, às 10 horas da manhã, sobre a colina da cidade de Barcelona, no lugar onde são executados os condenados à pena última e por ordem do bispo dessa cidade, foram queimados 300 volumes e brochuras sobre o espiritismo, a saber: Livro dos Espíritos, por Allan Kardec, etc.
     Os principais jornais de Espanha deram detalhada notícia desse fato, que os órgãos da imprensa liberal daquele país severamente profligaram... (39)
     A cerimônia revestiu-se da solenidade antiga, quando a Igreja acendia as fogueiras da Inquisição. E isso sucedia ao lado da França, país onde se expandiam as mais belas idéias liberais que o mundo até então conhecera!
     “Como quer que seja, o Auto-de-fé de Barcelona produziu o esperado efeito, pelo ruído que fez na Espanha, onde contribuiu poderosamente para a propagação das idéias espíritas. (Vêde Revue Spirite de Novembro de 1861, pág. 321.)” (40)

Tributo consagrador

     O Livro dos Espíritos alcançava a consagração internacional, com a repercussão alcançada pelo auto-de-fé de Barcelona. Estava,  pelas ideias que contêm, glorificado pelas labaredas que incendiaram tantos mártires, cujo crime consistia em quererem exercer o direito natural de pensar livremente. As chamas que devoraram as obras de Kardec, naquela cidade espanhola, eram irmãs de outras que queimaram os corpos vivos de Giordano Bruno, Savonarola, Vanini, etc. Dava O Livro dos Espíritos o seu tributo à barbárie inquisitorial, como os primeiros cristãos, lançados às feras para que a doutrina do Cristo fosse afogada em sangue! Pagava O Livro dos Espíritos esse pesado tributo, mas o Espiritismo selara com o fogo de Barcelona a sua perenidade! Não triunfava a Doutrina Espírita com o massacre de inocentes, mas ia penetrando no coração do povo, por sua força espiritual. Não temos no passado da nossa Religião manchas negras, nódoas de sangue, vestígios de fogo, nem legiões de vítimas. Nosso roteiro é de paz e amor. Tudo quanto se tem feito contra o Espiritismo é e será em vão, porque nossa doutrina está cada vez mais forte, cumprindo sua finalidade intrinsecamente cristã, sua missão grandiosa de propagar na Terra o Cristianismo que as feras esfaimadas dos circos romanos não puderam matar, mas que a intolerância sectária de falsos cristãos conseguiu conspurcar!
     O Espiritismo é o Paracleto anunciado por Jesus no Evangelho.
     O Livro dos Espíritos, desfraldando a bandeira branca da paz e da caridade entre os homens, está iluminando o mundo com os clarões redentores da doutrina que ensina.
     A Humanidade, à medida que se for libertando do domínio ultramontano, irá compreendendo mais profundamente a grandeza extraordinária e a profundeza admirável deste lema de Allan Kardec:

TRABALHO     –     SOLIDARIEDADE     –     TOLERÂNCIA!
 
Cem anos fecundos

     De 18 de Abril de 1857 a 18 de Abril de 1957, o Espiritismo tem demonstrado progressos importantes. Adversário natural do materialismo, da intolerância, da superstição e do fanatismo, tem feito mais pela Humanidade, neste primeiro século de Codificação, do que doutrinas outras mais velhas.
     Fiel aos seus princípios, a Religião Espírita não combate outros credos, deixando que o homem use o seu livre arbítrio e decida por si mesmo o caminho que deseja percorrer. Para o Espiritismo, todo tempo é tempo para a retificação moral, e quanto mais depressa se começar, tanto melhor. Ele mostra a senda do bem, ilumina-a e deixa-a aberta aos que tiverem olhos de ver e compreender que sua doutrina é a nova estrada de Damasco. Respeita a liberdade de crença. Não fecha suas portas àqueles que sofrem, e socorre e dá assistência a quantos precisem de ajuda, sem indagar de onde vêm, qual a religião que professam e sem se preocupar com a gratidão pelo bem que dissemina. A moral do Espiritismo é a mesmo moral simples, bela, pura e objetiva de Jesus. O Espiritismo não busca a hegemonia temporal nem persegue o poder político. Pretende apenas o esclarecimento espiritual do homem, para que este, por seus próprios meios, alcance a reforma íntima a que aspira para ser realmente feliz e contribuir para a felicidade de seus semelhantes. Em vez de proclamar que “Fora da Igreja não há salvação”, o Espiritismo repele o egoísmo que essa máxima encerra, e, altruísta, penetra o âmago da criatura humana, sacode-lhe os  sentimentos mais ocultos, desperta-lhe a consciência e proclama que “Fora da Caridade não há salvação”!



Profecia de Kardec


     A só circunstância de o Espiritismo ter sido fixado em O Livro dos Espíritos como doutrina simultaneamente religiosa, filosófica e científica, logo após a época em que o materialismo moderno se ufanava de haver solapado irremediavelmente a resistência do obscurantismo ultramontano, demonstra a procedência do que dissemos acerca da correlação dos fatos históricos. O Espiritismo “proclama a liberdade de consciência como direito natural; reclama-a para os seus adeptos, do mesmo modo que para toda a gente. Respeita todas as convicções sinceras e faz questão de reciprocidade”. (41) Ainda hoje, apesar da ratificação solene dos princípios de liberdade e igualdade, do respeito devido a todas as religiões, inclusive as chamadas “minorias religiosas", sobre-restam focos da intolerância de outros tempos. Escudados em nossa fé e na proteção que nos vem do Alto, estejamos tranquilos no cumprimento dos nossos deveres. “Nada, pois, temamos; o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.” (42)

A obra e o homem

     Não há exemplo na História de uma ideia haver, no curto espaço de cem anos, realizado tanto quanto o Espiritismo, através das obras de Allan Kardec, em prol da Humanidade. O Livro dos Espíritos foi a picareta que abriu, no matagal do materialismo e no tremedal da intolerância religiosa, o caminho da luz, da paz, do amor, da orientação elevada, da salvação consciente pelo combate ao mal e exemplificação do bem.
     Nesta data de 18 de Abril de 1957, o mundo espiritual deve engalanar-se de alegria, como de alegria pulsam os corações daqueles que já tiveram, como nós, a felicidade do conhecimento e da compreensão do Espiritismo Cristão, cujas bases científicas, filosóficas e religiosas se encontram em O Livro dos Espíritos.
     Para imortalizar Allan Kardec como uma das personalidades mais cultas e nobres do gênero humano, bastaria fosse mencionado esse livro prodigiosamente instrutivo, esclarecedor e profundamente consolador. Todavia, sua tarefa foi imensa e muitos outros livros valiosos se seguiram a O Livro dos Espíritos, como: O Livro dos Médiuns, relativo à parte experimental e científica, que apareceu em janeiro de 1861; O Evangelho segundo o Espiritismo, que trata mais detalhadamente da parte moral e religiosa, surgido em abril de 1864; O Céu e o Inferno, aparecido em agosto de 1865; A Gênese, dado a lume em janeiro de 1868. Fundou a Revue Spirite, cujo primeiro número foi publicado em 1 de janeiro de 1858, e ainda hoje circula. Criou a primeira Sociedade espírita no mundo, com personalidade jurídica, sob a denominação de “Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas”, em Paris, no ano de 1858.
     Tendo sido grande Allan Kardec, sua obra estava fadada a alcançar a importância que efetivamente possui. Ele não só soube ser o intérprete fiel de Espíritos superiores, como realizou no esforço titânico da Codificação um trabalho gigantesco pelo volume e excepcionalmente notável por sua qualidade intelectual, filosófica e moral!
     Exaltemos com essas impecáveis estrofes de Guerra Junqueiro, a alvorada de um novo centenário de trabalho a prol da Humanidade:


“Aproveitemos, pois, esta hora calma e mansa,
Em que há música no ar e olores nas estradas,
Hora em que a Terra acorda em hausto de esperança,
Ébria de aroma e luz das flores orvalhadas.


Saúdam o alvorecer as vozes das ovelhas,
Perpassam colibris, chilreia a passarada,
Zumbem sofregamente as trêfegas abelhas,
Compondo o hino de sol de esplêndida alvorada!

Partamos nós, também, por este mundo afora,
Nutrindo o coração na fonte da esperança,
Dando consolo à dor, à treva a luz da aurora,
A paz à guerra e à luta os lírios da bonança.

Conduzamos conosco a luz da Caridade,
Oferecendo o Bem aos pobres pequeninos,
Ofertando com amor a toda a Humanidade
Esse pão divinal que é dos trigais divinos.

Espalhemos a Fé, a Caridade e a Crença,
Tenhamos a noss’alma em delubros de luz,
E acharemos, no fim da romaria imensa,
O sol primaveril da graça de Jesus!” ( 43)



(1)       Henri Gouhier – “L’Histoire et sa Philosophie”, pág. 33.
(2)       Aron Raymond – «Introdución a la Filosofia de la Historia », pág. 17.
(3)       Prof. Rossi de Giustiniani – « Le Spiritualisme dans l’ Historie », págs. 85/86.
(4)       Idem, op. cit., págs. 101/102.
(5)       Joaquim Pimenta – « A Questão Social e o Catolicismo », págs. 97/98.
(6)       Henrique Perdigão – “As escolas filosóficas através dos tempos”, pág. 141.
(7)       André Cresson – “Diderot – Sa vie, son oeuvre, sa philosophie »  , págs. 75/76.
(8)       Romain Rolland –  “O Pensamento Vivo de Rousseau” , pág. 5.
(9)       Idem, op. cit., pág. 5.
(10)     Idem, op. cit., pág. 84
(11)     Idem, op. cit., pág. 81
(12)     Idem, op. cit., pág. 125.
(13)     André Cresson – “J. J. Rousseau – Sa vie, son oeuvre, as philosohie”, págs. 31/32.
(14)     Prof. Luciano Lopes – “ Pestalozzi – O Grande Educador” , págs. 32/33.
(15)     Idem, op. cit., págs. 92/93.
(16)     Th. Huxley – “La Educación y las Ciências Naturales” , pág. 2.
(17)     Allan Kardec – “O Livro dos Espíritos”, 22ª Ed., pág. 320.
(18)     Romain Rolland – Op. cit., pág. 120.
(19)     Idem, idem. Op. cit., pág. 121.
(20)     Allan Kardec – “O Livro dos Espíritos”, página 117.
(21)     Romain Rolland – Op. cit., pág. 100.
(22)     Allan Kardec – “O Livro dos Espíritos”, página 409.
(23)     Idem, “O Evangelho segundo o Espiritismo”, págs. 210/211.
(24)     Idem, “O Livro dos Espíritos”, pág. 391.
(25)     Idem, “Obras Póstumas”, 10ª Ed., pág. 212.
(26)     Idem, idem, pág. 213.
(27)     Idem, idem, pag. 214.
(28)     Idem, idem, pág. 215.
(29)     Prof. Luciano Lopes – Op. cit., pág. 170.
(30)     Idem, idem, idem, pág. 173.
(31)     Idem, idem, idem, pág. 139.
(32)     Idem, idem, idem, pág. 165.
(33)     Romain Rolland – Op. citd., pág. 155.
(34)     Idem, idem, pág. 155.
(35)     Idem, idem, pág. 121.
(36)     Idem, idem, pág. 103.
(37)     Allan Kardec – “Obras Póstumas”, pág. 249.
(38)     Idem, idem, pág. 257.
(39)     Idem, idem, pág. 272.
(40)     Idem, idem, pág. 273.
(41)     Idem, idem, pág. 236.
(42)     Idem, idem, pág. 229.
(43)     Francisco Cândido Xavier – “Parnaso de Além-Túmulo”, 6ª Ed., pág. 268.



   



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