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segunda-feira, 9 de março de 2020

Kisa Gotâmi



Kisa Gotâmi
Chiang Sing  
Reformador (FEB) Janeiro 1956

            Durante muitos séculos as lendas, as parábolas e os apólogos de Gautama Buda foram transmitidos oralmente pelos contistas da velha Índia, espalhando-se por todo o Oriente. Ainda hoje, o povo oriental escuta atentamente estes contadores de histórias. Ao encontrá-los, indagam logo:

            - Conheces algum exemplo da nossa antiga tradição? Se conheces, conta.

            E o contista responde:

            - Então... escuta...

            E mansamente vai narrando histórias de tempos remotos, perdidos na amplidão sem fim. E eis aqui, numa tentativa de tradução, uma destas histórias que certa vez narrei através do rádio e que um leitor desta humilde pessoa solicita por carta.

            Entre as cinco colinas que rodeiam o Himalaia erguia-se outrora uma cidade governada pelo rei Bimbisara. Havia uma estrada que seguia entre mangueiras e rosas silvestres. Era ali, que, numa gruta, o príncipe Gautama, destinado a tornar-se um Buda (Iluminado), meditava na salvação da Humanidade. Dormia obre um monte de palha e alimentava-se de frutos e raízes. Ficava tanto tempo imóvel que os esquilos e as pombas vinham comer os grãos de arroz deixados na cabaça em que Gautama os mendigava.

            Aconteceu que uma vez, voltando para a sua gruta, Gautama ouviu o ruído de um rebanho que descia a colina. Havia entre elas uma ovelhinha que, sangrando, caminhava com dificuldade. Vendo isto, o coração do mestre enterneceu-se e, tomando nos braços o animalzinho machucado, acariciou-o suavemente. Perguntou ao pastor para onde conduzia a carneirada e ele respondeu: - Hoje à noite, por ordem do rei, cinquenta ovelhas serão sacrificadas às potências Invisíveis!

            Ouvindo estas palavras, o mestre resolveu acompanhar o rebanho. E andou junto dos caminhos em que as moitas de verduras floresciam, sentindo o odor dos figos e ouvindo os pássaros cantar pelos arbustos. Nisto, uma jovem mulher do povo exclamou, chorosa:

            - Senhor, ontem vos pedi um remédio para curar o meu filho que foi mordido por uma serpente. Todos que o viram desmaiado, no meu colo, disseram que ele estava morto; vós, porém, que sabeis tanto, me afirmastes logo que o meu filhinho estava adormecido. Dissestes que havia um remédio capaz de o curar em pouco tempo.

            - E qual era ele, irmã?

            - Sementes negras de mostardeira cujos grãos só pudessem ser colhidos pelas mãos de quem tivesse vivos todos os parentes e todos os amigos caros...

            - E encontrastes estas sementes, irmã Kisa Gotâmi?

            - Senhor, em toda a parte encontrei grãos de mostardeira.. Mas não pude encontrar uma pessoa cujos parentes fossem todos vivos e cujos amigos também.

            - Que diziam eles?

            - Diziam... leva o teu remédio, mas sabe que minha mãe morreu há pouco. Outro me contava que perdera o avô, outro um irmão, outro amigos caros e outros ainda choravam lágrimas sentidas por um luto recente...

            - E que queres que eu faça?

            - O remédio, senhor, o remédio para curar o meu filho!

            - Irmã, foi procurando aquilo que ninguém jamais encontra que encontraste um bálsamo para o teu coração de mãe aflita. A dor que atinge a muitos corações é um lenitivo para a nossa dor. Podes agora sepultar o teu filho...

            Então, Kisa Gotâmi compreendeu o seu erro e refugiou-se na religião de Bnda.

*

            Ainda sobre Gautama, existe uma multidão do lendas interessantes. Entre elas, destaca-se o seu romance com uma de suas esposas chamada Yasodhara. Gautama teve três esposas, porém foi Yasodhara a que ele mais amou e considerou como sua alma gêmea. Narra a lenda que, quando Buda completou dezoito anos, seu pai quis casá-lo. Organizou então um torneio de beleza entre as jovens da Índia. Formosas donzelas de alta estirpe, numa tarde fresca e embalsamada, desfilaram através da cidade e passavam diante do palanque real. Uma a uma foram recebendo prêmios raros, até que a última - uma linda morena de cintura de salgueiro - ficou sem receber nada.

            Erguendo-se galantemente, o príncipe falou: - Os prêmios já se acabaram, mas para vós, que sois tão formosa, ainda resta este...

            E tirando do próprio pescoço um colar cintilante de esmeraldas e brilhantes, o prendeu na delicada e morena cintura de Yasodhara. Seus olhos se encontraram e surgiu o amor...

            Tempos mais tarde, quando a luz da verdade penetrou no Espírito de Buda, o mestre explicou aos discípulos a razão do súbito amor que Ihe invadira o peito:

            - Nós não éramos desconhecidos, tal como parecia e tal como nós acreditamos sempre. Em remotas idades, quando eu era pedra. porque eu também já fui pedra no ciclo da evolução, ao meu lado havia outra pedra, e era Yasodhara.

            Quando eu era planta, porque eu também já fui planta na ronda da evolução, ao meu lado havia outra planta, e era Yasodhara. Quando eu era animal, porque também eu já fui animal na ronda da evolução, tinha uma fêmea que era Yasodhara. Lá, na selva de Nandadevi, outrora, vivemos juntos anos de ventura. E assim como após anos as sementes germinam, ressurgem também os sofrimentos, os ódios, o bem, o mal, as alegrias e o amor. Eu fui o ser que desde o princípio dos tempos esperou por Yasodbara. Em volta de nós tudo mudou, mas aquilo que foi, tornou a ser...  

            Como vemos, as doutrinas do carma. e da reencarnação faziam parte de um ensinamento búdico esotérico que se transmitiu até os nossos dias. Nós somos normais ou aleijados, pobres ou ricos, felizes ou infelizes, de acordo com a vida que tivemos anteriormente, é o que afirmam os budistas.

            Nós somos um elo na cadeia da vida. Em nós flutuam ecos e resíduos de nossas passadas em mais baixas vidas anteriores, uma vida é apenas parte da carreira de uma alma, não a totalidade dessa alma; cada forma é transitória até que se une com o Cosmos universal e torna-se parte integrante do todo. As muitas reencarnações de uma alma são como anos e dias de uma vida individual, Porque então não temos memória de nossas vidas passadas? - Porque elas foram a infância de nossa alma, e como para nós a infância explica a nossa maturidade, assim também estas vidas passadas explicam o lugar do homem na vida atual.

            Há muita verdade na doutrina do carma, se a consideramos sob o ponto de vista biológico. Somos todos reencarnações de nossos antepassados, e seremos reencarnados em nossos descendentes.  Filosoficamente a lei do carma explica as desigualdades entre os homens, que são o resultado de passadas vidas. Nada mais do que a ação inevitável de uma lei injusta no momento atual, mas que será perfeitamente justa se for analisada segundo a doutrina budista. É por isso que no Mahabharata - o grande livro histórico da Índia - o guerreiro Yudushtira pergunta a Yama - o deus da morte:

            - Qual é a coisa mais admirável do mundo?

            E o deus responde:

            - O homem, depois que ele morre. Apesar disso, os homens continuam a agir como se fossem imortais.
                                                           (Ext. do "Diário de Notícias" de 6-8-55.)

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