Pesquisar este blog

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O homem que aprendeu a lição.



O homem que aprendeu a lição
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Novembro 1952

            Azanir Bamuride olhava para o mundo, sem amargor. Lutava muito para viver, mas sempre encontrava em que demorar sua atenção com simpatia e boa vontade. Se chovia, abençoava a chuva; se não chovia, encontrava meio de justificar seu diário agradecimento à misericórdia de Alá. Olhava os animais com os olhos da fraternidade. Enfim, sabia sempre descobrir beleza nas manifestações da Natureza.

*

            Passava Azanir por uma das ruas de Constantinopla quando teve a atenção despertada para um homem que, armado de pau, perseguia um pobre cão esquelético. Azanir correu também e protegeu o animal, que, humilde, mostrou seu reconhecimento pelo abanar da cauda. O perseguidor, ao mesmo tempo que ameaçava Azanir, perguntou: - Então, és tu o dono desse cão vadio? Pagas por ele!

            E desferiu duas pauladas. Azanir saltou para o lado e deteve o braço do agressor dominando-o. Vendo o pau cair-lhe da mão, disse-lhe:

            - É errado o que estás fazendo. Que fez este pobre cão para justificar a tua cólera?

            - Roubou-me a carne que guardei para almoçar. E devia matá-lo - esbravejou, furibundo.

            Azanir ponderou:

            - Não creio que isso te restituiria. O que perdeste. Por certo, não pretenderias comer carne de cachorro. Cometerias uma ação má, continuarias sem a carne e acabarias lamentando o momento de desespero que te induzira ao ato violento. Vou largar-te, mas nada farás a este cão, cuja miséria física sugere piedade. Em vez de pretenderes matá-lo, deverias ajudá-lo a viver... Conquistarias um amigo fidelíssimo, acredita.

            Vendo-se livre, o desconhecido permaneceu quieto, mas olhava rancorosamente para o animal, com ímpetos de surrá-lo. Foi quando Azanir voltou a falar:

            - Já experimentaste a tortura da fome? Certamente, não. Assim, ignoras o sofrimento que forçou este cão a roubar o pedaço de carne que tinhas para o almoço. Não penses assim, meu amigo. Os animais não se orientam pelos nossos códigos de moral e sabes que o Alcorão desaconselha violências contra eles. Guiam-se pelo instinto. Quando têm fome ou sede, procuram o que comer ou beber. Não devem ser castigados por isso. Quando sentes fome, que fazes? Pensa um pouco. Se nunca sentiste fome ou sede, ainda não conheceste completamente a vida. Podemos prescindir de tudo, menos do alimento sólido e liquido. que nos permite sustentar as energias do corpo. Se não adubares a terra e não a regares periodicamente, as plantações morrerão fatalmente. Batendo neste cão, porque ele, cedendo a injunções da natureza, comeu a carne que pretendias comer, ofendes a misericórdia de Alá, porque te insurges contra um dos mais simples princípios da vida.

            O desconhecido ouvia sem nada dizer. Não mantinha mais a fisionomia fechada. Estava sério mas parecia medir bem cada palavra de Azanir Bamuride, que continuou a falar:

            - Não me pareces um homem mau, porém pouco esclarecido. Olha o cão que se acolhe temeroso, como que pedindo que eu lhe dê proteção. Vê. Em vez de magoá-lo, chama-o, acarinha-o, ensina-o a fazer o que desejas e a não fazer o que não queres. Tem paciência com ele e verás como sua inteligência te surpreenderá. Se ele soubesse falar, não roubaria a carne: iria pedi-la humildemente. Como não sabe, sente e age consoante as solicitações do instinto. Todavia, se o fizeres teu amigo, será capaz de lutar contra o próprio instinto para não te desagradar.

            Em seguida, Azanir lhe entregou o pau, convidando-o a mudar de atitude.

            - Eu devia abrir-te a cabeça pelo que me fizeste... - resmungou o homem,

            - Pelo senhor da Kaaba ~ - exclamou Azanir. Nada fiz, senão impedir que consumasses o castigo a um ser faminto. Quero que compreendas minha atitude: não te quis fazer mal mas evitar que desagradasses o Todo-Poderoso. “Alá abrirá o coração daquele que quiser" - está no Alcorão. E este fato. meu amigo, pode servir para aclarar o teu entendimento. Peço-te que me perdoes a intromissão. Somos criaturas dotadas da palavra, possuímos maior inteligência que os outros animais. Graças ao recurso divino do raciocínio, podemos distinguir o bem do mal. Achamo-nos, a esse respeito, num plano evolutivo mais elevado. Todavia, se recorremos à violência, baixamos de nível, porque nada eleva mais o homem do que a bondade e a resignação, a complacência e a tolerância. Gostarias que dissessem na cidade que vales menos que um cão magro e faminto? Claramente, não, porque só agiste assim por falta de adequada orientação. Desde, porém, que te resolvas a adotar outro rumo, a falta estará reparada. Acredito mesmo que procederás de outra maneira, se um fato igual ao de hoje se repetir em tua vida. Vamos, amigo, estende-me teus braços. Toma--me como teu irmão, pois que o sou perante Alá. Ajuda-me a fazer com que este pobre cão se torne, não só um fiel companheiro, mas outro irmão nosso em face da Natureza, irmão humilde e fraco, que necessita de amparo e de carinho.

*

            O homem ficara pensativo. Mas abraçou Azanir, mal este se calou. Procurou desajeitadamente aproximar-se do animal, que, desconfiado, encolheu-se e rosnou. Azanir sorriu e afagou o cão. E quando viu que este abanava a cauda, disse ao desconhecido que lhe fizesse festas. Humilde e medroso, o animal as aceitou, rabo entre pernas, encostando o focinho no chão.

            - Vês como é bom o coração deste pobre animal? Já esqueceu o que fizeste e te prova sua humildade, lambendo-te os sapatos.

            - Tems razão. Como te chamas?

            - Azanir Bamuride...

            - Porque és bom?

            - Se há bondade em mim, ela provém de Alá, através da minha consciente submissão à Sua vontade, amigo. Desde que sigas a rota do Alcorão, ficarás em salvamento, porque nada é melhor para o homem do que a palavra do Senhor. Ela é luz que não se extingue. É luz que aquece a alma e a aproxima da Verdade.

            Os dois se abraçaram de novo. O homem disse a Azanir com simplicidade:

            - Eu me chamo Elimar Baruti. Quero levar o cão comigo. Posso?

            - Como queiras. Ele não me pertence.

            Então. Elimar estalou os dedos, chamando o animal:  

            “Amigo”! Vem, “Amigo”! ...

            E se retirou, satisfeito, com o inesperado amigo que ganhara...

            Azanir Bamuride ergueu os braços para o alto e exclamou, mais feliz do que nunca:

            - Alá kibir! Alá kibir!...

            Nessa noite, parecia que as estrelas estavam mais bonitas em seus albornozes (roupões) de luz...

Nenhum comentário:

Postar um comentário