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sábado, 3 de abril de 2021

O Dois de Novembro

 


O Dois de Novembro

por Almerindo Martins de Castro      Reformador (FEB)  Julho 1950

           Caminhando por entre os paradoxos da vida social, a criaturas vão, a cada ano, em dois de Novembro, aos cemitérios, visitar os mortos, deslembrados de que, naquele chão, jazem apenas os mesmos rígidos cadáveres para ali conduzidos num esquife, e ali deixados para a incoercível transformação, na química silente da Terra, que destrói a carne e faz das amadas, formosas criaturas uma caveira, tétrica em seu rir sinistro, apavorante, muda porque sem boca, com os dentes sem a vestimenta dos lábios, através dos quais fluíam outrora expressões de amor e de carinho.

          Olhos e pensamentos voltados para o chão, onde inutilmente buscam ressonâncias com os túmulos, que não permitem rever os corpos já desfeitos pela desagregação da matéria, as criaturas não se voltam para o Alto, que é a pátria dos verdadeiros vivos - em Espírito, e não podem, por isso, suspeitar sequer o maior paradoxo expresso nessa pretensa “comemoração dos mortos”. Às necrópoles, em verdade, vão os mortos, Espíritos amortalhados nos sepulcros do corpo, em visita aos que reviveram para a imortalidade no Espaço, onde se entrecruzilham as estrelas da vida eterna, palmilhadas nos vários rumos do aperfeiçoamento redentor.

             Se pudessem desvendar os esplendores da vida espiritual, perceberiam a vibração daqueles chamados - mortos, que estão cumprindo, nos cimos siderais, as leis eternas que regem os mundos. Na materialidade das flores espargidas e nas velas acesas em torno das sepulturas, os visitantes obedecem a esse automatismo a que, cada vez mais, se reduzem as coisas do Espírito, nas arbitrárias criações dos credos e ritos meramente humanos.

             O verdadeiro cristão não necessita de dia certo, nem de recinto funerário para orar pelos seus entes queridos: ante Deus e em favor dos seres, o Espírito sobe, em espiral de preces, sem complementos materiais.

             Os monumentos marmóreos e as coroas de flores, vidro ou porcelana são apenas homenagens do egoísmo vaidoso e perdulário, oferecidas aos olhares dos que não conhecem o recôndito ritual da alma que deve ser praticado sem exterioridades, nem obediências a convencionalismos e preconceitos.

             O vero espiritualista não deve desfazer em  prantos e lamentos a mágoa dessa incoercível separação que, sendo - morte, é condição da - vida. A memória é um altar no qual se entronizam todas as lembranças meigas e suaves, puras e castas. Nesse deve ser acesa a pira da saudade, que é o incenso da alma sublimada, pela prece, até junto dos mensageiros de Deus. Esta deve ser a “comemoração dos mortos” para os espíritas, porque feita - do Espírito para Espíritos, e não a do convencionalismo adotado pelo comum das criaturas, todo ele alicerçado em exterioridades mais ou menos mercantilizadas. 

             O “dia de finados” não tem origem em ensinamentos dos Espíritos. Derivou da festa católica - romana de 1º de Novembro - “dia de todos os santos”.

             Quando da destruição dos templos pagãos, em Roma, um que entre todos foi poupado, porque constituía obra prima de arquitetura e riqueza. Construído por Marco Agripa, denominava-se - Panteão e nele, a 1º de Novembro, era celebrada, pelos pagãos, com excessos, a “festa de todos os Deuses”. O papa Bonifácio IV obteve-o, por doação do imperador Focas e fê-lo purificar, recolhendo a ele os tesouros e despojos mortais das catacumbas dos cristãos, e consagrou-o a Santa Maria dos Mártires. Nesse templo (que estivera fechado durante dois séculos), Gregório IV, em 835, instituiu (em antítese da “festa de todos os deuses”) a “festa de todos os santos” em homenagem aos santos que não tinham culto em dia destacado no calendário, universalizada depois para todo o orbe católico. Mas, para que não ficassem esquecidos ante Deus os fiéis da Igreja e os pecadores, foi estabelecido que no dia seguinte, 2 de Novembro, se fizessem no templo orações em intenção desses mortos.

             Só em 998, dez séculos depois do Cristo, o Abade da Ordem dos Beneditinos, em Cluny, instituiu, em todos os mosteiros da Ordem, na França, a “comemoração dos mortos”, o “dia dos finados”, nesse 2 de novembro, culto que a Santa Sé aplaudiu e oficializou para todo o ocidente. Assim foi o mundo profano levado a cultuar os seus mortos (outrora enterrados nas Igrejas e em “campo santo”) num dia determinado, quiçá na ingênua, ilusória esperança de que os Espíritos desencarnados fruiriam venturas celestiais, recebendo, nas covas das necrópoles, as flores e as luzes das velas, que, não raro, exalam hipocrisia e iluminam a treva das maldades e rancores de quem as acende.

             O tempo decerto conseguirá esculpir nos corações o ensinamento dos mestres da espiritualidade, fazendo com que as criaturas regressem à sincera e modesta maneira de encarar e reverenciar o nascimento e o decesso dos seres na face da Terra, práticas desvirtuadas pelas deturpações dos interessados e dos ignorantes. Os antigos tinham intuição ou ensinamentos bem mais aproximados do verdadeiro modo de interpretar o sentido da vida e da morte dos seres humanos.

             Heródoto (o denominado - Pai da História) diz que, na Trácia remota (território cujas fronteiras estão hodiernamente diluídas numa das províncias da Turquia), o nascimento de uma criança em uma família em torno do berço para, por entre lágrimas e tristezas, lamentar as provações a que viera o recém-nascido; enquanto que o falecimento de um ente querido era saudado jubilosamente, na antevisão de que o Espírito liberto iria fruir as venturas e galardões do Além.

             O Espiritismo contemporâneo veio encontrar o automatismo dos costumes e estipulações seitistas, consuetudinárias, que obscurecem de algum modo o lídimo sentido espiritual da vida e da morte; mas, suavemente, sem confundir a sinceridade dos que ainda não evoluíram para a integral espiritualidade, irá encaminhando as Almas para a verdadeira comunhão com os chamados mortos.

             Não está nos cemitérios o mundo dos Espíritos. Ali apenas podem permanecer transitoriamente os cegos desesperados, cujo passamento não os pode desligar da matéria em decomposição. Fora dali, no indefinível templo de nosso coração é onde  devemos orar pela paz e pelo esclarecimento dos Espíritos liberados do corpo. Mas, principalmente, pelos sofredores.

             Os Espíritos de Luz, aqueles que, misericordiosamente ajudam os grilhetas da Terra, descem pela escada espiritual das nossas preces, dos nossos pensamentos de abnegada solidariedade com os chagados da alma, que gemem nos ergástulos da dor e do remorso, com os surdos e cegos, que ainda não ouviram, nem lobrigaram as harmonias iluminadas da Verdade que as “vozes do silêncio” entoam para a glória de Deus e bênção dos arrependidos. Em cada dia da existência, nas horas de recolhimento, oremos pelos tristes, pelos abandonados que, na desolada noite de sua provação, não conheceram amor, caridade, consolo, bálsamo para as suas dores de alma.

             Deixemos os cemitérios onde se dissociam as moléculas da carcaça humana e pensemos no Mundo Alto, de onde tudo vem para a Terra e aonde sobem, de regresso, as refrações de todos os diferentes mundos dispersos no Infinito.

             Espiritualizemos os estágios da existência terrestre, mantendo o recôndito do nosso ser em ressonância com o mundo espiritual de amanhã, vivendo esta harmonia com os imperativos naturais da matéria, conservando, porém, o Espírito alertado para a devida obediência às leis que o regem, nas trajetórias das vidas sucessivas.

             Ante a morte do corpo, não nos impressionemos com o fogo-fátuo, que é a luz da matéria e que não pode ficar dentro da cova; busquemos o santelmo, a luz do Alto, que se acende no cimo dos montes, na vastidão dos mares, com a fosforescência que tem contato nas rutilâncias das claridades celestiais.

             Não façamos treva onde a vida se ilumina; não choremos ante o corpo inerte, porque o Espírito se está movendo no júbilo da libertação. Os espíritas não podem esquecer o simbólico ensinamento do Mestre: “... deixai que os mortos enterrem os seus mortos.” (Mt 8:22).

            A comemoração que, rotineiramente se celebra, a dois de novembro, deve ser substituída pela permanente comemoração dos - vivos verdadeiros - porque a noite da morte do corpo é a alvorada esplêndida do Espírito, despido da negra libré do cárcere, imergindo nas suaves, eternas claridades da aurora redentora...


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