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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

'O Espiritismo como Religião'


O Espiritismo como Religião
por Delfino Ferreira
in Reformador (FEB) Julho 1978

            Clássica, sem nenhuma contestação, é a forma tríplice de apresentação do Espiritismo: Ciência, Filosofia e Religião.

            Inapreciável a dúvida sobre o caráter dos dois primeiros aspectos. Entretanto, quanto ao terceiro. Incoerente, e, por vezes, desconcertantemente, ultrapassa-se da dúvida à negação pura e simples. E, o que seria de estarrecer, não fora a consciência da versatilidade humana, partida de espiritistas confessos e afirmadores daquele tríplice aspecto. De espiritistas constantes citadores de Kardec, em cuja obra e autoridade se esteiam fortalecendo suas afirmativas.

            No entanto, Kardec positivou suficientemente o campo doutrinário e de ação do Espiritismo com o explicar a criação e o significado desse termo para designação do corpo de doutrina a que ele corresponde. Destarte, a rigor, tudo quanto se afaste dos limites da doutrina codificada deixa, naturalmente, de ser Espiritismo.

            Ora, sendo verdade que o Codificador, por vezes não poucas, afirmou ser o Espiritismo uma ciência, como também outras, filosofia, menor verdade não é que não referiu igualmente como religião, cumprindo ao estudioso verificar a situação, o momento em que se refere a qualquer desses aspectos, sendo de convir que a exclusão de qualquer quer deles, em ocasião em que não se faz preponderante ou necessário, não importa em negá-lo.

            Outro aspecto do problema a considerar é a evolução do pensamento do Codificador no transcurso de sua obra, Se, afirmou-o, o Espiritismo se caracteriza por ser essencialmente evolutivo, esta característica lhe é inata. Mesmo assim, porém, o sentimento religioso do Espiritismo lhe vem desde seus primórdios. Em "O QUE É O ESPIRITISMO", um de seus primeiros livros, logo no Preâmbulo, ao concluí-lo, Kardec, propondo-se a responder sumariamente à questão implícita no título, disse:

            O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações.

            Podemos defini-lo assim:
            O ESPIRITISMO É UMA CIÊNCIA QUE TRATA DA NATUREZA, ORIGEM E DESTINO DOS ESPÍRITOS, BEM COMO DE SUAS RELAÇOES COM O MUNDO CORPORAL."

            Cingindo-nos apenas a essas expressões, atendo-nos tão-só à letra, diremos que aí nada nos fala de religião... Contudo, se perquirirmos da natureza das "consequências morais" que dimanam das de nossas relações com os Espíritos, talvez encontremos aí algo do aspecto religioso. Dispensemo-nos, porém, de tal trabalho. Ouçamos o próprio Codificador, que nos diz a fls. 85, da obra citada, ed. 9ª, de 1945:

            "Ele (o Espiritismo) repousa, por consequência, em princípios independentes das questões dogmáticas. SUAS CONSEQUÊNCIAS MORAIS SÃO TODAS NO SENTIDO DO CRISTIANISMO, porque de todas as doutrinas é esta a mais esclarecida e pura; razão pela qual, de todas as SEITAS RELIGIOSAS do mundo, os cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência."

            Sentimos dever salientar a distinção que percebemos Kardec estabelecer aqui, entre Cristianismo, DOUTRINA, e Cristianismo, SEITA RELIGIOSA.

            As consequências morais que dimanam das relações acima referidas são todas no sentido da DOUTRINA CRISTÃ, pela razão exposta, em virtude da qual, não a religião cristã, mas a SEITA formada em torno da doutrina é que, dentre todas no mundo, se apresenta mais apta a compreender o Espiritismo.

            Mais tarde, em uma de suas viagens à cidade de Lyon, em visita às instituições espiríticas locais, Kardec observou a ação exercida, notadamente no meio proletário, pela doutrina espirítica e, comunicando suas impressões à Sociedade Espírita de Paris, afirmou, a certa altura:

            “A Doutrina dos Espíritos tem exercido sobre eles (os operários) a mais salutar influência sob o ponto de vista da ordem, da moral e das IDEIAS RELIGIOSAS."

            Foi isto em 1860.

            Anos após, desencarnando, Kardec deixou entre vários outros trabalhos um sob o título Ligeira Resposta aos Detratores do Espiritismo, incluído em "OBRAS POSTUMAS", no qual, resumindo as crenças, tendências e fins do Espiritismo, disse (fls. 247, da ed. de 1935, da Federação):

            “O Espiritismo é uma doutrina filosófica, que tem consequências religiosas, como toda filosofia espiritualista; por isto toca forçosamente nas bases fundamentais de todas as religiões: - DEUS; A ALMA, A VIDA FUTURA. NÃO É ELE, PORÉM, UMA RELIGIÃO CONSTITUÍDA."

            Temos aqui, portanto, o pensamento claro de Kardec. Ele afirma categoricamente não ser o Espiritismo uma religião. É bem verdade. Notemos, porém, que ele esclarece que natureza de religião o Espiritismo não é. Esclarecimento este, aliás, sempre omitido quando esta frase é citada em abono da negação do aspecto religioso do Espiritismo.

            Ora, é o próprio Codificador, com sua inegável autoridade que, em um de seus derradeiros trabalhos, traduz seu pensamento, sem todavia tê-lo modificado.

            E que nos diz - e isto depois de dada a interpretação das "consequências morais" dimanadas da doutrina, e agora ditas "religiosas"?

            “O Espiritismo não é uma religião CONSTITUÍDA."

            Se não é uma religião CONSTITUÍDA, na afirmação do mestre, é que o é NÃO CONSTITUÍDA.

            E o que será, então, uma RELIGIÃO NÃO CONSTITUÍDA?

            É ainda Kardec quem no-lo expõe, no mesmo trecho citado, quando declina a razão de não ser o Espiritismo uma Religião Constituída, dizendo-nos, então: " ... visto que não tem nem culto, nem rito, nem templo, e, entre seus adeptos, nenhum tomou ou recebeu o título de sacerdote... "

            Infere-se daí que RELIGIÃO NÃO CONSTITUÍDA é aquela que não dispõe dessas características, limitando-se ao culto íntimo, ao sentimento natural do "amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo",

            É justamente assim que o Espiritismo se apresenta como religião.

            E é justamente por assim ser, que ele é a continuação natural, divina e histórica do Cristianismo, Cristianismo de Jesus, que jamais ordenou um sacerdote, que não foi teólogo, que não construiu templos, antes, disse ser Deus Espírito a ser adorado, não em templos, mas em espírito e verdade (João, 4:21 e 23).

            Nem por outro modo compreendemos a expressão CRISTIANISMO ESPÍRITA ou ESPIRITISMO CRISTÃO, dado que entendemos o verdadeiro Cristianismo, tal Kardec deixou implícito em suas palavras atrás transcritas, uma RELIGIÃO NÃO CONSTITUÍDA, não se fazendo necessário dizermos o como entendemos o que os homens organizaram, tornando-o uma religião constituída.


            Pedro Delfino Ferreira, autor de excelentes estudos, ganha destaque especial com o lúcido e conciso artigo a que deu o título supra-referido. Este confrade, já desencarnado, conseguiu colocar um ponto final nas dúvidas e discussões suscitadas, dentro e fora do Espiritismo, em várias ocasiões. Entre os espíritas, pelo interesse permanente da pesquisa e do esclarecimento; mas, no seio dos adversários da ideia religiosa (no qual jamais faltaram até mesmo sacerdotes bastante hostis à difusão do conhecimento espiritista), por motivos bastante claros, entre os quais não deixam de avultar a indisfarçável preocupação e tentativa de se recusar aos adeptos da Doutrina e ao próprio Movimento o elementar direito às liberdades de consciência, de pensamento e de religião, para isso buscando, os agentes da discriminação e do obscurantismo, estribar-se firmemente nas vacilações e dúvidas geradas somente por questões semânticas.

            Estampado este artigo em "Reformador" (outubro de 1951), outro valioso viria à luz, no ano seguinte, da lavra de Joel dos Santos, igualmente acolhido nestas páginas: "Religião Espírita". Baseado em Delfino Ferreira e outros abalizados cultores das letras doutrinárias e evangélicas, esse estudo retornará também ao órgão febiano, proximamente. Desejamos, mediante as aludidas transcrições, proporcionar aos leitores subsídios suficientes à sua ilustração quanto à relevância insofismável do caráter religioso do Espiritismo, enfatizando a condição irreversível, que lhe é própria, de representar no mundo a Religião, sendo, como é, o Consolador Prometido e Enviado pelo Cristo de Deus, incumbido da restauração, em espírito e verdade, do seu Evangelho, eterno e universal. Sem prejuízo do seu tríplice aspecto, abrangendo a Ciência e a Filosofia.

Delfino Ferreira

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