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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

49. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'





49   ***


            Não abandonaremos este assunto, a pluralidade de existências, sem examinar uma objeção, aparentemente valiosa, com que tem sido impugnada. Porque, - costumam perguntar - se nós já vivemos neste mundo, não nos lembramos desse fato?

            Antes de tudo, cumpre acentuar, o esquecimento só se verifica em relação aos sucessos, por assim dizer, adjetivos, relacionados com a personalidade. Porque a memória substancial, aquilo que constitui a trama íntima de nossas aquisições morais e intelectuais, permanece vivaz, em forma de aptidões e tendências inatas.

            Que querem dizer certas predisposições para determinadas artes e ciências, a preferência por um ramo de atividade, em que o indivíduo se revela exímio, sem muitas vezes ter aprendido mais que os seus rudimentos, que vem a ser, numa palavra, a vocação e, melhor que isso, o gênio, esse lampejo dos predestinados, que não precisa de mestres, porque se revela maior que todos eles, senão o testemunho de uma lenta elaboração anterior, desabrochando agora na plenitude de uma deslumbradora maturidade? Por isso afirmou um grande espírito que "viver é recordar-se. "

            O homem conserva, pois, do seu passado, como uma sorte de instintiva reminiscência, tudo aquilo que lhe pode ser útil e facilitar a peregrinação terrestre, esquecendo em compensação o que lhe poderia ser nocivo ou embaraçoso, não somente a si, mas aos seus próprios semelhantes.

            Se cada um de nós se recordasse normalmente do que foi e do que fez, no transcurso das existências, para quase todos tenebrosas, a presença constante, na retentiva da memória, das maldades, torpezas, quantas vezes mesmo, crimes em que nos tivéssemos porventura chafurdado, não seria antes de molde a nos acabrunhar que a servir de estimulo para uma reabilitação, de que facilmente desanimaríamos? - ao passo que, na ignorância dos sucessos, vergonhosos senão trágicos, que acidentaram as jornadas precedentes, podemos, desembaraçados de humilhantes ou perturbadoras recordações, nos aplicar à meritória tarefa das reparações. E se a lembrança dessas vidas passadas permanecesse vivaz, com todas as suas circunstâncias, não é certo que reconheceríamos também aqueles que conosco as houvessem partilhado, e não estaria nisso uma fonte de perpétuos ressentimentos e incompatibilidades? Como se poderia efetuar a reconciliação dos inimigos, se cada um conservasse, nítida e fiel, a recordação das ofensas recebidas?

            É, pois, antes de tudo providencial em seus benéficos efeitos a lei que sobre o passado de cada um e de todos nós correu o misericordioso véu do esquecimento.

            Os que, ao demais, pretendem ver nesse esquecimento um motivo de impugnação ou invalidade, singularmente alheios se mostram a uma eloquente analogia que se pode a tal propósito invocar. E vem a ser que no curso desta mesma vida, uma multidão de fatos e impressões, apesar de registrados pelo nosso cérebro atual, desapareceram do campo da memória, pelo menos, ordinária. Todos nós - dissemos num trabalho publicado há alguns anos (1) - tivemos uma infância, todos fizemos o nosso aprendizado nessa idade, sofrendo a ação variada do mundo exterior, recebendo as suas impressões e registrando-as nos arquivos de nossa consciência, sobre elas reagindo pelo riso ou pelo choro, conforme eram agradáveis ou desagradáveis, delas em suma tomando conhecimento pessoal, por isso que em nosso foro interno tinham uma repercussão mais ou menos intensa. Todos, ou quase todos os fatos dessa primeira meninice, entretanto, apesar de se produzirem no curso de uma mesma vida, se nos varreram da memória.

            (1) Ver L. Cirne, REGENERAÇÃO E REENCARNAÇÃO, Demonstração da pluralidade de existências da alma (feita no REFORMADOR, órgão da Federação Espírita Brasileira, em resposta ao PURITANO, órgão da Igreja Evangélica Presbiteriana), folheto de 48 páginas. 1906.

            E não são os únicos: durante a existência, avançando através dos anos, uma multidão de sucessos, de incidentes, de coisas referidas, de ideias percebidas, que de perto nos afetaram e foram do mesmo modo registrados pela nossa consciência, tiveram idêntico destino, mergulharam no olvido mais completo.         

            Se, pois, observávamos então, entre as próprias impressões e percepções do nosso espírito, no curso desta vida, há um número considerável que, em virtude de certas circunstâncias, termina por inteiramente se nos apagar da memória ordinária, como nos admirarmos de que o mesmo se tenha dado com os fatos de uma vida anterior, entre os quais os da atual encarnação medeia todo o intervalo da erraticidade, que tanto pode ter sido de alguns anos como até mesmo de alguns séculos!

            Ao demais, se a memória, com ser um fato de consciência e de atenção, conforme no capitulo III o assinalamos, é por isso mesmo uma faculdade do espírito, não é menos certo que o seu funcionamento normal, durante a encarnação, está dependente do veículo a que se acha, nesse período, intimamente associada, a saber: o corpo  físico, ou mais propriamente, o cérebro. Para que uma percepção se dê, isto é, para que o espírito, no estado de encarnado, tome conhecimento de um fato ou de um fenômeno qualquer, assim de natureza moral  como de ordem material, é necessário que um movimento vibratório provocado por esse fato, afetando um ou alguns dos órgãos dos sentidos, ponha em atividade as células nervosas correspondentes e, transportado ao sensório, conseguintemente ao cérebro, se propague ao perispírito, para atingir finalmente a consciência, cuja sede está no espírito. Não há assim, para a consciência normal, ou de vigília, uma só impressão, percepção, ideia ou fato que não tenha transitado pelo cérebro e aí deixado um sulco mais ou menos profundo, donde se segue que o cérebro é para a memória um instrumento e auxiliar, mais ou menos fiel e obediente.

            No cérebro atual, porém, só foram, transitoriamente embora, registradas as impressões relativas a esta vida. Tudo o que se refere às passadas existências, conservado sem dúvida nos arquivos profundos da subconsciência, desapareceu temporariamente da memória, para só reaparecer no campo da consciência do espírito: ou de um modo definitivo, ao se desembaraçar este, com a morte, do grosseiro invólucro, ou com um cunho intermitente em certos estados supra normais, como os determinados pelo sono magnético, em que o panorama das anteriores vidas pode momentaneamente se exibir na tela do que se chama a consciência sonambúlica. Tal é o caso das experiências do coronel de Rochas que há pouco relatávamos.

            Não é contudo unicamente esse o caso em que, tal seja 00 grau de evolução do espirito, a reminiscência do passado, umas vezes indecisa, outras com um caráter positivo que não deixa lugar à Incerteza, pode apresentar-se ao indivíduo, como outros tantos testemunhos subjetivos da pluralidade de existências.

            Vamos, em apoio deste asserto, mencionar alguns exemplos, que, sem de modo algum invalidar a regra que acabamos de indicar e é a que prevalece para a generalidade, relativamente ao mecanismo da memoria associada ao funcionamento cerebral, servirão para demonstrar que as leis do espírito podem se afirmar e se afirmam soberanas, toda vez que, de alguma sorte ludibriando as constrições da carne, é dado a este confundir a ciência dois prudentes com alguns fragmentos, pelo menos, dos seus nativos esplendores.



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