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domingo, 12 de março de 2017

As Três Faces de Eva

“As três faces de Eva” 
Hermínio de Miranda
Reformador (FEB) Dezembro de 1959

            Às vezes chego a pensar que os mentores do plano superior estejam, no momento, interessados em oferecer, aos estudiosos dos Estados Unidos, casos do mais alto interesse psicológico e espiritual, com o objetivo de chamar a atenção dos nossos irmãos do Norte, para os grandes problemas do espírito humano.

            Primeiro foi o notável episódio de Bridey Murphy, no qual uma jovem senhora americana revelou, em estado hipnótico - e para surpresa dos circunstantes, inclusive seu hipnotizador - fatos e memórias de uma existência anterior, vivida na Irlanda. Com aquele espírito prático dos americanos, os diálogos, entre o hipnotizador e a jovem dona de casa, foram gravados e reproduzidos minuciosamente num livro que conquistou largo público, no mundo inteiro, e foi traduzido em várias línguas. Tivemos oportunidade de ler o original em inglês, há três ou quatro anos e já o encontramos nas livrarias, em traduções para o francês, o espanhol e o português.
Hermínio Miranda

            Sob o impacto da obra, que narra singelamente os fatos, sem procurar interpretá-los, a opinião americana foi profundamente atingida, porque o livro se ocupa da reencarnação - uma doutrina que, até mesmo entre os espiritualistas americanos, ainda não constitui ponto pacífico.

            De qualquer forma, a experiência narrada colocou o problema da sobrevivência e da reencarnação, por assim dizer nas manchetes dos jornais e como tema obrigatório de   discussão em reuniões públicas e privadas, Podemos imaginar que ao impulso da curiosidade acirrada, muita gente tenha procurado ulteriores esclarecimentos, em obras menos sensacionais, porém mais meditadas. É lícito concluir, portanto, que, num balanço geral o resultado tenha sido francamente positivo para as doutrinas espiritualistas, de vez que, superada a fase do sensacionalismo, fica um saldo de interesse legítimo e sadio em torno do fenômeno e de suas consequências morais e religiosas.

            Mais recentemente, as baterias da publicidade se assestaram sobre outro caso que se tornou famoso e foi acabar em Hollywood onde a Twentieth Century Fox produziu um filme de apreciáveis qualidades dramáticas, que até valeu um prêmio à intérprete principal. Mesmo o leitor menos afeito às novidades cinematográficas, saberá que se trata do caso a que foi dado o sugestivo título de "As Três Faces de Eva". O livro, do qual saiu o filme foi escrito pelos Drs. Corbett H. Thigpen e Harvey M. Clerkley. A tradução em português, de Frederico Branco, foi publicada, em 1958, pela instituição Brasileira de Difusão Cultural (Ibrasa).

            Há, porém, uma diferença fundamental entre os dois livros, muito embora tratem ambos dos problemas do espírito. O primeiro é narrado por um leigo que apenas sabia hipnotizar e foi dos que mais se surpreenderam com os resultados de suas experiências. Este não procura explicar nem construir hipóteses sobre o que observou. O segundo - “As Três Faces de Eva”  (The three faces of Eva) - escrito por dois médicos está eivado de distorções, introduzidas por contingência do próprio raciocínio chamado científico, unilateral e intransigente. O leitor habituado aos estudos espíritas, no entanto, poderá seguir a trama do caso, mesmo através da esdrúxula terminologia doa doutores e das não menos esdrúxulas explicações que eles procuram oferecer.

            Em suma, trata-se de um exemplo típico do que se convencionou chamar cientificamente de personalidade múltipla.  Tal como no caso de Bridey Murphy, a personagem principal deste drama da vida real era uma jovem senhora casada" Seu caso, de tão sensacional e notável, extravasou das revistas e jornais médicos, para a imprensa leiga, provocando grande celeuma e os mais disparatados comentários.

            Já no prefácio do livro, o Dr. J. Mc V. Hunt, ex-presidente da Associação Americana de Psicologia, tem uma expressão muito reveladora e muito franca ao apresentar o livro, quando diz que o leitor "compartilha o assombro e a confusão dos autores, que são experimentados profissionais... " É exatamente isso.

            A despeito da emaranhada terminologia e do jargão acadêmico dos autores, qualquer leitor de mediana inteligência pode concluir que eles se acham tão perdidos quanto a moça, nas complexidades do caso.

            O quadro clínico era um tanto confuso. A jovem senhora se queixava de fortes dores de cabeça, que não cediam à força de nenhuma droga e frequentemente acabavam em desmaios. Era tímida, algo tensa, narrava tudo numa voz meio monótona e baixa. Os costumeiros exames de laboratório, raios X e outros testes, nada revelaram quanto às causas das dores. A paciente era calma, parecia exercer perfeito controle sobre suas emoções e atitudes. Enfim, não era um tipo nervoso. Por motivos óbvios, o médico lhe atribui, no livro, o nome de Eve White, em lugar do nome verdadeiro.

            Por longo tempo a moça foi tratada pelos especialistas, com os recursos ao seu alcance. Interpretações de sonhos, análises de fragmentos esparsos da memória, retalhos de recordações infantis, enfim, os métodos clássicos de psicanálise.

            Ao cabo de algum tempo, a dor de cabeça desapareceu e durante um ano a moça passou relativamente bem.

            No entanto, durante uma visita a alguns parentes, Eve White e o marido empenharam-se em violenta discussão, da qual chegaram a concluir que não seria mais possível a vida em comum. O marido voltou a casa sem a esposa, esperando que ela viesse apanhar suas roupas e objetos de uso pessoal, para ir embora, Para sua surpresa, porém, ela voltou perfeitamente bem, sorridente, calma e reassumiu seus encargos domésticos. Embora não se diga no livro, foi essa a primeira vez que a segunda personalidade se manifestou conscientemente, através de Eve White, pois que a criatura que discutira com o marido não era a mesma que chegara mansamente em casa, de volta. Alias,  Eve White nem mesmo tinha consciência da cena passada em casa dos parentes, corno se verificou mais tarde. Para qualquer conhecedor da fenomenologia espírita, aí está a indicação de que Eve White fora controlada por outro Espírito, durante o período em que discutiu com o marido.

            A prova está em que, decorrido algum tempo, declarou aos médicos, no consultório, que não tinha a menor lembrança do período que dizia terem passado em casa do parente. Além disso, durante aqueles dias demonstrara alegria e vivacidade inteiramente fora do comum para seu caráter tímido e reservado. Era outra criatura. Queria passear, divertir-se a valer e de fato divertiu-se, mesmo depois que o marido regressou a casa para ficar à sua espera.

            E como é que Eve White não se lembrava de coisa alguma do que ocorrera nesse espaço de tempo? Sob ação da hipnose, conseguiu recordar-se dos fatos mais triviais, mas suas observações sobre a discussão com o marido eram confusas.

            Depois, a história começa a se desenrolar em lances mais dramáticos.

            O marido pediu com a maior urgência que fosse marcada uma consulta para Eve. Sem seu consentimento, ela havia comprado uma quantidade enorme de roupas caras, mandando debitar tudo à conta dele.

            No entanto, interpelada, informou ao médico que nunca tinha visto aquelas roupas até o instante em que o marido a levara ao armário para mostrar-lhas. Além do mais, não estavam de acordo com seu gosto pessoal. Eve White vestia-se com discrição e com roupas baratas, pois o orçamento doméstico não dava para luxos. Grande foi seu espanto ao dar com toda aquela roupa de fina qualidade em seu próprio armário. Compreendia perfeitamente a indignação do marido, pois suas compras deveriam ter ficado num dinheirão. Isso ainda mais enfurecia o esposo, que acreditava estar ela mentindo.

            O desconhecimento do problema espiritual por parte dos médicos é impressionante, constituindo a principal causa das suas perplexidades. Quando recebem uma carta, começada por Eve White e concluída por outra personalidade (Espírito), ficam a imaginar quem teria escrito aquele final, meio desconexo. 

            Por fim, Eve White, profundamente deprimida e impressionada, narra que estava ouvindo vozes, nitidamente, quando se achava sozinha, imaginou-se louca. Era uma voz de mulher; às vezes lhe parecia familiar e dizia coisas banais em frases vulgares. Os médicos concluem que se trata de uma simples alucinação auditiva. Nem lhes passa pela cabeça que poderia ser o Espírito irresponsável da outra procurando criar dificuldades à pobre moça.

            Já as dores de cabeça, seguidas de perda de consciência, indicam claramente, ao leitor de obras espíritas, que a jovem senhora lutava desesperadamente para não ceder o controle de seu corpo físico ao Espírito invasor, Aliás, a própria invasora, a que chamariam Eve Black, para diferençar de Eve White, informou isso ao médico, quando a oportunidade se ofereceu.

            Um dia, enquanto o médico conversava tranquilamente com Eve White, esta sentiu uma espécie de tontura, modificou sua postura e mudou completamente sua psicologia. Não era mais a moça tímida e recatada, mas uma criatura ousada. maliciosa, de uma vivacidade notável, que o fitava nos olhos, num sorriso franco. Disse-lhe: "Alô, doutor!". O médico confessa sua surpresa e faz uma pergunta ingênua:

            "- Como se sente, agora?

            "- Ora, otimamente - nunca me senti tão bem. E o senhor, como tem passado?"

            Desenrola-se, então, o mais incrível diálogo, pois que nem por sombra admite o doutor estar falando com outra mulher, máxime na posse do mesmo corpo. Eve Black (pois é ela) entende perfeitamente a situação e se diverte a grande com a perplexidade do analista. Fala sobre a outra, na terceira pessoa, como é natural, coça as pernas, pede cigarros, tagarela sem parar.

            O médico, então, faz outra pergunta infantil:

            "- Quem é ela?

            - 0ra!, Eve White, claro. Aquela sua pequena paciente, santa e resignada.

            - Mas você não é Eve White?
           
            - Não me faça rir. A esta altura, deveria estar mais bem Informado, doutor."

            Quando o médico lhe fala sobre o marido, responde firme:

            "Não tenho marido algum. Vamos deixar isso claro."

            E depois:

            "- Bem, mas então, quem é você ?

            - Ora, sou Eve Black (dando o nome de solteira da Sra. Eve White). Eu Sou eu e ela é ela."

            Explica, então, o incidente dos vestidos.  Assumiu o controle do corpo de Eve White e foi passear, fazer compras e divertir-se, mandando a conta para o marido da outra. E ria.

            Mais adiante o médico fala sobre a filha e ela responde prontamente que não tem filha nenhuma. Nada tem com a menina, que é filha da outra. Não negava que o corpo que ocupava no momento era de Eve White e que desse corpo nascera a menina havia quatro anos. Onde estaria nessa época? Não sabia. Não sabia de muita coisa, infelizmente. Confessou, porém, que frequentemente tinha acesso à memória e aos pensamentos de Eve White, enquanto que, ao que se depreendia, a Sra. White não sabia ainda de sua existência.

            Quanto às dores de cabeça, foi taxativa:

            "- O que lhe causa as tais dores de cabeça, é tentar impedir que eu apareça. Ela não sabe bem o que está acontecendo. mas, quando tenta deter-me e não consegue, tem uma dor de cabeça infernal."

            Deduz-se também, dessa longa conversa do médico com Eve Black, que o objetivo desta é ficar dona absoluta do corpo de Eve White. É tão irresponsável a invasora, que sai à noite, pratica os maiores desatinos e se diverte com a ressaca que a outra tem de suportar no dia seguinte. "Mas você própria não sofre os efeitos da ressaca? ", pergunta o médico, Resposta: "Lógico que não sinto nada!" Confessa, também, que a voz que Eve White tem ouvido é a sua. Fazendo isso, conseguia mais facilmente o controle do corpo da outra, que se perturbava, seriamente.

            "- Mas o marido não ouve o que ela fala?

            - Claro que não, doutor."

*

            Não é possível reproduzir aqui todos os interessantes pormenores desse dramático episódio. Pretendo, no entanto - que me perdoe o leitor a pretensão -, com os recursos modestos dos meus conhecimentos, comentar o caso do ponto de vista da Doutrina Espírita.

            E o caso se complica a cada instante e cada vez mais confusos se acham os médicos, Internam a moça num hospital, onde Eve White e Eve Black se alternam no mesmo corpo, deixando os circunstantes na maior confusão mental. Quando o médico pede a colaboração de Eve Black para aliviar as dores de cabeça da outra, ela responde que, se fizesse isso, talvez não conseguisse sair outra vez.

            O médico resolve colocar Eve Black em contato com o marido de Eve White. A Conversa é penosa e cheia de tropeços, pois parece que o Sr. White não se convence de que a moça com a qual está falando não é a mãe de sua filha. Isso o deixa atônito. É o mesmo físico, são os mesmos olhos, os cabelos, a roupa. Só a atitude mental é outra. Mistério.

            "- Faça o que quiser com a menina. Quantas vezes terei de repetir que não tenho nada com a sua filha, nem com você?"

            O médico começa. Por fim, a anotar as diferenças entre as duas personalidades. Enquanto que Eve White se deixa hipnotizar com relativa facilidade é impraticável hipnotizar Eve Black. Esta, por sua vez, tem alergia pelo "nylon", que a outra não tem. (Dai a coceira que sente nas pernas.)

            No capítulo quinto, os autores fazem uma pausa em sua narrativa. para tecer considerações sobre o caso em si, Invocam centauros, unicórnios e a famosa história de Stevenson, "O médico e o monstro". A certa altura, dizem muito doutorais; ''Múltipla personalidade é frequentemente classificada corno uma forma de histeria. Alguns casos estudados demonstraram, além de uma dicotomia do consciente, vários e inconfundíveis sintomas clássicos de neurose de conversão..." etc., etc.

            Num raro momento de lucidez (página 60 da tradução brasileira), os autores têm isto a dizer: "Nos tratados (sempre a autoridade Irrecorrível e incontestável dos tratados clássicos), a dupla personalidade é frequentemente classificada entre outras dissociações do consciente, sob o termo familiar de histeria. Nenhum de nós julgava, contudo, que fosse apropriado classificar a nossa paciente dessa forma, nem julgávamos que fosse reagir da forma habitual, como reagem as vítimas daquela moléstia comum. Naquela mulher havia alguma coisa que nos trazia à mente, distintamente, as limitações de nossos conhecimentos, no insondável mistério da entidade humana e da vida, em torno do reduzido volume de fatos e das elaboradas e dúbias teorias da psicopatologia."

            Esta é uma afirmativa sadia e construtiva. A humildade intelectual assume proporções de coragem moral e desejo de procurar novos rumos, em face  do problema que os chavões comuns da chamada ciência ortodoxa não conseguiram decifrar.

            Mas é inútil, os autores continuam a pesquisar recordações da Infância, a remexer a vida pregressa, à cata de complexos que se enquadrem nas suas teorias. Com toda a sua ignorância e irresponsabilidade, Eve Black parece entender mais do caso que os homens encarregados de resolvê-lo.

            Infelizmente, os tratamentos clássicos, ditados pelas fórmulas consagradas pela ciência oficial, não produziam resultados satisfatórios. Eve Black continuava a fazer das suas e a criar os mais sérios embaraços e humilhações à pobre Eve White. De uma vez tentou estrangular a filha do casal. Deu-se a separação, a moça procurou empregar-se, mas a interferência de Eve Black sempre criava situações insustentáveis e difíceis.

            O leitor espírita sente uma aflição incontida de ver que tudo se tentou, menos o tratamento correto, que seria o exame do caso sob o ponto de vista espírita.

            Certa ocasião, Eve White tentou matar-se - e, temerosa de perder o instrumento físico com o qual se divertia, Eve Black escreveu assustada ao médico, pedindo sua urgente interferência.

            As explicações são óbvias. Em outra ocasião, perguntada como conseguia manifestar-se, Eve Black respondeu:

            "- Concentro-me com todas as minhas forças no que ela está pensando e prossigo até que ela pare. Às vezes, isso acontece e nesse caso eu tenho que agir depressa, a fim de impedir que ela volte. Como se estivesse saindo no momento em que ela vem entrando, ou vice-versa."

            Continuam os médicos com os exames psicológicos. Fazem testes numa e noutra personalidade, Chegam, como é claro, a resultados inteiramente diferentes. Só um cego não vê que se trata de dois Espíritos distintos, lutando pela posse do mesmo corpo. São firmadas, separadamente; suas caligrafias são examinadas; fazem-se encefalogramas de ambas. São anotadas as reações de cada uma delas. Eve Black se diverte ao ver a outra na tela, chama-lhe afetada, enquanto Eve White, muito tensa e algo envergonhada, se sente visivelmente desgostosa ao assistir ao filme no qual uma outra criatura se apossa de seu próprio corpo e se porta de maneira tão insólita.

            A certa altura, o médico resolve convocar as duas personalidades ao mesmo tempo, mas provoca tal crise de dor de cabeça que é obrigado a desistir.

            De outra feita, desejosa de "dar uma espiada" (sua a expressão) no local onde trabalhava a outra, Eve Black se manifesta, escreve desajeitadamente uma piada grosseira, com a máquina que a outra operava, e se retira deixando tudo na maior confusão. Note-se que Eve White era datilógrafa, ao passo que a outra não.

            São, enfim, dois tipos Inteiramente diferentes, opostos nos gostos, inclinações e no caráter. Uma é calma, concentrada, modesta, grave, trabalhadora, virtuosa, algo contemplativa. A outra, turbulenta, irresponsável, superficial, espalhafatosa. Uma tem alergia pelo "nylon", que lhe provoca urticária; a outra, não.

            Ao fim de muita observação, o médico concluiu que a amnésia de Eve White ocorria sempre nos períodos em que Eve Black se manifestava, o que é mais que evidente.

            Um belo dia, uma terceira personalidade se manifestou. Declarou chamar-se Jane. Não havia a menor dúvida de que não se tratava de Eve White nem de Eve Black. Era mais amadurecida, parecia mais inteligente, estava bem acima, intelectualmente, das duas Eves. Jane tinha conhecimento do que faziam as duas Eves, mas não tinha acesso à experiência acumulada de suas companheiras. Nada sabia sobre elas, com relação ao período anterior à sua própria manifestação. Era uma criatura boa, com elevada dose de ternura humana,  interessada no bem-estar de Eve White e de sua filhinha. Só conseguia manifestar-se através de Eve White, nunca através de Eve Black. Desde o inicio, os médicos sentiram que somente Jane poderia resolver os problemas das três entidades. De fato, mais tarde, a própria Jane, comovida ante certa atitude de Eve White, com quem simpatizava, propôs sacrificar-se para que Eve White vivesse, e não ela, Jane. Em Eve White, dizia ela, "a virtude da caridade não é uma compulsão".

            Jane não possuía nenhuma consciência do que lhe ocorrera antes de abrir os olhos no consultório do médico. No entanto, apresentava-se digna, confiante, amadurecida, constituindo profundo mistério para o médico, que continua a encará-la como uma resultante das personalidades primitivas, quando, na realidade se trata de um Espírito autônomo, consciente, mas com a memória obliterada. Nenhuma das Eves tinha conhecimento da terceira entidade. Em pouco tempo esta última começou a ter acesso ao consciente de ambas e acompanhava uma e outra nas suas atividades opostas.

            Jane desenvolveu-se rapidamente, pois que absorvia todo o conhecimento que passava pelo consciente das companheiras.  Estava bem certa de que as experiências das outras não eram suas. Às vezes tinha curiosas observações, como esta: "Sou completamente possuída por uma impressão de solidão... Espero poder ser útil a Eve White de alguma forma. Talvez disponha de muito pouco tempo para viver este meu curioso fragmento de vida."

            No entanto, os médicos continuavam a crer que Jane era uma espécie de fusão, algo como uma combinação, um acordo entre as duas personalidades anteriores de Eve Black e Eve White. Por fim, confessam que foi-se tornando difícil ajustá-la ou mesmo forçá-la dentro desse conceito. Era, definitivamente, outra entidade. E mais perplexos ficavam os cientistas, pois ainda não podiam aceitar a ideia de que, naquele pobre corpo, três Espíritos diferentes lutavam desesperadamente pela supremacia: um deles (Eve Black) com a frívola disposição de se divertir, outro (Jane) com a intenção cristã de ajudar a resolver um problema, e finalmente, o terceiro (EVe White), desorientada, sendo aos poucos dominada pelas demais.

            O caso provocou enorme celeuma nos meios científicos. As três senhoras (expressão dos autores) foram estudadas por um grupo de cientistas da mais alta categoria. Não se percebeu um lapso, uma contradição, uma falha, por menor que fosse, nas três manifestações, consultadas independentemente. Um dos investigadores perguntou a Jane sobre um fato que ocorrera há cerca de um ano e obteve a seguinte resposta: "Mas, doutor o Senhor esquece que só tenho sete meses!" Outro quis sugerir que Eve Black participava dos sentimentos e reações de Eve White, insinuando que seriam irmãs gêmeas. E ela, enfática: "- Mas não gêmeas idênticas!"

            O que ainda mais confundia os médicos era o fato de que as três personalidades eram absolutamente normais. Com isso não poderiam simplesmente encaminhar a questão para o lado da esquizofrenia. Mas, perguntavam, como se formavam as três personalidades? Não havia, e não há, explicação, a não ser que se recorra à Doutrina Espírita, pois que se tratava de três Espíritos diferentes. Alinham,  porém, várias suposições outras: as três seriam talvez um desdobramento de uma entidade primitivamente unificada. Ou seria possível que os elementos funcionais que compunham cada uma nunca se haviam unificado? Imaginavam, então, um meio de as integrar numa única personalidade! Enfim, não sabem, honestamente, o que fazer, como hão sabem - e confessam claramente – o que fizeram para "curar" a moça. Confundem o caso em estudo com esses que ocorrem quando dizemos que uma pessoa convertida assume outra personalidade. Ou de outra que se transformou depois do casamento. Ou daquele outro que depois da guerra, não era mais o que fora. Ou do homem que se encontrou depois que o pai perdeu o dinheiro. Ou da mulher que de tanto dedicar-se ao lar e aos filhos perdem a personalidade. Meu Deus, a que extremos de confusão mental leva o dogmatismo científico! Estes casos nada têm com o doloroso drama da moça que entrou em estado de choque emocional.

            O curioso é que dois Espíritos conhecem perfeitamente a situação em que se acham, somente Eve White não tem noção exata do que se passa. Já vimos que Eve Black, logo na primeira entrevista, faz observações perfeitamente pertinentes ao médico. Jane, por sua vez, escreve estas palavras reveladoras:

            "Eve White e Eve Black são dois indivíduos destacados e muito diferentes, assim como eu também sou delas destacada e diferente. Contudo, há, ainda, qualquer coisa que nos matem unidas, de certa forma, remotamente. Ao que parece nenhuma de nós pode ser eliminada sem causar danos fatais às outras duas... (Grifos meus) “

            Este trecho é importante, leitor, porque revela a trama toda do caso.

            Confesso que quando li o livro, há cerca de um ano, não pude compreender, em todos os seus pormenores, a mecânica das três manifestações espirituais. Sabia perfeitamente que se tratava de um fenômeno mediúnico, mas alguns pontos ficaram obscuros, como, por exemplo, a personalidade de Jane que surgiu sem consciência do passado. Afinal, quem era a verdadeira dona do corpo da jovem senhora?

            Os autores julgam ter resolvido o enigma, explicando-o em termos psicanalíticos: Quando menina,  Jane fora obrigada a beijar uma parenta morta. O horror daquela cena teria, na opinião dos médicos, provocado o estranho fenômeno de múltipla personalidade.

            Ao contar essa recordação, Jane desferiu um grito inumano, comprimiu as têmporas e saiu desesperada a correr até à sala próxima. Depois tudo se aquietou. Mas a personalidade que ficou não era mais nenhuma das Eves e não era também Jane.  Era uma quarta, que não sabia ao certo o próprio nome. Estava abatidíssima, como se acabasse de ser vítima de um terremoto. Deram-lhe o nome de Evelyn White não se ouviu mais falar nas outras três personalidades. Por algum tempo ela. se sentia confusa, vazia e solitária. Sentia falta de Eve Black, por estranho que pareça. Quanto à menina, filha de Eve White, assumiu logo a atitude de dizer que era como se fosse sua própria filha, pois que o fora de Eve White. A falta que sentia das companheiras era bem explicada: não sabia onde estavam agora, mas sentia que continuava a existir. Antes, era como se tivesse duas irmãs atrás de uma cortina.  Sabia que estavam ali. Agora não, estava sozinha e deprimida.. Com essa personalidade sobrevivente, o livro se encerra num tremendo emaranhado de teorias, com citações de Adler, Jung, descrição dos testes, divagações e suposições de toda a ordem. Que foi feito de Jane?

            Qual a sua opinião, leitor? Sabemos que quatro Espíritos diferentes atuaram sobre aquele corpo. Parece correto admitir que a personalidade, que se chamou Jane, não fazia parte do grupo. Deve ter sido um Espírito encarregado de ajudar a desfazer a dolorosa situação. Vimos como era nobre, inteligente e superior. Vimos também que podia acompanhar uma e outra indistintamente, sendo que as duas Eves não tinham consciência de sua existência. Há ainda sua afirmativa de que sentia ter uma espécie de missão a desempenhar, embora não a visse muito claramente. Por outro lado, seu estado de consciência, quando incorporada, vai somente até o momento em que começou a se manifestar através da moça. Nessa ordem de raciocínio, como poderíamos explicar a eclosão da entidade que se chamou Evelyn? Poderíamos aventar uma hipótese: Evelyn seria a dona efetiva do corpo físico e que, sufocada pela manifestação permanente das demais, tenha ficado sempre à margem.

            No notável livro de André Luiz, "Evolução em dois Mundos", vamos encontrar este esclarecimento precioso que parece adaptar-se perfeitamente ao caso das "Três Faces de Eva". Vejamos o que contém o capítulo XV - Vampirismo Espiritual, pág. 118, no subtítulo "Parasitismo e reencarnação":

            "Nas ocorrências dessa ordem (obsessão), quando a decomposição da vestimenta carnal não basta para consumar o resgate precioso, vítima e verdugo se equiparam na mesma gama de sentimentos e pensamentos, caindo, além-túmulo, em dolorosos painéis infernais, até que a Misericórdia Divina, por seus agentes vigilantes, após estudo minucioso dos crimes cometidos, pesando atenuantes e agravantes, promove a reencarnação daquele Espírito que, em primeiro lugar, mereça tal recurso.

            E, executado o projeto de retorno do beneficiário, ao regressar do Plano Espiritual para o Plano Terrestre, sofre a mulher, indicada por seus débitos à gravidez respectiva, o assédio das forças obscuras que, em muitas ocasiões, se lhe implantam no vaso genésico por simbiontes que influenciam o feto em gestação, estabelecendo-se, desde essa hora inicial da nova existência, ligações fluídicas através dos tecidos do corpo em formação, pelas quais a entidade reencarnante, a partir da infância, continua enlaçada ao companheiro ou aos companheiros menos felizes que integram com ela toda uma equipe de almas culpadas em reajuste."

            Teria sido esse o caso da Sra. White? Não o poderemos, certamente, afirmar em sã consciência, primeiro porque nos faltaria autoridade para tanto, segundo porque, mesmo que dispuséssemos da necessária autoridade, não teríamos ao nosso alcance os elementos imprescindíveis no julgamento do caso, que foi examinado exclusivamente à luz (?) dos postulados materialistas da chamada moderna psicanálise. Leram bem? Sim, postulados materialistas, pois que é precisamente entre os homens que mais de perto lidam com os problemas da alma, que se encontram, paradoxalmente, os menos preparados para aceitar o espírito como entidade autônoma, real, inteligente e sobrevivente. Como poderão esses homens entender do espírito humano, cuidar de seus males e iniciar uma tentativa de cura se nem ao menos conseguem aceitar a existência do espírito? Essa é uma das grandes contradições da ciência moderna, que se recusa até mesmo a examinar a possibilidade de estar errada. No entanto, o que temos visto no passado e o que por certo continuaremos a assistir no futuro, é que precisamente aquele que não se dá por satisfeito com os antigos métodos e não se conforma com os dogmas científicos, é quem descobre novos rumos, cria novas possibilidades ao crescimento espiritual do homem. A História está cheia de exemplos. Santos Dumont não seria o "Pai da Aviação" se não se rebelasse contra o dogma de que o mais pesado que o ar não poderia voar. A expedição de Colombo era uma refinada loucura, em face da mentalidade e dos conhecimentos predominantes em sua época, pois que a Terra não podia ser redonda. E é. A despeito de todas as lições do passado, continuamos a nos deixar enganar pelas aparências da realidade, sem acuidade suficiente para penetrar o âmago da realidade. O átomo, que ainda ontem era considerado como fronteira avançada da matéria, a partícula indivisível por definição, está sendo desintegrado a cada instante nos modernos laboratórios, tendo mesmo provado sua tremenda força devastadora, sobre núcleos humanos. onde Espíritos de todas a tendências cumprem a jornada pela carne. Falamos em matéria, mas que é matéria? É outra ficção científica, cuja conceituação aluiu fragorosamente, quando se descobriu que matéria é energia concentrada e que energia é matéria liberada. É tudo uma questão vibratória!  E ainda mais: outros mistérios do átomo se desvendam aos poucos. O núcleo está de tal forma distanciado das demais partículas atômicas, que, no dizer de um cientista, parece uma simples mosca no centro de uma catedral. Os conceitos que nos parecem irremovíveis, hoje, serão obsoletos amanhã , Porque então, não admite o Psicólogo, apenas para raciocinar, que existe. de fato, essa coisa chamada Espírito? É chocante verificar, num livro tão doloroso como "As Três Faces do Eva", que os autores, médicos de nomeada, cuidando de distorções espirituais, não consigam ver, no caso, nada mais que um conjunto de manifestações freudianas ou adlerianas. O próprio Freud, que tão fundamente estudou o comportamento da criatura humana, quantas vezes deve ter tropeçado na iniludível evidência do Espírito? Porque não a proclamou aos quatro ventos, com o peso de sua autoridade? Talvez não quisesse arriscar-se a jogar a sua autoridade contra a autoridade maior do dogmatismo científico. Talvez nem mesmo tivesse examinado a hipótese de seguir as pistas que o levariam fatalmente ao reconhecimento da existência do Espírito. Cientificamente, dentro dos preceitos e preconceitos da ciência unilateral, o Espírito não deve e não pode existir; o pensamento é mera função do organismo físico, como qualquer secreção vulgar. Em todos eles, vamos encontrar a mesma argumentação superada, repetida e cansativa: a consciência nasce, cresce e morre com o nascimento, desenvolvimento e desintegração do corpo físico. Como é que pode existir independente deste? Se o peixe pudesse raciocinar cientificamente não admitiria que alguém fosse capaz de viver fora d’água!

            De modo que, voltando ao nosso livro, vemos que dois cientistas tomam de um caso de múltipla personalidade, isto é, a dolorosa tragédia de três Espíritos desorientados e infelizes, lutando pela posse do mesmo corpo físico, e ficam a imaginar hipóteses de personalidade conscientes, inteligentes e independentes a se formarem como de fragmentos de outras personalidades. Os próprios fatos e dados que apresentam, desacreditam esse tese. Os testes psicológicos lá estão para dizer que se trata de três criaturas diferentes, fundamentalmente diferentes e individualizadas.

            Colocadas face a face com experimentados analistas de alto nível cultural, a todos surpreendem com as respostas coerentes que dão. 0s únicos surpreendidos, no entanto, são os próprios analistas, porque as entidades sabem muito bem que nada têm em comum, à não ser aquele pobre corpo físico, campo de batalha em que se digladiam penosamente. Releiam esta resposta de Eve Black ao analista: "Não me faça rir. A esta altura, deveria estar mais bem Informado, doutor." Nem à essa altura, nem mais tarde, o doutor estaria bem informado. Ele apenas segue a trama, de olhos vendados, ao sabor da imaginação e da iniciativa dos próprios Espíritos que lutam pela posse do veículo físico.

            O método terapêutico que empregam, parece mais um encadear de tentativas e experimentações. No final de contas, o resultado que obtêm, sem mesmo saberem como (e isso eles próprios o confessam), lhes parece ter sido possível graças a uma
sintetização ou integração de duas ou três personalidades originárias em uma só que prevalece e sobrevive! Mas o leitor, com alguma tintura de conhecimento espiritualista, fica convencido de que, dos Espíritos que assaltavam o mesmo organismo físico, três conseguiram finalmente desprender-se, deixando aquele que parecia mais apto a continuar a vida material, aquele que realmente era o dono do corpo.

            Perdeu-se, dessa forma, excelente oportunidade para um estudo completo, racional e esclarecedor do fenômeno.

            Ainda há pouco, quando comentamos um trabalho do Dr. J. B. Rhine, dizíamos que esse ilustre pesquisador achava que as entidades espirituais deveriam ajudar a provar sua própria existência e sobrevivência.  É o que feito, como acabamos de ver. E que faz a ciência com um caso destes? Soterra-o impiedosamente sob um emaranhado de teorias abstrusas e superadas.

            Mas, tenhamos paciência. Novos casos virão e outros mais, até que a Ciência, num momento de humildade e lucidez, possa dizer: "de fato, não há outra saída, o Espírito preexiste, vive e sobrevive." Esperemos. O tempo, que para nós, metidos no
escafandro da carne, parece tão longo, é apenas uma convenção contida pela nossa própria limitação. Para Deus, o tempo não existe, apenas a Verdade eterna sobrenada serena, o mar da inquietação.


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