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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Os que ignoram que estão mortos



Os que ignoram que estão mortos
por Amado Nervo  (tradução)
Reformador (FEB) Dezembro 1919

            “Os mortos”, havia-me dito várias vezes o meu amigo, um velhinho espirita, vindo de encontro ao que, de minha parte, já havia encontrado várias vezes em minhas leituras – “os mortos, senhor meu, ignoram que tenham morrido. Ignoram-no até certo tempo, até quando um espírito caritativo os desperta, para se desvencilharem definitivamente das misérias deste mundo."

            Geralmente se creem afetados ainda da enfermidade que lhes motivou a morte; lamentam-se, pedem remédio, permanecem numa espécie de adormecimento geral, de bruma, do qual se vai desprendendo pouco a pouco a divina crisálida da alma. 

            Os menos puros, os que morrem mais apegados a terra, vagam em derredor de nós, presos de um desconcerto e de uma desorientação supremamente angustiosa.

            Sentem dores, fome, sede, exatamente como si vivessem, pois que o amputado sente possuir e ainda lhe doer o membro segregado.

            Não falam, interpõem-se em nosso caminho e desesperam ao presumirem que os vemos e e não lhes fazemos caso. Creem-se então vítimas de um pesadelo e desejam despertar.

            Porém, a impressão mais poderosa - como também a mais próxima - é a de que eles acompanham, doentes, aquele que os matou.

            E, com efeito, uma tarde em que, por curiosidade, assisti certa sessão espirita, pude comprová-lo.

            O médium era falante (sabe você que há médiuns auditivos, videntes, materializadores, etc.). As almas dos mortos se servem da boca do médium para conversar com os presentes, ou, por outra, falam por “boca de ganso” (dizer o que outros sugerem).

            Deram início à sessão sem apagarem as luzes e a médium caiu em transe.

            Momentos depois exclamava:

            - Estou ferido; socorram-me! - e apertava com ambas as mãos o flanco direito.

            - Quem é você? Interrogou o que presidia a sessão.        

            “Sou Valente Martinez, e me feriram aqui na Praça de Carmen; feriram-me a traição. Estou tombado; venham levantar-me”!

            E o semblante da médium demonstram sinais de dor e de agonia.

            Eu e muitos dos ali presentes experimentávamos grande surpresa porque os periódicos da última semana haviam noticiado e comentado o assassinato de Valente Martinez, cometido traiçoeiramente por um celoso (invejoso). Assim, pois, a sessão se tornava interessante.

            -Você está equivocado - insinuou então o presidente da sessão - e presume estar ferido e abandonado na rua; porém, na realidade, você está morto!

            - Morto, eu? Exclamou surpreendida a médium, digo-lhe que estou apenas ferido!        
            E continuava apertando o flanco direito.

            -Está você morto e bem morto. Morreu em consequência de uma punhalada, na sexta-feira última, no hospital de São Lucas...

            A médium se impacientava: - É uma falta absoluta de caridade deixar-me atirado à rua como um cão! Como um cão sim, abandonado em meio da rua!  

            E retorcia-se em seu assento.

            -De sorte que, continuou o presidente - você insiste em que está vivo?

            -Sim, e ferido! Ajudem-me, quero levantar-me. Não sejam maus!

            - Pois vou provar-lhe que está morto.

            Qual o seu sexo?' Homem ou mulher?

            -Eis uma pergunta tola... Sou homem!

            -Você está seguro?

            A médium fez um movimento de contrariedade.

            - Que? Se estou seguro? Que pergunta!

            -Bem, pois toque no seu peito e no rosto.

            A médium levou a mão direita ao queixo e uma expressão indecisa de pasmo anuviou lhe o rosto. Valente Martinez (que, segundo os retratos estampados nos periódicos, era barbado) encontrava-se agora imberbe...

            A sua mão, trêmula, pousou em seguida no lábio superior à procura do farto bigode, mas passou pela decepção de não encontra-lo. Depois, mais trêmula ainda, desceu ao peito e, no sentir a carne turgida dos seios, a médium deixou escapar um grito agudo, horrível, enquanto frios suores lhe molhavam a fronte, lívida de tortura, em que se lia o supremo espanto da convicção!  

            Seguia-se então largo e imperturbável silêncio, durante o qual a médium, imóvel,  murmurava não sei o quê, com os lábios convulsos.

            Por fim, o presidente lhe disse:

            - Veja bem como está bem morto!

            Tirei-o da ilusão, para que não penses mais em coisas da terra e procure, doravante, elevar seu espírito a Deus.

            -Tem razão, murmurou penosamente a médium.

            Depois, após pequena pausa, suspirou:

            Graças!

            E não proferiu mais palavra até sair do transe.      


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