O presente de Rosinha (Conto de Natal)
 
José Brígido 
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1952 
            Aquele
asilo, de caridade só tinha o nome. Mas quem visse como as criancinhas órfãs
eram ali recebidas, saia contente e confortado, abençoando aquela casa de
infelizes. Mas, dona Tereza, certa vez, chegando ali de sopetão, não pode
deixar de exclamar, ao ver uma menina, nos seus cinco anos incompletos,
limpando o chão imundo com um pano ainda mais sujo e tão pesado que quase ela não
o sustinha nas mãos: 
            -
Tão pequenina e já nesse rode serviço! 
            Um
sorriso inocente e triste aflorou aos lábios de Rosinha. Ela perdera os pais
muito cedo e ficara ao desamparo, numa velha casa de
cômodos de Botafogo. Andava suja e rasgada, sem os cuidados que teria, se a sua
mamãezinha fosse viva. Condoída da sua sorte, uma mulher do cortiço tomara conta dela. No começo,
tudo ia bem, mas, sofrendo também os acicates da miséria e não dispondo de uma
preparação moral adequada, acabou por se desinteressar de Rosinha. Pouco se
incomodava que ela estivesse bem ou mal. Olhava-a como um entre outros trastes
que lhe enchiam a alcova sórdida: indiferentemente. A menina quase não se
alimentava e os tenros ossinhos pareciam prestes a furar-lhe a pele emurchecida.
Um dia, com a melhor das intenções, o carteiro Aniceto, que lhe conhecia o
drama, propôs à mulher:
            -
Dona Sebastiana, ó dona Sebastiana! 
            -
Que é, seu Aniceto! Que que há! 
            -
A Rosinha está doente? 
            -
Doente o que, seu Aniceto! Isso é uma
pestinha ruim como que!      . 
            -
Está tão magrinha... Ela não come? 
            -
Se não come é porque não quer! Comida é pouca mas não falta. Dá prá gente
enganar o estômago. Ela é luxenta, seu
Aniceto... Pobre com luxo é desaforo. Dar na boca, não dou, não...
            -
Mas ela ainda é muito pequena, dona Sebastiana... 
            É
sim, mas já tem idade prá saber o que faz. 
            
            -
Se eu fosse a senhora punha ela num asilo de órfãos. Se ela lhe dá tanto
trabalho... 
            -
Se dá! E não me ajuda nada, seu Aniceto!
Eu já quis fazer isso, mas é tanta exigência, tantos papéis, que desisti. E
fica essa pamonha a me amolar o dia todo, como se meus filhos não chegassem! 
            -
Seus filhos são mais crescidos e mais fortes, dona Sebastiana ... 
            Rosinha
estava perto, porém, na sua candidez, não percebeu que falavam a seu respeito. Distraia-se
com uma caixa de fósforos vazia, contente como se fosse belo brinquedo. O carteiro,
comovido, abaixou-se, fez-lhe um agrado, interrompido logo pela Sebastiana: 
            -
Não faça isso, não, seu. Aniceto! O senhor está dando asa a essa menina e eu
depois é que vou aguentar... 
            Aniceto
não protestou. Apenas fez esta pergunta:  
            -
Estou vendo que a senhora anda muito cansada. Quer que eu a leve para um asilo?
            -
Se quiser, até agora mesmo. 
            -
Já, não. Depois voltarei para lhe dizer qualquer coisa. Até outro dia, dona Sebastiana.
Adeus, Rosinha, adeus!.. 
            E
ausentou-se, pensativo.
*
            Rostinho
magro, olhos fundos, cabelos ralos e empastados pela falta de trato, a menina estava
chupando os dedinhos sujos quando o Aniceto a veio buscar. Sofria muito, sem dúvida.
Como não conhecesse coisa melhor, chorou ao ser levada dali. Era multo cedo
para distinguir o ruim do pior. Não queria sair e chamou, com a vozinha débil: 
            -
Tiana! Tiana! Tiana! ... 
            E
lá se foi, por entre lágrimas, para a casa de caridade que, na boa fé do seu
coração sensível, lhe havia arranjado Aniceto. 
            Uma
vez fechada a porta, Rosinha sentiu e estranhou o ambiente. Fria, a preceptora
chamou-a e ela, distraída, não atendeu. Foi o bastante: 
            -
Estou vendo que você tem sido tratada com muito mimo. Venha cá! – berrou,
irritada. 
            Assustando-se,
Rosinha chorou. 
            -
Ainda chora, não é? Não quero criança manhosa aqui! Só mandam prá cá estes “molambos”!
Está tão suja que até dá nojo! 
            E
fez um gesto de repugnância. 
            Mandou
que a lavassem e lhe dessem uma roupinha limpa. Fê-la sentar-se à mesa com as outras
crianças, todas de semblante melancólico. Desabituada e saudosa do ambiente em
que sempre vivera nos dois anos que mediavam entre o seu nascimento e a
acolhida da Sebastiana, Rosinha desandou a chorar convulsivamente. 
            Sem
procurar compreender o estado psicológico da menina, a preceptora agarrou-a brutalmente
pelo braço, sacudiu-a e gritou para que todos ouvissem: 
            -
Cale a boca! Não quero gritos, não quero choros aqui! 
            Enfraquecida
e nervosa, Rosinha chorou ainda mais. Foi, então, arrastada para o “quarto escuro”,
como exemplo às demais crianças. 
            -
Fique aí, sua malcriada! Você hoje não janta, para aprender a ser obediente! 
            Ao
regressar ao refeitório, bradou, colérica: 
            -
Eu já estou "cheia”, ouviram?! A primeira que quebrar a disciplina irá
para o “quarto escuro” sem comer! 
            As
meninas, aterrorizadas, baixaram humildemente a cabeça, pois já conheciam a “energia”
da preceptora.
            Quase
três anos passou ali. Já estava mais crescidinha, pois ia fazer cinco anos.
Achava-se limpando o chão quando dona Teresa a viu. Penalizada, não se conteve
e se dirigiu à preceptora: 
            -
O que a senhora está fazendo não é direito. Como é que põe uma menina dessa
idade e tão fraquinha em serviços pesados? 
            -
A senhora compreende, dona Teresa, o asilo é pobre, não pode pagar a empregados.
É preciso que todos os asilados ajudem um pouco... 
            -
Não, não está direito! Sei que algumas pessoas dão o suficiente para que o
asilo tenha, pelo menos, dois empregados. No entanto, não é isto, o que estou vendo.
Nunca supus que esta fosse a caridade que a senhora pratica aqui dentro! 
            Antes
dona Teresa não tivesse dito nada. Mal ela saiu, a preceptora foi buscar Rosinha,
furiosa. Bateu-lhe com violência e mandou-a para o famoso “quarto escuro”.
Cansada, faminta e pesarosa, cheia de medo e sem saber porque fora castigada,
Rosinha chorou até adormecer. E só despertou quando ouviu que a chamavam
docemente: 
            -
Rosinha! Rosinha! 
            Ela
abriu os olhinhos claros no quarto escuro. Teve a impressão de que estava todo iluminado.
Fez carinha de choro e pôs um dedinho na boca... Receava que a preceptora ... 
            -
Não tenha medo, Rosinha... Venha cá, comigo, venha... 
            -
Quem é você, heim? 
            -
Sou o irmão de todas as criancinhas... Sou Jesus... 
            -
Mas quem é Zisus? 
            -
Jesus, Rosinha, é, como você, filho de Papai do Céu... 
            -
Você vem mi batê, vem? Eu num choro mais, não... Sim?.. 
            A
sua vozinha cortava o coração. Ela tremia que fazia dó. Jesus, cuja irradiação
luminosa espancara as trevas do improvisado ergástulo, não pode impedir que
duas pérolas rolassem de seus olhos infinitamente meigos.
            Abraçou
e beijou enternecidamente a pequenina, confortando-a: 
            -
Bater em você, porque, Rosinha? 
            -
A moça dexô você intrá aqui, dexô? 
            Depois,
receosa, fez nova pergunta: 
            -
Zizus, você também chorô i vai ficá preso vai? 
            -
Não, Rosinha.. Hoje é Dia de Natal e eu vim buscar você para uma grande festa...
            Batendo
as mãozinhas, a menina sorriu como nunca havia sorrido.  
            Então,
Jesus alegrou-a ainda mais: 
            -
Vou levar você comigo para um lugar muito bonito, onde há uma porção de meninas
bonitas como você, cantando e brincando... 
            Graciosamente,
Rosinha beijou a face de Jesus e, nesse instante, sua cabecinha loura ficou
mais dourada e em volta dela se formou uma auréola de luz. Pousou a cabecinha
no ombro do Divino Mestre e, adormeceu. 
*
            Quando
despertou, fraquinha, por não se ter alimentado, achava-se estranhamente
satisfeita e alegre. A preceptora dela se aproximou, sempre mal-humorada: 
            -
Como é, manhosa, ainda está muito birrenta? 
            Rosinha
sorriu, fez uma carinha brejeira e sacudiu a cabeça, negativamente: 
            -
Ande, venha cá! Vá comer o seu mingau que está esfriando. Como hoje é Dia de 
Natal, você tem de limpar a mesa, as cadeiras e
o chão, bem limpos, ouviu? 
            Rosinha
acenou a cabeça, denotando haver compreendido. E foi comer o mingau. 
            De
repente, viu Jesus. Sentindo grande fraqueza, ela deixou a cabecinha pousar na
mesa, enquanto a colher lhe rolava da mão entreaberta para o chão. A preceptora,
atenta e ríspida, ao vê-la assim, gritou, estentoricamente: 
            -
ROSINHA! Comporte-se! Vamos, coma depressa! 
            Ela
porém, não deu ouvidos à preceptora. Forças estranhas a invadiram e ela foi ao
encontro do Mestre, que a esperava de braços abertos. 
            -
Venha, anjinho, venha cá! 
            Rosinha
parecia feliz, na companhia de Jesus...
*
            Cá
embaixo, neste Umbral de lutas e incompreensões terríveis, que o egoísmo mais
torpe acoroçoa, um médico acabava de assinar um papel em que se lia, apenas: “Colapso
cardíaco”. 
            Era
o atestado liberatório que Rosinha obtivera como presente de Natal!..