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sábado, 24 de outubro de 2015

Transposição de Umbrais




Transposição de Umbrais
parte 1 de 2 partes
Leal de Souza
Reformador (FEB) Julho 1970

                                   (Conferência pronunciada pelo Dr. Leal de Souza)
na FEB, e publicada em "Reformador" de 1924)

            Ó Espíritos de luz, que pondes nos lábios dos médiuns as armas antigas de Júpiter, dando ao pálido verbo humano as fulgurações de raios que iluminam sem fulminar; ó mensageiros benignos, que amparais, nos seus desfalecimentos, as fraquezas humildes; e vós, irmãos meus, que já vos habituastes aos clarões de verdades novas para mim, envolvei-me na atmosfera dos vossos eflúvios simpáticos, assisti-me nesta hora de transposição de umbrais, quando o meu ser se desdobra, como se o meu Espírito incorpóreo pairasse librado nesta sala, e buscando-o, para integrar-se, o meu corpo pesadamente subisse as escadarias deste edifício, trazendo heranças bárbaras no legado de sangue de nossas tribos, músculos atrofiados de charrua em arcabouço rijo de luso, e encontrando, na alma imortal, reminiscências de longas vidas extintas, lembranças de costumes perdidos em paisagens transformadas, saudades de civilizações sepultas sob as ruínas de milênios mortos.

            Assombro! Maravilha! Deslumbramento! Dilataram-se os horizontes da vida, abrangendo os horizontes da morte, e nessa rasgada imensidão, sem limites no espaço e sem fronteiras no tempo, em continuidade incessante, alternam-se as existências renovadas, como os panoramas das mesmas regiões.

            Os planetas ignotos, os astros afundados no infinito, os mundos inacessíveis à luneta investigadora da ciência orgulhosa, desvendados pelas revelações dos Espíritos, oferecem às nossas esperanças, em escala sideral de aperfeiçoamento, vidas mais suaves em pátrias mais belas!

            Ai de mim! Na grandeza dessas magnitudes que se multiplicam no indefinido das criações nascentes e renascentes, por onde se espraia a glória de Deus, ai de mim! sou a pedra que leva ao fundo da ribeira as impurezas da superfície, embutida nas areias do leito, fica a lavar-se sob o arrulho trêmulo das águas! Obrigado, Senhor, obrigado pela graça de permitirdes que sobre as minhas imperfeições escorram as claras águas lustrais, em que hoje me inundo e lavo!

            Há duas semanas, eu não ousaria alimentar a pretensão de subir a esta tribuna. Comparei-a, entrando pela vez primeira nesta casa, a uma cova aberta, de onde surdissem fantasmas, arrastando o livor funéreo das mortalhas. Julguei-a, mais tarde, atentando na excelsitude dos Espíritos que a orientam, e sob a influência de antigas concepções, a um pedaço azul de nuvem estrelada, entapizando pés radiantes de arcanjos. Se hoje não encontro expressões dignas dela, compreendo, ao menos, a sua majestosa responsabilidade, pois as palavras proferidas nesta eminência, ou são ditadas pelos mensageiros divinos, ou por eles testemunhadas.

            Ao atingi-la, cheio de sacra emoção, em obediência a um convite da importância de um chamamento, eu deveria, inicialmente, procurando elevar-me acima de mim mesmo, agradecer à bondade misericordiosa de Deus os favores de sua graça, derramados em meus caminhos, ainda quando eu o desconhecia, e a piedade com que me conduziu à crença e à fé, sem transitar pela desventura.

            Não cheguei às praias da fé como um náufrago envolto na espuma da tempestade, agarrado a um destroço de nau, sob os tufões da desgraça. Levaram-me a Deus o estudo sereno, em horas tranquilas, o raciocínio, em períodos frios de análise, e, na normalidade regular da vida, a demonstração anormal dos fatos. Por essas mesmas escalas meditativas, em lógica progressão, cheguei, no Espiritismo, às puras convicções que me irmanam aos vossos princípios.

            Passei pela Igreja de Roma à maneira de um monge que ao vestir o burel tombasse à entrada da cela e, deixando o corpo morto na gelidez do claustro, seguisse, em Espírito, para outro destino. Adotei-a por um erro de cálculo, para fins de utilidade social, mas logo reconheci, com amargura, que o sacerdócio católico não tinha o sentimento cívico necessário para auxiliar a consolidação da unidade política brasileira, e não possuía a solidez de fé indispensável para o serviço de Deus entre os homens.

            O Catolicismo, como quase todas as religiões, é uma construção humana levantada sobre bases divinas, e é a segurança dos alicerces que ainda lhe sustenta as paredes arruinadas. As catedrais são, sem dúvida, templos, mas templos da arte, que abrigaram, através de séculos, sob os seus tetos doirados, as esperanças e as ansiedades dos corações voltados para Deus.

            Quando se abaterem, um dia, esses altos muros ornados de gemas custosas, e subirem aos ares, em poeira, os seus escombros, envolvamos as velhas igrejas em generoso respeito, e, olvidando culpas e erros de casta, oremos pela redenção de seus últimos adeptos.

            Autor de uma sátira sobre o clero, e só tendo aceito o Catolicismo, num instante de ilusão patriótica, em Setembro de 1919, não tenho deveres especiais de defesa para com uma religião de que fui, por cinco anos, o hóspede constrangido, mas devo encará-la sereno, com elevação e justiça.

            Não há mal em ser católico. O mal está em não o ser com sinceridade; em não praticar, na conduta individual, a austereza das regras baseadas no reconhecimento da existência de Deus, no princípio da imortalidade da alma, e nas dez prescrições divinas recebidas por Moisés, no Monte Sinai. Cumpre-nos reconhecer que a Igreja pode, e talvez ainda possa, orientar, sob o saiote do clero, almas iluminadas como Santo Antônio de Pádua ou S. Francisco de Paula.

            Os processos espíritas de propaganda diferem essencialmente dos métodos católicos de conversão. O Espiritismo examina e discute; analisa e raciocina; propaga-se estudando e ensinando. A Igreja romana, inspirada pelo profissionalismo sacerdotal, dogmatiza e anatematiza; adensa trevas e confunde em sombras as evidências reais; inverte princípios ou detrata indivíduos, e despenha sobre as verdades demonstradas, a trovoar entre nuvens de intransigências, os raios platônicos da excomunhão.

            Em relação aos fenômenos mediúnicos, ou às manifestações das almas dos mortos através dos médiuns, incidem em contradição os padres que as consideram impossíveis e que as proíbem em nome da legislação moisaica, pois só se proíbem as coisas de possível realização.

            Quanto à proibição decretada por Moisés, devemos considerá-la como lei transitória, imposta, em dado momento, a um determinado povo, pelas circunstância locais, e não como preceito divino, de eterna vigência, pois Deus não o insculpiu entre os dez mandamentos que constituem a sua lei.

            O Catolicismo estabelece diferença entre puros Espíritos, criados perfeitos, e as almas dos defuntos, e todos os seus livros relatam os numerosos casos, popularmente conhecidos, de anjos reveladores ou salvadores, aparecidos, em visíveis corpos materiais, a homens e mulheres, em sítios inumeráveis. Sendo, porém, na verdade, aqueles Espíritos e estas almas, entidades da mesma natureza e origem, os primeiros representando a evolução e o progresso das segundas, achamos assim, na trama sutil das concepções teológicas, emaranhada em novelo de doutrina, a confirmação dos fenômenos mediúnicos operados por almas ou Espíritos não demoníacos.

            Ainda que se persista em considerar os anjos como Espíritos de natureza diversa da de nossas almas, a Igreja católica, em seus anais, regista incontáveis casos de aparecimentos visíveis e tangíveis de almas de defuntos materializadas.

            Os puros Espíritos criados perfeitos, segundo a teologia, são os de mais alta hierarquia, os Serafins, os Querubins e os Tronos; os da segunda categoria, as Dominações, as Virtudes e as Potências; e os da terceira e última classe, os Principados, os Arcanjos, e os Anjos de Guarda, incumbidos, estes, de acompanharem as pessoas, garantindo-as e encaminhando-as à santificação.

            Os santos não são, pois, puros Espíritos criados perfeitos e, consequentemente, são, na vida corpórea, almas da mesma natureza das dos outros homens, e, depois da morte, almas da mesma essência das dos outros defuntos.

            Se quiserem, não obstante a classificação teológica, considerá-los como puros Espíritos criados perfeitos que se corporizaram na Terra, teremos de admitir que os puros Espíritos criados perfeitos deixam de o ser, sem que se transformem em demônios, e, sujeitos às contingências da matéria, assumem efêmeros corpos mortais, constituídos trivialmente, conforme as leis comuns da natureza humana. Sofreriam, assim, aquelas privilegiadas entidades espirituais, sem terem cometido crime, um perpétuo rebaixamento, não compensado pela santificação, dependente de cerimoniais burocráticos que não os retirariam da classe das almas dos defuntos, para restaurá-los em sua primitiva natureza angélica.

            Se disserem que as almas dos santos, por se haverem purificado na Terra, ou por graça especial de Deus, subiram à condição de puros Espíritos, reconhecerão como verdadeira a doutrina espírita, proclamando que quantos procederem, como procederam os santos, ascenderão, com a graça divina, à ordem feliz dos Espíritos superiores.

            Se, porém, as almas dos santos, após a morte, continuam a ser da mesma natureza das outras almas de defuntos, terão os párocos de confessar que as almas dos defuntos podem comunicar-se com as pessoas vivas, ou encarnadas, porque os santos, depois de mortos, segundo os relatos da Igreja, têm, vezes incontáveis, revestidos de visíveis corpos materiais, aparecido na Terra, como em Lourdes, a Bernadette, que viu a Virgem Maria, ou a frades de certas ordens, que recebem, todos os anos, simultaneamente, nos seus conventos do mundo inteiro, a visita de S. Cosme.

            Assim, irmãos meus, não precisamos sair do Catolicismo para aceitar, na translúcida pureza de sua verdade, o Espiritismo.

            Dir-se-á, porém, negando-se o princípio das reencarnações, que as outras almas de defuntos, nunca mais voltando à vida terrestre, jamais poderão chegar à perfeição das que foram santificadas e constituem uma casta privilegiada, com poderes inerentes aos seus foros especiais.

            Ora, irmãos meus, a santificação é um ato meramente eclesiástico e exclusivamente humano, em que se apassiva a soberania divina, permitindo monstruosas iniquidades, seculares e até perpétuas. Vejamos.

            Condenada como herege por um tribunal de bispos, Joana d'Arc foi queimada viva. Dobados séculos sobre as labaredas que a consumiram, a Igreja, ao termo trabalhoso de longos inquéritos e pesquisas, reconheceu que não  soubera distinguir entre uma santa e uma pecadora, e confessou que martirizara a santa, supondo castigar uma herética. Reparando tardiamente o seu erro, colocou-lhe uma auréola à cabeça e uma espada à cinta, ergueu-a num altar, e mandou adorá-la.

            Mas, perguntamos, nos extensos séculos decorridos entre o martírio e a santificação, onde esteve a alma de Joana? No Paraíso? Não, que o Paraíso não é lugar de heréticos, e Joana foi oficialmente queimada, pela Igreja, como herética. Esteve, pois, no inferno, ou no purgatório.

            E Deus - a suma bondade e a suma justiça - só porque os bispos erraram, conseguiu que, por séculos, um santo padecesse no inferno ou penasse no purgatório, ou então, sendo a suma sapiência, precisou que se fizesse um inquérito na Terra, para saber que havia uma santa abandonada às fúrias infernais. Absurdo! Blasfêmia!

            Outro exemplo. Quando, pela força vitoriosa das armas e pela vontade entusiasta do povo francês, Napoleão Bonaparte ascendeu ao trono imperial, descobriram os seus áulicos, entre os seus ancestrais, um pobre clérigo falecido na obscuridade, e, dispondo-se a santificá-lo, a Igreja iniciou o inquérito basilar da canonização. Solicitou-se ao monarca sem nobreza de sangue os emolumentos para a marcha do processo canônico, e, negando-os, o guerreiro coroado explicou:

            - Se descobrem um santo entre os meus parentes, podem roubar-me as glórias, atribuindo-lhe a fundação da minha dinastia.

            O processo parou e Deus, na sua bondade e na sua justiça, em homenagem ao orgulho despótico de um soldado, permitiu que se deixasse um santo apagado no silêncio e no olvido, sem resplendor e sem culto! Absurdo! Absurdo!

            Assim, catolicamente, a Igreja é quem faz o santo, sem a intervenção de Deus, avisando o céu e a terra: “Desta data em diante, Pedro ou Paulo, é santo”. Segundo o Espiritismo, os Espíritos superiores, que correspondem aos santos, não atingem o seu grau de superioridade mediante inquérito ou concessão de contingentes criaturas terrenas, mas pela força natural do seu aperfeiçoamento, e a sua hierarquia independe do nosso reconhecimento, sendo eles próprios, com a graça paternal de Deus, que nos revelam a sua elevação, sem que se declarem santos ou iluminados.

            No esforço empregado para dar às manifestações dos Espíritos explicações consentâneas com os interesses do profissionalismo sacerdotal, atribuem-nas os púlpitos e os confessionários a sacrílegas artes do demônio. Ora, sendo o demônio o mal, e a faculdade mediúnica servindo única e exclusivamente para aquelas manifestações, não é admissível que Deus, a suprema bondade e a justiça suprema, desse aos seus filhos uma faculdade que só servisse para perdê-los, entregando-os ao demônio.

            Grandes homens da ciência contestam e negam as verdades espíritas. Poderemos avaliar a importância dessas contestações ou negativas, pelas contradições dos negadores entre si, que uns aos outros se combatem eles, provando-se os erros de cada qual. Enquanto os negativistas contendem ou discordam, outros grandes nomes da ciência, celebrizados, alguns, por descobertas notáveis, chegam, através de severas pesquisas, no rigor dos laboratórios experimentais, ao conhecimento e reconhecimento de verdades que os alistam entre os adeptos do Espiritismo.

            A teoria não produz o fato, e a transcendência imponderável da mais complexa teoria jamais destruirá o fato mais simples. O Espiritismo é o fato criando a teoria.


Transposição de Umbrais
parte 2 de 2 partes
Leal de Souza
Reformador (FEB) Julho 1970

            (Conferência pronunciada pelo Dr. Leal de Souza)
na FEB, e publicada em "Reformador" de 1924)
           
            Na esfera positiva dos fatos, as minhas observações datam de longos anos.

            Em 1911, AIcides Maia, membro da Academia de Letras, e, mais tarde, em duas legislaturas, deputado federal pelo Rio Grande do Sul, alegando necessitar, numa crise de alma, da constante assistência moral de um amigo, pediu-me para mudar-me da rua Senador Vergueiro para a casa de pensão existente, naquele tempo, na rua Buarque de Macedo, n" 52, onde ele residia. Era natural que o atendesse. Instalei-me em um segundo andar, dividido em quatro quartos, habitados, o da frente, amplíssimo, por Alcides; o segundo, por Ezequiel Ubatuba, que mo cedeu, transferindo-se para o último, nos fundos, e o terceiro pelo Sr. Francisco Marcondes, então presidente da Assembleia do Estado do Rio e depois deputado federal.

            No próprio dia da minha instalação, às dez horas da noite, estando eu no quarto, com a porta semicerrada, ouvi que batiam, e convidei: “Entre”. Soaram nítidos passos, da porta ao lugar em que me achava, mas, não vendo entrar alguém, supus, despreocupando-me, que as passadas fossem no aposento contíguo. Fechei a porta do corredor, mas, na que comunicava o meu com o quarto do deputado Marcondes, retumbaram violentas pancadas, enquanto a mesa de cabeceira oscilava, inclinando-se. Tão desprevenido estava eu, que atribuí absurdamente essa inclinação aos golpes que imaginava dados sobre a outra face da porta, no quarto de Marcondes. Saí para falar ao incômodo vizinho, mas, não o encontrando, pensei que, depois de bater, o barulhento havia saído. Deitei-me, e logo, inexplicavelmente, levantando-se comigo, a cama ergueu-se do solo. Saltei ao chão, e esse leito, que era de ferro, desceu docemente, assentando os seus pés nas tábuas, sem barulho. Não perdi a calma. Deitei-me pela segunda vez, e, pela segunda vez, suspendeu-se a cama, pairando.

            Sem receio algum dos Espíritos e sem pensar neles, passei para a alcova de Alcides, e, contando-lhe o ocorrido, disse-lhe julgar-me em estado de grave desequilíbrio nervoso, e pedi-lhe para assistir-me, com a sua companhia, até a manhã seguinte, em que eu iria consultar um especialista em moléstias nervosas.

            Disse-me, então, o meu excelente amigo, que, sendo aqueles fenômenos constantes naqueles quatro quartos, fora buscar-me, como pessoa de sua confiança, para ver se eu, sem ser avisado, também os constatava, pois ele, positivista, estava em dúvidas quanto à realidade de tal inverossimilhança.

            No dia imediato, Ubatuba, cujo sono fora perturbado por anomalias semelhantes, abandonou a casa, ocupando o quarto, por ele deixado, um inglês que fora procurar cômodos na pensão, e que se despediu pela manhã, dizendo que por aquele quarto passavam luzes que o aborreciam.

            Fui, então, para esse compartimento, e, tendo Marcondes emigrado para uma fazenda, ficamos sozinhos no segundo andar, separados por dois aposentos, eu e Alcides. Uma noite, talvez às 9 horas, estando eu deitado, a ler, e, portanto, com a luz acesa, senti nos pés uma sensação de frio, e, para agasalhá-los, desviando os olhos do livro, que era “MlIe. Joffre”, vi, com estranheza, uma coluna de luar leitoso a alvejar sobre a cama. E esse luar, condensando-se, gelatinoso, aos poucos parecia desenhar-se em forma de figura humana. Não sabendo como proceder, deixei a cama e o quarto.

            Os fenômenos começavam a ocorrer, de ordinário, às duas horas da tarde, prolongando--se, às vezes, até alta madrugada. Iam pessoas estranhas a casa para verificá-los. Constatavam, mas ninguém os explicava. Uma tarde, às quatro horas, na presença de um pastor protestante, tomávamos mate chimarrão, à moda gaúcha, no quarto da frente, Alcídes, Ubatuba e eu, quando, de súbito, pesado sofá em que se assentava Alcides, numa ascensão vagarosa, sem que mãos visíveis o levantassem, ergueu-se e pairou no ar, à altura dos nossos peitos.

            Alcides saltou ao chão, e, como o sofá permanecesse no ar, discutimos o caso.

            É o efeito de um abalo sísmico, disse o pastor.

            - Não pode ser, objetou o positivista, um tremor de terra sacudiria os outros móveis e abalaria as paredes.

            E o sofá, descendo lentamente, pousou no solo, sem ruído. Então, o protestante opinou:

            - Meus amigos, só há uma explicação para o caso. Este sofá não se levantou. Nós tivemos um momento de alucinação.

            E durante vinte e seis dias esperamos, Alcides e eu, que o mistério se desvendasse, espontaneamente, ermando, depois, o campo das investigações, porque as vigílias da noite prejudicavam a nossa atividade diurna. Deserto o segundo andar, cessaram os fenômenos, porém, meses mais tarde, habitando-o outros inquilinos, uma noite, justamente quando para lá voltara Alcides, saíram os novos moradores a fugir, em trajes menores, gritando que estavam a sacudir e a quebrar os móveis.

            E assim principiaram, irmãos meus, sem que eu as procurasse, as minhas observações no mundo dos Espíritos.

            Em 1915, em Junho, nesta capital, pereceu, atingido por uma bala, o poeta Aníbal Teófilo.

            Por esse tempo, eu e Goulart de Andrade, Martins Fontes, Heitor Lima, Alexandre Lamberti Guimarães e, não raro, Gregório da Fonseca e Luiz Murat, costumávamos jantar diariamente em companhia de Olavo Bilac, em qualquer dos restaurantes da cidade, e, uma ou duas vezes por semana, em casa de Alexandre, cunhado do poeta.

            Estávamos numa quadra radiosa de ventura pessoal e evidência literária. Nada deixava entrever o próximo desaparecimento trágico de um dos nossos companheiros diletos e, inexplicavelmente, alguns dias antes da morte de Aníbal, tornou-se pesado, sombrio, enchendo-se de presságios, o nosso ambiente. Os nossos jantares, que o talento e o sonho matizavam de alegria e de brilho, ficaram, num repente, fúnebres, e as nossas palestras, sempre fulgentes e álacres, tornando-se lúgubres, arrancaram, certa vez, à observação merencoria de Bilac, esta reflexão augural: - Parece que a morte paira sobre nós.

            Certa manhã, Aníbal, que não tinha crença religiosa alguma, surgiu em minha casa para dizer-me que, sentindo-se gravemente enfermo e esperando morrer em breve, ia constituir-me em depositário de suas vontades extremas. Ouvi-o, e, de acordo com Alcides Maia, fiz examiná-lo, contrariando-o, pelo médico de sua família, Dr. Hernani Lopes, que, poucos dias depois, confirmado pela autópsia policial, declarou ser perfeito o estado de seu vigoroso organismo.

            Nas antevésperas do dia fatal, se me permitis a expressão, jantávamos em casa de Alexandre Lamberti Guimarães e, de pronto, encruzando os talheres, a face ensombrada, Olavo Bilac declarou sentir-se indisposto, pediu que não nos inquietássemos com a sua indisposição e recomendou que não lhe fizéssemos perguntas. Ao fim do jantar, chamando Alexandre e outros dos seus amigos, disse-lhes o poeta: - Eu vi, repentinamente, naquele canto, o Aníbal cair ensanguentado.

            E, aflito, enquanto Aníbal, na sala próxima, conversava com uma senhora, Bilac afirmava:

            - Vejo-o, de novo, naquele canto, caído e ensanguentado.

            E dois ou três dias depois dessa extraordinária visão, Aníbal, ensanguentado, caía no saguão do “Jornal do Commércio”.

            A explicação de sua visita, quando foi constituir-me em depositário de suas vontades extremas, tivemo-la, após o seu traspasse, em carta endereçada a uma pessoa residente em São Paulo, e guardado hoje o documento, por Gregório da Fonseca. Nessa missiva, descrevia ele um sonho que tivera.

            Era noite cerrada, de espessa treva. Caminhando ao longo da muralha do cais da Glória, Aníbal ouviu um barulho de remos batendo na água, e, parando-se, viu encostar-se ao paredão um bote negro, de onde saltaram marinheiros vestidos de negro, que o cercaram.

            - Tens medo? perguntou-lhe um deles.

            - Não! respondeu-lhe Aníbal.

            - Vem conosco.

            Embarcando no bote funéreo, Aníbal, com os marinheiros enlutados, atravessou, sobre as águas cheias de sombras, o silêncio escuro da noite, e longe, no meio da Guanabara trevosa, passou-se para um navio inteiramente negro, a cujo lado, junto à escada, encostara o bote.

            Ao percorrer o interior desse navio funerário, Aníbal constatou, com surpresa, que os seus camarotes e beliches eram túmulos com epitáfios, e lendo, numa lápide, o nome de seu pai, abriu-a.

            Apareceu-lhe, então, a amada figura paterna, que lhe disse:

            - Meu filho, está próxima, muito próxima, a tua última hora. Fiz quanto me foi possível para salvar-te, mas nada consegui. Vai, e prepara-te para morrer.

            Disse e desapareceu. Aníbal, afastando-se desse camarote, ou sarcófago, regressou, no mesmo bote, à terra, onde o deixaram os marinheiros misteriosos. Então despertou.

            As manifestações do Espírito de Aníbal tem sido, aquelas que eu conheço, de uma semelhança que lhes assegura a autenticidade. Ouvi-o eu, certa noite, em sonho, sem vê-lo, dizer-me que estava no escuro, sentindo-se devorado pelos vermes. Em estado de vigília, e ignorando o que comigo ocorrera, o Sr. João Fontoura recebeu, psicograficamente, uma comunicação em que Aníbal lhe descrevia, nos mesmos termos, a sua situação no espaço, e, há dois meses, manifestando-se em uma sessão particular, entre pessoas que desconheciam aquelas anteriores demonstrações, que datam de alguns anos, o seu Espírito, ou ele próprio, já em condições de felicidade, descrevendo o período imediato à sua passagem para a outra margem da vida, recordava que “estivera no escuro, sentindo-se devorar pelos vermes”.

            Pertencem ao domínio público os resultados das observações por mim feitas no decorrer de um inquérito realizado com intuitos meramente jornalísticos. Encerrando-o, na imprensa, continuei, paciente, os meus estudos e pesquisas, e, com tão benigna proteção das potências espirituais, que tive todas as provas desejáveis da imortalidade da alma, da realidade de suas comunicações, de sua sabedoria e poder: - diagnósticos exatos, curas instantâneas, visões a distância, transporte de objetos, materializações de Espíritos.

            Ombro a ombro com Coelho Neto, consultando-nos sobre o que os dois testemunhávamos, vi repetir-se, muitas vezes em poucas horas, o transcendente fenômeno da materialização. Plenamente materializados, Espíritos identificados pelos circunstantes tocaram as nossas mãos, ofertaram-nos flores, produziram luzes para que lhes examinássemos a carnação, os tecidos das roupagens, a maneira de andar. Seria eu indigno desses incomparáveis favores, se, para alardear enganosa superioridade intelectual, recusasse aceitar os resultados e as consequências das minhas próprias investigações.

            - Aceito-as e, como vós e convosco, sob a invocação protetora dos mestres e dos guias desencarnados, levando, agradecido e súplice, o coração a Deus.


            Deus, princípio sem origem e fim sem acabamento, envolve na tua luz os Espíritos dos nossos mortos, os Espíritos de todos os mortos; acrisola e embalsama os nossos sentimentos, enlaçando-nos, pelo amor, aos nossos irmãos dispersos nos teus sistemas de mundos; alivia e consola, na terra e no espaço, os enfermos e os desgraçados; orienta os desorientados e conserva a alegria dos felizes; faze dos nossos lares, de todos os lares, em todos os orbes, templos de harmonia, para que possamos adorar-te sem lágrimas na face, e, condoído das nossas misérias, levantando-nos em nossas quedas, acolhe, Pai Magnânimo, a insignificância dos nossos tributos, na humildade de nossas preces!

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