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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Pedro Richard - peregrino do Evangelho - parte 2


Pedro Richard  – Peregrino do Evangelho
2
por  Indalício Mendes
Reformador (FEB) Junho 1977

Lutar para sobreviver

            Numerosas atividades teve Pedro Richard de desempenhar para prover o lar amado. Foi corretor de imóveis, vendendo prédios e terrenos, lutando, cheio de coragem, a fim de que a família não sentisse as agruras que tão frequentemente ferem os lares desprovidos de fortuna. Não. Ele tinha suas convicções de que cabe ao homem entregar-se ao trabalho honesto, seja qual for, para defender o sossego daqueles que dele dependem. Não foi homem de ócios. Sua educação rígida, baseada na honradez e no trabalho, era-lhe estímulo de todas as horas. Experimentou muitos tipos de trabalho, até de horas extras, porque não o intimidavam as dificuldades. Tinha no lar a esposa que era para ele um fanal de esperança. Tinha os filhos, que lhe incutiam desmesurada energia. Um dia, improvisou-se construtor. Era mais uma tentativa que ele, espírito indômito, realizaria, dentro da mesma linha de conduta que lhe marcou a existência. Adquirira experiência a respeito e formou uma firma com o seu nome - " Pedro Richard - Construções" (parece que foi esse o dístico), com sede na antiga Rua S. Pedro (onde está hoje a Avenida Presidente Vargas), com uma oficina de carpintaria, onde eram feitas as esquadrias para consumo em suas obras. Naquele tempo, para se obter o registro de construtor era necessário apresentar declaração firmada por engenheiro civil, de que o candidato possuía real capacidade para semelhante mister. Ora, capacidade não lhe faltava, porque, curioso, ativo, empreendedor e inteligente, Pedro Richard jamais se dedicara a empreendimento pelo qual não pudesse responder.

            Faltava-lhe, porém, um título oficial para poder trabalhar nessa especialidade. Não tivera oportunidade de obtê-lo, embora fosse extremamente capaz. Veio em seu auxílio um velho e grande amigo, sócio da Federação Espírita Brasileira, de nome Abel Ferreira de Mattos, engenheiro civil de prestígio. Vencido esse obstáculo inicial, pode entregar-se de corpo e alma ao novo serviço, com o mesmo escrúpulo de sempre, pois era exigente consigo mesmo na observância dos menores requisitos. Como construtor, executou vários serviços para o Ministério da Guerra, depois de vencer árduas concorrências públicas. Fez paióis de pólvora, em Deodoro; estrada de acesso entre a praia de Charitas e o Forte do Imbuí; pavilhões para uma unidade do Exército, em São Cristóvão; reformas e adaptações de um prédio destinado ao Colégio Militar de Barbacena, e também a casa do Laboratório Químico e Farmacêutico Militar, no então Distrito Federal (Rio), afora numerosas obras para a Irmandade da Cruz dos Militares, etc.

            Não se dedicava exclusivamente a serviços contratados com o Ministério da Guerra; tinha outros trabalhos externos, também de construção. Richard era "pau para toda obra". Para toda a boa obra, é claro!

O grande sonho realizado

            Todos os grandes próceres do Espiritismo daquela época alimentavam o sonho de ver a Federação Espírita Brasileira com sede própria, pondo termo, assim, às suas "andanças", pois diversas vezes a Casa Máter sediou-se provisoriamente em diferentes lugares, quase sempre insuficientes para o seu trabalho e impróprios ao antevisto surto de progresso do Espiritismo e às necessidades novas que o movimento passaria a impor. Leopoldo Cirne, Pedro Richard , Antônio Luiz Sayão, José Luiz de Magalhães, além de outros valorosos espíritas, por certo conversaram a esse respeito muitas vezes. Mas a Federação não tinha recursos disponíveis, precisava de um local muito  bem situado, no centro da cidade, com a amplitude indispensável ao desenvolvimento, à expansão de suas atividades. Era uma ideia que ganhava corpo depressa.

            O número de correligionários do Espiritismo aumentava, a ideia passou a ocupar o pensamento de todos e não era de se esquecer o entusiasmo que ela despertava. Mas, como realizá-la? Como pô-la em prática, se a FEB não tinha disponibilidades? Como é comum acontecer com as organizações espíritas, as dificuldades são sempre vencidas, desde que haja fé a revigorar as esperanças, desde que as esperanças se nutram da convicção que somente a fé pode outorgar.

            Reuniões se fizeram para tratar do assunto. Uns poucos consideravam temerária a ideia, em tal situação; outros, porém, iluminados pela fé que remove montanhas, já sorriam ante a perspectiva de ver a Casa de Ismael em seu templo amplo, simples, mas em condições de desatar os liames que retardavam o crescimento mais ativo da Terceira Revelação em nosso país. Nada se faria precipitadamente.

            Para encurtar razões, diremos logo que o grupo mais atuante e mais decidido tomou a deliberação de lançar a ideia, esperando a colaboração dos espíritas e dos simpatizantes do Espiritismo, porém, ainda mais confiantes no amparo da Espiritualidade superior, de onde vinham estímulos progressivamente mais fortes. Necessitavam de um construtor idôneo, preferentemente espírita, que, ciente dos meios de que poderia dispor a Federação Espírita Brasileira, colaborasse com amor para a concretização do sonho admirável.

            E esse homem apareceu, estava dentro da Casa, era um dos mais devotados adeptos do Espiritismo Cristão, conhecedor profundo da Doutrina e cultor decidido dos Evangelhos:  Pedro Richard!

            Quanta luta, quanto trabalho, quantas preocupações, quanta graça provinda dos céus! Quanta colaboração valiosa dos irmãos terrenos, entre os quais os que olhavam o Espiritismo com simpatia, mas professavam outros credos! Só este fato revela uma confraternidade talvez estimulada pelos Espíritos amigos, que anonimamente empurravam para a frente a ideia grandiosa.

10 de dezembro de 1911

            Meses, meses e meses de trabalho insano, de sacrifícios sem conta, quase desanimadores, de fadigas somadas a fadigas, dias e noites acumulados. A grande obra, entretanto, prosseguia. Pedro Richard lá estava à frente dos serviços, secundando com a sua fé a fé de Leopoldo Cirne e outros companheiros. Parecia possuir o dom da ubiquidade, porque não descansava e dava atenção a todos os pormenores, compreendendo que a grandeza de uma obra depende essencialmente de determinados detalhes preciosos.

            Tudo pronto, a alegria dominando todos os corações, a imprensa registrando o fato com irrestrita simpatia, como será fácil comprovar pelos documentos existentes nos arquivos da FEB, antes e depois da grande cerimônia inaugural, eis que, a 10 de dezembro de 1911, há 65 anos (hoje 103 anos), portanto, na Avenida Passos, que constituía a artéria mais notável do Rio, depois da Avenida Rio Branco, erguia-se, imponente em sua simplicidade, impressionante na austeridade da sua "fisionomia" arquitetônica, a sede própria da Casa de Ismael!

Vozes de Festa

            O contentamento que lavrava naquele oásis de Espiritualidade encontrava consonância com o júbilo demonstrado pelos Espíritos, porque a grande obra não era só humana, mas principalmente espiritual. O acontecimento teve enorme repercussão, como não poderia deixar de acontecer. Os jornais registraram o fato com palavras de apoio à Federação Espírita: Brasileira, que se apresentava, desde então, ao mundo dos vivos, com um templo espaçoso, aberto de par em par, ostentando no alto de sua fachada todo um programa de ação superior, consubstanciado nestas três palavras eloquentes: DEUS - CRISTO - CARIDADE.

            Pedro Richard considerava que a vitória fora de todos.

            José Luiz de Magalhães (pai de Ivo de Magalhães, atual membro do Conselho Superior da FEB), espírita atuante, tanto que foi secretário de Diretoria na administração de Leopoldo Cirne, seu íntimo amigo, como o foram, do mesmo modo, Pedro Richard, Manuel Quintão, etc.; poeta inspirado, sentiu a alma estremecer de gozo divinal e produziu em versos sublimados de inspiração (ao ser inaugurado o edifício da Federação Espírita
Brasileira), os sonetos

                                                                       VOZES DE FESTA

                                                                                   I

            Deus, Cristo e Caridade! Horas secretas
            Da gênese insondável do infinito,
            Cataclismo de mundos de granito,
            Nebulosas de sóis - errantes setas;

            Almas da noite lúgubre inquietas,
            Almas cruzando pelo azul bendito,
            As cismas do filósofo precito,
            Aos encantados sonhos dos poetas;

            Sarças de fogo da soidão (1) divina,
            Caniço do deserto posto ao vento,
            Parábolas de luz da Palestina;

            Água lustral dos mártires da Terra,
            Óleo santo de vida e pensamento:
            Deus, Cristo e Caridade - tudo encerra.

                                                                       II

            Desta casa - hospital, templo e oficina,
            P'ra rotos e famintos saciar,
            E a multidão qu'evoca peregrina
            Dos sedentos da luz desalterar; (2)

            Na fachada, bem alto a s'ostentar,
            Da casa (que o trabalho, lei divina,
            Propiciatório a todos vem lembrar) :
            Fé e amor e humildade o lema ensina.

            Basta! E agora este voto dirijamos
            Aqueles cujos nomes veneramos:
            Que tu, bom Guia - ó Ismael! assim

            Em novas forças nosso empenho mudes,
            A Deus rogando na amplidão sem-fim
            Do estelífero (3) sólio das virtudes."

(1) Soldão - forma arcaica do vocáabulo "solidão".
(2) Desalterar - matar, mitigar, aplacar a sede.
(3) Estelífero - que tem estrelas. Fig. Que tem pintas como estrelas.

            Dois belos sonetos, emersos do recôndito da alma sensível do poeta espírita cristão, que retratariam, como retrataram, o esplendor da grande festa espiritual daquele dia memorável.

            A exemplo do que sempre sucedeu, em ocasiões marcantes do nosso movimento espírita e da trajetória da Casa de Ismael, não faltariam, como realmente não faltaram, às solenidades confraternativas de 10-12-1911 a presença e a palavra dos nossos companheiros do "País de Camões". Coube, por Isso, ao querido médium Fernando de Lacerda, então entre nós, encerrar a série de alocuções, congratulando-se com a Federação Espírita Brasileira, saudando-a em nome dos Espíritas Portugueses.

O descanso do trabalhador é o trabalho
                                                                                                                 
            O iluminado e bondoso Guia Ismael, preposto de Jesus em terras de Santa Cruz, tinha agora o seu templo material, não para a exaltação pomposa das vaidades humanas, mas para a irradiação contínua, ininterrupta, de bênçãos sobre a humanidade que luta e sofre, que se inquieta e desespera, para que receba o bálsamo santificado do Mestre Nazareno, que realiza na Terra o mandato do Bem outorgado por Deus.

            Pedro Richard, como seus valorosos companheiros de ação, compreendia que, depois desse grande passo, o Espiritismo exigiria o máximo do máximo, porque não se fizera a sede da Casa de Ismael para contemplações estéreis. Não. Ela constituía o marco de uma nova era, a continuação de uma obra que só tenderia a crescer, como tem crescido, como está crescendo, como crescerá hoje e sempre. Não se erguera uma casa tão grande, para a época, à custa de inenarráveis esforços e sacrifícios, para embasbacar o vulgo. Não! A Casa de Ismael não seria, como não será jamais, apenas um templo de pedra, um sarcófago de dogmas ininteligíveis, um pedestal para a ambição de ninguém. E os fatos o têm provado.

            A Federação Espírita Brasileira tem um destino traçado na Espiritualidade. Ela existe na Terra para servir aos homens, mas para servi-los na conformidade dos mandamentos do Cristo, para despertar-lhes a necessidade da paz da consciência, da alegria da alma, através do Amor e da Caridade, que são expressões sinonímicas de um mesmo sentimento alevantado. Existe como templo de paz, de fraternidade, de tolerância objetiva e de farol para os que, perdidos na vida pelas paixões malsãs ou arrastados pelo vendaval desencadeado pela Treva, possam reencontrar-se, recuperando-se, reerguendo-se, trocando um passado triste e talvez delituoso pelo presente de trabalho reconstrutivo, de recuperação fecunda para se assegurar, sem dúvida nenhuma, um futuro redentor!

            O templo de Ismael não vale pela estrutura material, mas pelo que de espiritual reveste e abriga essa estrutura. Bittencourt Sampaio, outro notável espírita, que fez dos Evangelhos o alimento díário de sua alma evoluída, ao referir-se à samaritana, à beira do poço, dá-nos este poema de ternura, encontrável em "Jesus perante a Cristandade", valiosa obra há pouco reedltada pela FEB:

            - "Dá-me de beber - disse o Divino Mestre; e a mulher, cheia de assombro, pergunta-lhe como, sendo ele judeu, pedia água a uma samaritana.
            - Se tu soubesses quem te pede de beber, tu me pedirias, e eu te daria da água viva.
            - Como, Senhor - diz a mulher -, o poço é fundo e não tens com que tirá-la! Serás tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, sua família e seu gado?
            - Aquele que beber dessa água terá sede - responde o Divino Mestre -, mas aquele que beber da água que eu dou nunca mais terá sede, e essa água virá a ser nele uma fonte que salte para a vida eterna."

            E prossegue:

            - (...) "o verdadeiro templo, a verdadeira igreja é o coração do homem, sendo os seios da alma o verdadeiro tabernáculo donde a criatura tira o incenso das orações, no aroma da flor dos belos sentimentos, para elevar-se ao seu Criador, a N. S. Jesus Cristo, o guia, o protetor, o governador deste planeta.
            Não; Jesus não compreendia, nem nós podemos compreender, que as criaturas, rendendo culto e homenagem a um Criador, odiassem a seus pares, a seus iguais, por uma simples divergência de exterioridades religiosas. Ele não compreendia que aquele que crê sinceramente em Deus, faltando aos preceitos da verdadeira fraternidade, pudesse, pelas simples fórmulas da sua crença, anatematizar e condenar a seus irmãos, em vez de se lhes procurar impor pelas virtudes, pela moral evangélica, enfim, por todos esses sentimentos que atraem para a criatura a atenção, a admiração e o respeito dos seus semelhantes."

            Aí está. A sede da Federação Espírita Brasileira é apenas uma referência, na Terra, dos desígnios do Senhor Jesus. É um como que oásis no imenso deserto materialista que Identifica o mundo de hoje. Nela, como em toda casa espírita realmente digna deste nome, o viandante aflito e cansado pode encontrar também a paz que procura e saciar a sede que o atormenta, sem que se lhe pergunte de onde veio, para onde vai, o que é, o que pensa, se é dessa ou daquela fé, se é dessa ou daquela filosofia.

            Todo ser humano é bem-vindo na casa de Ismael e em todas as casas espíritas, porque sobre elas paira, com as mais fortes vibrações de amor, o lema de Ismael: DEUS-CRISTO-CARIDADE!

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Sedes da FEB

            No corpo do artigo mas destacado em relação a esse são listados os espaços ocupados pela FEB até a inauguração de sua sede própria:

Em 1884 - Rua da Carioca, 120
Em 1884 - Rua da A1fândega, 153
Em 1886 - Rua do Hospício, 147
Em 1887 - Rua do Hospício, 102
Em 1888 - Rua Clube Ginástico, 17
Em 1888 - Rua do Regente, 19 - 29
Em 1890 - Rua da Imperatriz, 83 - 29
Em 1891 - Largo do Depósito, 54 - 19
Em 1891 - Rua da Alfândega, 342 - 29
Em 1899 - Rua do Rosário, 141- 19
Em 1903 - Rua do Rosário, 133 (antigo 97)
Em 1911- Avenida Passos, 28 e 30
Em 1924 - Avenida Passos, 28, 30 e 32.

NOTA - As Ruas do Hospício, Clube Ginástico, do Regente e da Imperatriz chamam-se,
hoje (1977) , respectivamente, Buenos Aires, Silva Jardim, Gonçalves Ledo e Camerino. O antigo Largo do Depósito é, atualmente, a Praça dos Estivadores (Onde fica hoje?).
            Em muitas das ruas acima, os números dos prédios são presentemente (1971) outros.


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Pedro Richard - Peregrino do Evangelho - parte 1


Pedro Richard  – Peregrino do Evangelho
1
por  Indalício Mendes
Reformador (FEB) Maio 1977

É necessário haja equilíbrio entre a inteligência e a humildade,
porquanto o que desvaira o Espírito é o julgar-se possuidor de alguma coisa."
- Bezerra de Menezes.

"O Iniciado na Doutrina Espírita precisa conhecê-la e interpretar lhe os preceitos,
aplicando-os a si mesmo para se constituir depois um evangelizador da palavra
e recolher do seu esforço cem por um, segundo a promessa do Cristo de Deus."
- Bittencourt Sampaio.

"O Evangelho é um compêndio de Leis Divinas,
interpretadas pelos homens segundo a evolução intelectual e moral das gerações."
- Pedro Richard.

            Predispusemo-nos a enfocar, nas linhas que se seguem, sem preocupação cronológica, uma das mais fortes e atraentes personalidades do Espiritismo Cristão, cuja vida foi permanente testemunho de respeito e obediência aos preceitos evangélicos deixados por Jesus para o bem da Humanidade: Pedro Richard.  Descrever lhe a vida, quase sempre referta de preocupações e dificuldades, não constitui fácil tarefa. Foi um justo. Com esta frase poderíamos resumir toda uma longa história de devotamento exemplar ao Cristo de Deus, através do Espiritismo, que ele amou profundamente, sem, contudo, abeirar-se do fanatismo, ou do dogmatismo que denigre, via de regra, as melhores intenções.

            O espírita realmente identificado com a Doutrina e o Evangelho procura desligar-se, tanto quanto sua condição humana o permita, das gloríolas terrenas. Convicto, pela fé, pelo conhecimento prático e pelo estudo da palavra do Nazareno, da realidade indestrutível da Terceira Revelação, concentra sua atividade nos princípios éticos da Doutrina que espontaneamente aceitou, e intenta percorrer o caminho que o levará à Luz, com o coração a pulsar de amor puro pelo objetivo colimado, ainda que sinta a alma dolorida e os pés ensanguinhados pelas provações depuradoras, sem dúvida destinadas à redenção. Pedro Richard foi um homem seguro de si em suas convicções, sublimadas pelo sentimento cristão; externamente, a própria imagem da simplicidade, da brandura e do comprazimento. Jamais admitiu atitudes estudadas, nem deixou nunca de chamar a verdade ao testemunho, em situações que considerasse equívocas ou incompatíveis com a retidão determinada pela Doutrina, fosse qual fosse a eventualidade. Evitou sempre valorizar-se aos olhos de alguém, e jamais procurou ser outra coisa além do que realmente era: discípulo humilde, intransigentemente fiel ao Mestre de Nazaré.

            Ocorrem-nos, neste passo, as palavras do valoroso Espírito Bittencourt Sampaio, à mera evocação da personalidade austera de Pedro Richard:

            "As almas, pelo seu procedimento moral, devem ser como espelho, em que todos os seus atos se reflitam. O homem honesto, ainda que não professe crença alguma, deve sempre estar pronto à devassa da sua alma, devassa que a sua própria consciência, melhor do que ninguém, pode fazer."

            Pedro Richard nasceu no dia 9 de setembro de 1853, na cidade de Macaé, Estado do Rio de Janeiro, filho de Pedro Richard e D. Felismina Richard, de família modesta, mas de grandes virtudes e, por isso mesmo, honorabilíssima.

            Órfão de pai aos nove anos de idade, teve de iniciar-se muito cedo no trabalho diário, tornando-se o amparo de sua mãe e de irmãos menores. Tinha enorme veneração por sua genitora, mulher de costumes austeros e de sentimentos elevados, dotada de tolerância e piedade.

No torvelinho

            Quando, ainda cedo, foi compelido ao trabalho, achava-se no curso primário de uma escola local. Teve, assim, de interromper os estudos, engajando-se numa casa comercial, a fim de ajudar a família, que era acossada por enormes e compreensíveis dificuldades, com a desencarnação do chefe. Mais tarde, o jovem Pedro Richard tornou-se funcionário da Alfândega, melhorando, embora muito pouco, a sua situação econômica. Estava já no torvelinho da vida terrena, encarando muito a sério suas responsabilidades e habituando-se a praticar, no dia-a-dia das lutas, as virtudes que os pais lhe haviam transmitido, como parte fundamental de sua educação. Adquirira o hábito salutar de nada fazer sem refletir, assim como a não se beneficiar em suas justas pretensões de progredir, se isso pudesse importar em sacrifício, direto ou indireto, de alguém. A probidade foi a herança que o pai amado lhe deixou ao desencarnar, e ele porfiava, como, de resto, toda a família, em não esquecer os exemplos daquele que fora exemplar chefe do grupo familial, exemplos que, por sua vez, transmitiu a seus descendentes.

            Casou-se com D. Mariana Campos Richard, nascida em Angra dos Reis, Estado do Rio, dela tendo seis filhos: Mário, Felismina, Pedro, Mário, Isaura e Marta, todos também já desencarnados, os dois Mários e Marta quando ainda crianças.

            Defrontando sérios embaraços econômicos, não pode ele evitar a ajuda dedicada da esposa, que costurava para fora. Dias terríveis foram aqueles, mas Pedro Richard e D. Mariana não perderam o ânimo e mantiveram a fé em que melhores dias viriam, por certo.

A luz da revelação

            A morte do primogênito Mário, aos dois anos, após longo sofrimento, foi a bem dizer a porta que se abriu a Pedro Richard para o encontro com o Espiritismo. Não compreendia como, diante da bondade incomensurável de Deus, era permitido o sacrifício doloroso de uma criança, toda inocência, durante dias e noites de dores lancinantes, para o desfecho fatal, que tanto acabrunhara a todos.

            Buscava explicação para o que supunha tratar-se de uma incoerência. E essa explicação estava a caminho. Havendo conhecido um homem de nome Nascimento, pessoa caridosa e simples, veio Pedro Richard a saber tratar-se de um médium, isto é, de uma pessoa que tinha o dom de comunicar-se com Espíritos e de servir de instrumento às almas desencarnadas para praticar o bem. Depois de conversar com Nascimento, ele se sentiu bastante aliviado. Recebera a consolação de que precisava e, mais do que isso, uma explanação clara e objetiva do que é a Justiça Divina, que tem como elemento de purgação e progresso a reencarnação.

            Saíra da casa do médium com a face iluminada.

            Banhara-o a luz da revelação espírita! Começara a aprender o "porquê" da vida e da morte, da dor moral e do sofrimento físico. E ao desespero que amargurava o casal sucedeu a tranquilidade dos que compreendem e, por compreenderem, creem.


            Por essa época, vivia dominado por preocupações crescentes com a manutenção da família. Dedicava-se a trabalhos incertos e pouco rendosos, mas trabalhava. Fosse o que fosse que surgisse, ele, resoluto e esperançoso, aceitava, não medindo esforços para atenuar a precária situação de sua vida. Sempre acreditara em Deus, sempre reconhecera em Jesus a fonte de água pura, que mata a sede e reanima os desanimados e tinha Maria Santíssima como lenitivo para todas as ocasiões amargurantes. Se a sua vida dependesse de fé, pensava consigo mesmo, haveria de transpor todas as barreiras que surgiam à sua frente. A pobreza não impediu que ele e a esposa adotassem uma criança necessitada, de nome Francisco Antônio de Carvalho, que tinha distante parentesco com D. Mariana. Era o Chico.

O Chico

            É bem certo o ditado: "Quem semeia flores, não colhe pedras." Esse menino desamparado, acolhido como filho igual aos outros no lar de Pedro e Mariana, provaria, anos e anos mais tarde, que era também bom fruto de boa árvore. Jamais esqueceu o que fora feito por ele amorosamente e desencarnou quando desfrutava do posto de coronel do nosso Exército, com excelente folha de serviços. Mas, não nos precipitemos. Com grande dificuldade, pois o dinheiro que conseguiam mal dava para o sustento da família, Pedro e Mariana tratavam Francisco em pé de igualdade com os demais cinco (Mário havia desencarnado, lembremo-nos). Dessa forma, encaminharam-no, um dia, para a Escola Militar, de onde ele saiu como Engenheiro Militar, honrando, dessa forma, a dedicação e o amor de seus pais adotivos.

            O Chico, como era tratado na intimidade Francisco Antônio de Carvalho, permaneceu solteiro. Estava sempre atento às necessidades dos pais adotivos. Pedro Richard e Mariana dedicavam-lhe grande amor. Seguindo os passos do velho Richard, foi ele, durante anos, Diretor da Federação Espírita Brasileira, pois comungava na mesma crença que se tornara comum naquela família exemplar. Depois da desencarnação de Pedro Richard, Francisco tornou-se o verdadeiro "patriarca" da família, seu conselheiro e amigo incondicional, até desencarnar.

            Temos diante de nós, no instante em que escrevemos o que aqui fica, uma fotografia de Pedro Richard, o olhar firme e sereno, que nos foi cedida por seu neto, Pedro Richard, coronel do Exército e espírita militante, sobre a qual, em letra clara, se lê esta dedicatória simples e admiravelmente expressiva: "Ao meu bom filho e amigo Chico 9-9-914."

                                                           Caridade instintiva

            A caridade era virtude inata em Pedro Richard e D. Mariana. Daremos mais um exemplo. Sabendo de uma criança parda, de um ano de idade, que se achava em péssimas condições orgânicas, acolheram-na com o maior carinho, dispensando-lhe os cuidados indispensáveis. O pai dessa menina, ébrio contumaz, esmolava, carregando-a dentro de um saco. O infeliz, por certo, no lamentável estado em que ficava, nenhuma noção tinha do que fazia. Uma pretinha de tenra idade, encontrada doente, em deploráveis condições de higiene e em completo abandono, foi por eles recolhida e tratada com desvelo. Os anos passaram-se e aquela criancinha, filha do desditoso ébrio, cresceu e acompanhou a primeira filha do casal quando esta se casou, e, também, mais tarde, consorciou-se sob os auspícios da jovem patroa. A pretinha ficou boa, cresceu, revelando sempre muita dedicação a seus benfeitores e descendentes, até desencarnar, quando ainda vivia em casa de uma das filhas de Richard.

            Vê-se que, desprovido de fortuna material, possuía o velho Richard aquela riqueza de que nos falam os Evangelhos, que a traça não corrói, nem excita a cobiça dos ladrões: a riqueza de sentimentos, distribuída generosamente com os desventurados.

            Quem semeia o bem, colhe bênçãos.

“Pai Nosso”

            Duma feita, possivelmente inspirado, traçou este "Pai Nosso", belo e simples:

"Pai Nosso, que estais no Infinito, santificado seja o Vosso Nome.
Venha a nós o Vosso Reino de Amor e Caridade,
Seja feita a Vossa Vontade, na Terra, no Espaço e em todos os mundos habitados.
Dai-nos o pão da alma e do corpo, Senhor.
Perdoai as nossas ofensas e dai-nos a graça de perdoar àqueles que nos ofenderem.
Livrai-nos das tentações dos maus Espíritos e
enviai-nos os bons para nos esclarecerem.
Amo-vos, meu Deus, de toda a minha alma e
quero amar os meus semelhantes que,
por Vosso Amor, são todos meus irmãos."

Vereda de espinhos

            Atravessava Pedro Richard uma fase de dolorosas provações, com a coragem e resignação que lhe eram comuns. Não se queixava. Notava-se lhe a fisionomia serena, mas sombreada de preocupações. O fato não constituía ensejo a que diminuíssem o seu carinho, a sua atenção e a sua solicitude àqueles que, também experimentando dores físicas e morais, buscavam na sua palavra algum lenitivo. Sufocava suas amarguras e transformava-as em bálsamo para as amarguras alheias.

            O fato deve ter, muito sutilmente, chegado ao conhecimento do companheiro José Luiz de Magalhães, dedicado servidor do Cristo e samaritano de alma sempre aberta à cooperação. Tanto assim é que ele, José Luiz, poeta nato, compôs este poema, partilhando dos sentimentos do amigo:

A Dor

No Calvário da dor, da regeneração
Tudo sofre na Terra em sua evolução.

Tudo renasce após, liberto da matéria,
De grau em grau subindo à perfeição sidérea.

A pedra, a água da fonte, o musgo inerte, a flor,
A fera e o homem - tudo, a tudo atinge a dor;

Da mutilada rocha os hialinos blocos
Que s'espargem no chão; névoa de brandos flocos

Por sobre o lago, o rio e o mar - toda a extensão
Das águas ao calor dos dias de verão:

Da árvore a seca flor; das feras o lamento;
E do homem que medita o augusto pensamento.

Lei do céu, lei da vida, inalterável lei!
Do átomo à estrela e do anjo à revoltada grei.

Lei sagrada! movendo os mundos no infinito,
Da nebulosa ao Sol e do éter ao granito;

Velando sem cessar por toda a criação:
Diamante, flor, criança, anjo na perfeição;

E do perdido céu a nós que aqui tombamos,
E que hoje o turvo olhar saudosos elevamos,

Na vida ignara e má (caídos pelo mal,
Caídos pelo orgulho) aponta maternal,

Na verdade, na luz e na ascensão sublime
Ao término da estrada a cruz que nos redime."

Richard e os descendentes

            É preciso ainda enfatizar a noção de igualdade e amor com que Richard tratou os filhos todos. Dissemos, linhas atrás, algo sobre Chico, acolhido pela família de forma fidalga. Seria injusto se esquecêssemos de fazer uma referência, mesmo superficial, a Pedro Richard Filho, homônimo do venerando ancião de que nos estamos ocupando. Foi um digno seguidor do "velho", dando exemplos de devotamento e amor à Casa de Ismael. Cirurgião-dentista competente, prestou grandes serviços aos irmãos destituídos de recursos que se socorriam da Assistência aos Necessitados.

            Não lhe mencionamos o nome, agora, somente por haver sido filho de Pedro Richard, mas por um dever de justiça, por isso que, seguindo os exemplos do pai, deu à Casa de Ismael seus melhores esforços, sem outro interesse além daqueles da solidariedade humana e da caridade pura e simples. Aliás, pormenor digno de nota, os descendentes de Pedro Richard ainda hoje lhe honram a tradição moral e procuram viver seus exemplos, como espíritas militantes, no "Lar Pedro Richard ": Pedro Richard Neto e Mário Richard. Há poucos meses desencarnou um outro de seus netos, também dedicado ao labor kardequiano: Jorge Richard, vítima de um atropelamento.



quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Grupos Mediúnicos



Grupos mediúnicos

Guillon Ribeiro (Espírito)
por Júlio Cezar Grandi Ribeiro
Reformador (FEB) Junho 1977

            A mediunidade é comparável a sublime talento que o Senhor concede às criaturas no mundo, responsabilizando-as com o dom de auxiliar e servir, amar e compreender.
           
            Não se trata de privilégios dos espíritas, nem apanágio do Espiritismo, conquanto, na atualidade, somente a Doutrina Espírita se veja melhor capacitada para compreender a mediunidade em suas sublimes destinações de porta-voz dos céus na orientação dos destinos humanos. Por isto mesmo, prescreve lhe todo um roteiro de atividades enobrecedoras pela cristianização do homem e redenção do mundo.

            Obviamente, a organização de grupos mediúnicos é desiderato natural das Instituições Espíritas, voltadas para a ação integral de seus deveres precípuos nas comunidades onde se acham implantadas.

            O intercâmbio salutar com o mundo espiritual representa célula de inestimáveis realizações onde a caridade, pontificando, vivifica o "amai-vos uns aos outros".

            Ampliar os recursos mediúnicos, sob a inspiração de Jesus, congregando cooperadores para o socorro justo aos semelhantes em dificuldades, significa, por certo, dilatar, nos corações, os anseios espontâneos de servir.

            Importa considerar, entretanto, que se o Grupo Mediúnico funciona qual campo de pouso dos Emissários da Luz, não deixa de ser, também, o pronto-socorro para atendimento fraterno a Espíritos aflitos e sofredores requisitando auxílio de urgência. Se estes comparecem às reuniões específicas à feição de indigentes espirituais, inadaptados que se encontram às novas condições de vida, os primeiros nos visitam por amor, inspirados nos mais amplos misteres da caridade.

            São eles os pastores incansáveis do Bem, arrebanhando ovelhas tresmalhadas do divino aprisco e conclamando os encarnados ao zelo e vigilância imprescindíveis aos serviços com o mundo espiritual.

            Certo, os espíritas conscientes não desconhecem que a mediunidade traduz exaustiva oficina de provação e renúncia para os que a recebem em favor de sua redenção. Mas, via de regra, negligenciam, sonegando à tarefa aquela contribuição equilibrada e diligente.

            Aos grupos mediúnicos não bastam horários rígidos, estabelecidos a portas fechadas em nome da disciplina, demarcando início e término dos encontros regulares com o plano espiritual. Também, não são suficientes as regras de conduta, impostas aos seus frequentadores, como garantias de eficiência no relacionamento salutar entre os dois planos da vida.

            Disciplina e estudo, vigilância e equilíbrio, moralidade e devotamento estarão, naturalmente, nas bases de toda realização da mediunidade. Imprescindível, porém, será promover no grupo a verdadeira consciência espiritista, esta que determina sem constranger, alerta sem magoar, convoca sem oprimir, esclarece sem melindrar responsabiliza sem cercear a liberdade que favorece a seleção de nossos caminhos segundo os ditames do livre-arbítrio que direciona destinos.

            Quando o agrupamento mediúnico prossegue às expensas da vigilância de reduzidos companheiros inclinados, por circunstâncias várias, a policiar comportamentos dos demais cooperadores encarnados desprovidos de suficiente maturidade para os encargos do serviço nobre, desgasta-se no tempo, cresta-se entre azedumes, mostra-se incapacitado para as tarefas do auxílio eficaz, minguando as esperanças de devotados Obreiros do Mundo Além que se avizinham dele para a colaboração indispensável do êxito do programa assistencial.

            Rompe-se, então, quase sempre o equilíbrio do conjunto, deturpando-se a fé por incapacidade de raciocinar, enquanto medram enredamentos perniciosos do fanatismo comprometedor.

            Somos carentes do sustento da ordem e da força da oração quando nos entregamos aos serviços mediúnicos. Desta forma, podemos entender que a rotulagem espírita da Instituição não nos preservará do assédio dos "falsos profetas da erraticidade" sempre dispostos a confundir e boicotar os leais servidores da Terceira Revelação.

            O grupo mediúnico, departamento de amor ao próximo, não poderá, como os demais de uma Sociedade Espírita, ser dinamizado sobre improvisações de rotina ou arroubos do entusiasmo exuberante.

            Exigir-se-á, de quantos lhe partilhem a escola do devotamento ao próximo, esforço consciente e espírito de renúncia que a todos gratifiquem com a excelência das boas obras em nome de Jesus.

            Do contrário, com enorme desapontamento e indisfarçável insatisfação, encontraremos os grupos mediúnicos, ao longo do tempo, transformados em destilarias de sombras e subjugações maléficas, agindo quais cupins na seara incauta, forjando o aniquilamento da crença ou a desmoralização dos próprios núcleos espíritas aos quais se veiculam.

            Consideramos, assim, de atual interesse para todo grupo mediúnico afinado com estudo e trabalho, disciplina e prudência, as recomendações de vigilância que o apóstolo João preceitua em sua Primeira Epístola (cap. IV, v. 1):

            - "Meus bem-amados, não creiais em qualquer Espírito; experimentai se os Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se tem levantado no mundo."



quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Evangelho, sempre Evangelho

Evangelho,
sempre Evangelho

Emmanuel
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Maio 1977



            Meus irmãos e meus amigos, que Jesus vos conserve o coração em santa paz. Não desejamos perturbar a tranquilidade sagrada da vossa palestra amiga e fraternal. Se a trocastes por um momento de comunhão com o invisível, deveis considerar que, através de vossos conceitos, fluía o espírito do amor e da cordialidade, no fermento divino do Evangelho.

            Não podemos trazer a vós outros uma emoção nova, nesse sentido, e, em nosso coração, ressoa esse eco de amizade doce, que faz da vida terrena uma travessia menos fadigosa. Simples irmão mais velho, não me atrevo a pintar panoramas novos para a vossa mentalidade esclarecida à luz das lições imortais de Jesus Cristo.

            De bom grado, associamo-nos ao vosso ágape espiritual, endossando as opiniões expendidas e corroborando o vosso critério evangélico, no mecanismo das atividades doutrinárias.

            Nenhuma mensagem do plano espiritual pode apresentar características mais empolgantes que o divino roteiro, estabelecido pelo Divino Mestre, há dois mil anos, com vistas ao progresso infinito das almas. Debalde, os emissários das ideias novas falarão ao mundo, recorrendo a todos os processos da retórica e da dialética humanas. Em vão, as ideologias políticas desfraldarão bandeirolas ao vento, ao rufo melancólico de tambores, e é inútil que a ciência e a religião, em seus polos  dogmáticos, prossigam na luta dos seus antagonismos irreconciliáveis. A revelação divina, no coração das criaturas, a sagrada compreensão do Cristianismo redivivo são as únicas lâmpadas de claridade imortal, esclarecendo o verdadeiro caminho das civilizações. Ante a sua grandeza, todas as ilusões do mundo são como a onda leve, ou como a neblina evanescente.

            Os homens marcharão ainda uns contra os outros, tripudiando sobre as mais formosas e imperecíveis leis de fraternidade universal, separados pelo simbolismo das bandeiras, obedecendo, muitas vezes, a poderosos imperativos de sua natureza quase semibárbara, embora as expressões de refinamento da civilização ocidental. Todavia, é preciso considerar que sobre a maioridade terrestre flutua o período de tempo equivalente a vinte séculos consecutivos. Por todo esse patrimônio inestimável de tempo, o Mestre tem aguardado a compreensão do seu rebanho, dentro das cariciosas expressões de seu amor divino.

            É por esse motivo que, junto dos horizontes sombrios do plano internacional, legiões de trabalhadores dos planos invisíveis são convocados para a aferição dos valores humanos, na época que passa. Numerosas transições assinalam as vossas atividades consuetudinárias e a indecisão paira sobre a fronte dos povos, atormentados pelos fantasmas da ambição e do extermínio. Lá fora, nas agitações imensas do mundo, esse é o painel dos acontecimentos. Entre as coroas que se estraçalham, entre os poderes políticos que se chocam, fragorosamente, vacilam as cátedras e desmoronam as sacristias. 0s religiosos do “sepulcro caiado” recordam somente hoje que o esforço e as lágrimas dos mártires terminaram nas pedras frias das catedrais sem alma, embora as suas características de munificência.

            Imensa é a luta. Os novos trabalhos, as perspectivas penosas da tarefa educativa assombram os mais tímidos; mas, no meio da tempestade, há corações de inspirados que trabalham e esperam.

            Para esses, a fé está sempre tocada de um cântico de hosanas. Sabem entender o jugo suave do Mestre e embalde os convoca o mundo para a sua destruição e para os seus dolorosos atritos.

            É por essa razão, amigos, que comungamos convosco, esta noite, prendendo aos vossos os nossos corações, cheios de boa-vontade.

            Orai e vigiai. Continuai agindo assim e que os vossos lares, precedendo as realizações do porvir, sejam os templos da paz e da fé, onde a sublime confiança em Jesus pontifique todos os dias, no altar íntimo do coração.

            Que Deus vos abençoe e vos conceda muita paz.

            Que Jesus vos guarde em seu amor, derramando sobre os vossos espíritos a sua divina bênção, é a rogativa do vosso irmão e servo.


Péssimos Sermões



Será que a carapuça se encaixa em alguns de nossos palestrantes?


Péssimos sermões
Direção
Reformador (FEB) Junho 1961

            O que se vai ler não é nosso. É uma grande parte do artigo publicado, no "Jornal do Comércio" de Recife, edição de 20-3-61, pelo Prof. Dr. Olívio Montenegro, católico praticante de grande projeção em todo aquele Estado.

            Porque as suas observações - com tristeza o dizemos - se ajustam a muitos oradores espíritas, é que nos dispomos a transcreve-las nestas colunas.

            "Deus me perdoe se digo uma heresia; mas hoje para se entrar indiferentemente numa igreja e cumprir aos domingos e dias santos o mandamento da santa missa, é preciso uma alma perfeita, experimentada já em longos e penosos exercícios de penitência.

            Digo assim por causa do sermão que o bom e desprevenido filho de Deus se arrisca a ouvir de padres de muitas dessas igrejas. Padres excelentes, de um fundo cristão admirável, sempre em dia com os seus deveres religiosos, mas que uma vez no púlpito se transfiguram; o demônio da vaidade toma conta deles e ficam então só no verbo, um verbo difuso, confuso, exclamatório, que ora parece feito todo de vento, ora todo de fumaça, e dando não raro a impressão assustadora, terrível, de que não vão acabar mais, como se o orador se tivesse emaranhado e perdido nas suas palavras, sem poder sair delas.

            O primeiro impulso é acudir, socorrer o padre, tirá-lo do púlpito como se tira do mar um náufrago.

            Não compreendo bem porque, sob o pretexto de explicar os santos e simples Evangelhos, padres a quem falta todo o dom da palavra se alastram em sermões enormes e de que tão pouco ou absolutamente nada vai ficar no espírito dos seus ouvintes que lembre a sabedoria do Divino Mestre.

            E o mais grave é que eles não se contentam com a palavra somente, a palavra e mais nada, a palavra nua e crua caindo como solitários pingos de sebo sobre a muda paciência dos seus ouvintes. O sermão, assim descarnado e seco, seria uma modéstia, mas a vaidade não pode ser modesta. Dai esses sermões se acompanharem de mil gestos e trejeitos, e outras vezes são os olhos do pregador que só faltam pular das órbitas de dramaticamente abertos como um apelo de possesso ao aplauso e à admiração dos piedosos e calados fiéis.

            É toda uma mímica de teatro que se surpreende em certos desses sermonistas, como se dentro deles estivesse não o anjo de que fala S. Bernardo, mas o próprio demo; o espírito do Maligno, não o Espírito divino. Porque, falando a verdade, esses oradores sacros chegam a ser enfáticos, não apenas com a voz, mas com todo o corpo, e se deixam por vezes ficar na ponta dos pés, como se somente eles devessem aparecer, e quisessem encobrir Deus.

            Outros há que não apenas arregalam os olhos mas piscam mesmo os olhos para os fiéis, quando intercalam uma graça no seu discurso, quando se dão ao humorismo ou ao sarcasmo. E ainda os há que abrem desmesuradamente os braços como se fossem voar, provocando assim uma esperança feliz nos assistentes. Mas nunca voam.

            Isto sem falar nos frades barbilongos, de uma aparência venerável, cuja presença no púlpito parece uma cópia dos antigos profetas, mas, logo que começam a falar, sente-se que o profeta foge dele e fica só o frade sonoro.

            Assisti um dia destes à falação de um desses frades cheios de longa barba e de longos sermões. Começou manso, num tom morno, quase de surdina, quando, de repente, se desgarra a sua voz em exclamações de um patético de teatro. Exclamações do tamanho de um grito. A própria face do bom frade pareceu transfigurar-se; a sua longa barba eriçou-se toda como um feixe de espinhos, espinhos talvez para uma nova coroa de martírio de Nosso Senhor Jesus Cristo.

            Vêm de longe, é preciso que se diga, esses espetáculos de vaidade. Desde a Idade Média. No seu famoso livro "De Humilitate", já S. Bernardo, que é uma autoridade insuspeita, a mais insuspeita de todas, alude a esses monges que "têm fome e sede de um auditório diante do qual possam exibir todos os tesouros da sua vaidade e fazer bem apreciar o seu valor, mostrar o que são". Em seguida a outras considerações do mesmo teor, ainda diz S. Bernardo: "ouvindo-se a esses monges, dir-se-ia que a sua boca é um rio de vaidade".

            O padre Antônio Vieira é um pouco mais rude.

            Ele diz no seu sermão da Sexagésima: "Uma das felicidades que se contava, entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram; mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito." E mais adiante: "Muitos sermões há que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador, dos que professam ser mortos para o mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são penitência; e todos, desde o dia que professamos, mortalhas), a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e, quando este se rompeu, que é que se ouve?" Comédia e farsa, responde o mesmo Padre Vieira.

            Consola-nos que nem todos fazem comédia e farsa. Há os padres simples e de uma inteligência que vai direto ao que mais importa saber dos fatos do Cristianismo, que não especulam enfaticamente com o antigo e o novo Testamento. Aqui mesmo, numa ou noutra paróquia, assim os vemos."