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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Panorama



           Parece que o espírito de confusão, arrastando sua coorte de discórdia, incompreensão e desamor, tem penetrado ultimamente todos os setores humanos a fim de que a “abominação da desolação” contamine até mesmo “as coisas santas”, isto é, o movimento interno das religiões, a essência em que elas se inspiram. Nem mesmo o Consolador, tão amado pelos que por ele foram beneficiados, se isentou dos reflexos dessas investidas, pois numerosos problemas preocupam aqueles que assumiram verdadeiras responsabilidades no seio da Doutrina dos Espíritos. Frequentemente surgem ataques às obras de Allan Kardec, refutações, destruição mesmo, pois, para alguns, a codificação está “ultrapassada”, embora não aparecessem ainda obras melhores do que elas. Os Evangelhos, por sua vez, são dolorosamente rebatidos, quando o bom-senso sugere é o exame construtivo em todos os setores que interessam a Humanidade  e não o ataque e o negativismo, como alguns espíritas livres pensadores tentam fazer. De outro modo, jovens inexperientes, imbuídos de ideias materialistas, ou negativistas, se confundem, incapazes de uma análise racional entre a Doutrina Espírita, a que se filiaram, e o materialismo, que as escolas do mundo lhes apontam com foros de razão, análise que o Espiritismo vem resistindo vitoriosamente há um século.

            Em torno desse desagradável panorama negativo, um jovem aprendiz de Espiritismo, residente no interior do País, escreveu-nos, há dias, muito aflito e confuso, pedindo consolo e esclarecimentos sobre melindroso fato ocorrido em seu núcleo espírita. Disse ele que certo expositor doutrinário do núcleo em questão asseverou, publicamente, ser desnecessário o estudo completo dos Evangelhos, bastando que apenas conheçamos os pontos esclarecidos por Allan Kardec em “O Evangelho segundo o Espiritismo”. Que o estudo geral desse código cristão é perigoso, e que as Parábolas do Cristo são absolutamente inúteis, porquanto as Parábolas são interpretadas segundo o parecer de cada um. Que as Epístolas não têm valor para nós, espíritas, visto que nem mesmo se sabe se Pedro e Paulo existiram. Enfim, o “expositor” apresentou um programa de destruição daquilo  que, quando ele próprio nasceu, já encontrou no coração do próximo há cerca de vinte séculos, sem nada possuir para repor no lugar daquilo que destruiu.

            É lamentável que tais coisas aconteçam, mas a verdade é que acontecem, e o Evangelho aí está desafiando os séculos com uma literatura brilhante desde os seus primórdios, um serviço magnífico prestado à sociedade, sem que nada melhor fosse criado pelos “iluminados” da Terra a fim de substituí-lo. Nosso missivista, pois, que se tranquilize: essas críticas sempre existiram, mas a obra do Cristo é imortal e, apesar da incompreensão humana e da “competência” dos “mestres de obras feitas” há de permanecer. À proporção que o sentimento se depurar em nossos corações e o conhecimento amadurecer nossa razão, o que nos parece inútil ou defeituoso, naqueles códigos, se há de aclarar, pois nos Evangelhos também há ciência e transcendência, que nem a todos é fácil assimilar de improviso.

            Destruir, com as nossas opiniões pessoais, o que se encontra feito é fácil, não há mérito nesse trabalho. Mas realizar algo melhor do que aquilo que criticamos ou destruímos é muito mais difícil, porque frequentemente nos escasseiam méritos para tanto. Porque destruir o Evangelho, lavrando confusão no coração daqueles que se sentem bem ao acatá-lo, quando uma literatura perniciosa, erótica, deprimente, infesta o mundo, corrompendo a mocidade? Rejeitar o Evangelho, arrancando-o do coração daqueles jovens de boa vontade, os quais, na hora difícil que atormenta a Humanidade, se voltam para as coisas de Deus, engrandecendo o próprio caráter com um ideal superior, não será um crime? Sugerir-lhes, com tais críticas, que se tornem pessimistas, cépticos, ateus, será próprio de quem um dia se comprometeu consigo mesmo a difundir o bem, do alto de uma tribuna? Repudiar o exemplo dos apóstolos de Jesus, afetando descrença na existência deles, sim, é preferível, é cômodo, porque aceitá-los, imitando seus exemplos de abnegação e sacrifícios dará trabalho! Será necessário renunciar às atrações do mundo, que tanto agradam aos que vivem para si mesmos, será o sacrifício do repúdio às vaidades, e ao orgulho, que nos iludem o senso, pela adoção da humildade, do amor, do trabalho, da espiritualização de nós mesmos, da construção de valores pessoais, a fim de nos tornarmos dignos da mensagem do Cristo, como os apóstolos o foram. Aceitar os “Atos dos Apóstolos” será seguir o exemplo daqueles que a tudo renunciaram, até mesmo à família, ao bem-estar do lar, à tranquilidade da existência, para que o ideal divino, por eles difundido, penetrasse o coração do próximo e o reeducasse, enquanto eles próprios sofriam toda sorte de humilhações e martírio; e, por isso mesmo, porque ainda não possuímos capacidade para tanto, destruímos esse patrimônio humano nos corações jovens que se habilitam para, quem sabe? conseguir a capacidade que nos falta.

            As Parábolas do Mestre Nazareno são lições imortais que nos ajudam a compreender a vida e cuja oportunidade e realidade poderemos constatar diariamente, nas peripécias da vida prática de cada um. Nenhum mortal até hoje conseguiu criar conceitos mais vivos e oportunos, e Allan Kardec tratou de algumas delas com visível respeito, sem destruir as demais, visto que era “o bom-senso encarnado”. Porventura, “O Bom Samaritano” terá dois modos, ou modos múltiplos, de interpretação, como quer o nosso “expositor”? Porventura a “Parábola do Filho Pródigo” poderá ser interpretada de outra forma, senão aquela mesma que diariamente contemplamos em nossa sociedade? E “A casa construída sobre a rocha” não oferece a mesma interpretação desde o dia em que a palavra do Senhor se fez ouvir? E a voz de Jesus, bendizendo aqueles que o socorriam, quando socorriam o próximo, lição parabólica, também não brilha pela objetividade do pensamento? Porventura o senso, a razão e a lógica não nos ensinarão a compreender nessas Parábolas o verdadeiro sentido que nelas imprimiu Aquele que as criou?

            Uma mistificação não demora vinte séculos sustentando o ideal nos corações sinceros. Deus, o Criador de todas as coisas, não permitiria que, por uma mentira, que alguns sugerem ser os “Atos dos Apóstolos”, as Epístolas, etc., criaturas devotadas e sinceras derramassem o seu sangue nos suplícios dos primeiros séculos, sofridos pelos cristãos, testemunhando a sublimidade do ideal pelo qual morriam, e nem o cérebro humano seria capaz de inventar personalidades da superior envergadura de Pedro e de Paulo. Que, pois, o caro missivista não se preocupe com o que possam dizer os “expositores” livres pensadores, discípulos de Renan e não de Jesus e de Kardec. São ideias pessoais que não se conseguirão impor. Procure antes dedicar-se ao estudo fiel da Revelação Espírita, do Evangelho, de todos os compêndios, mesmo profanos, dignos de serem acatados, pois o mundo, e não somente o Espiritismo, necessita de personalidades cultas, mas bem orientadas, capazes de criarem o reino de Deus em si mesmas a fim de estabelece-lo no mundo, e não de imitadores de opiniões alheias negativistas e destrutivas. Que os estude também na vida prática e sentirá a alma edificada, invulnerável à agressão de “expositores” que assim pensam porque ainda não conheceram o sofrimento, têm satisfeitos até hoje os próprios desejos e paixões, mas, no dia em que a dor realmente os visitar, saberão compreender não só as Parábolas do Senhor, mas também procurar a companhia de Pedro e de Paulo, a fim de se consolarem meditando no heroísmo deles a frente das penúrias suportadas, ao mesmo tempo que aproveitando dos ensinamentos por eles deixados há dois mil anos aos corações humildes e de boa vontade, capazes de compreenderem a mensagem do Cristo a eles e aos demais discípulos confiada para nosso aproveitamento.
Panorama
Frederico Francisco / (Yvonne A. Pereira)

Reformador  (FEB) Jan 1970

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