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terça-feira, 23 de novembro de 2021

Cirne em face de Roustaing

 

‘Cirne em face de Roustaing’

por  Luciano dos Anjos

                                                         Reformador (FEB) Dezembro 1962

            Não fora a própria natureza do Espiritismo, qua a todos permite agir e pensar livremente e não saberíamos compreender o comportamento de alguns confrades que tanto se apartam dos mais ordinários postulados doutrinários. Só por isso há os que, por exemplo, chegam ao extremo de usar os mesmos métodos desleais dos que, lá fora, acerba e acriminiosamente têm tentado destruir o Espiritismo. Infelizmente, não raro, temos de lamentar a intemperança dos adversários externos e... também internos. Enfim, nenhuma Doutrina é mais liberal do que o Espiritismo e a cada qual se reserva o direito de agir como melhor lhe aprouver. Deixá-los pensar até que evoluam é apanágio inerente à própria Doutrina. Antes dessa ascensão evolutiva jamais lhes poderemos esperar melhor conduta e nem do Alto lhes será fácil, por acréscimo de misericórdia, receber a intuição precisa do entendimento das coisas. A Lei do Campo Mental (V. “Mecanismos da Mediunidade”, pág. 116 (ed. da FEB, 1960) é inflexível como qualquer outra lei, e o inesquecível Manuel Quintão já dizia, no “Reformador” de Novembro de 1942, pág. 262: “Ninguém será assistido e esclarecido extralimites do seu próprio esforço e capacidade intelectual e moral.”

            Nas obras de combate à Nova Revelação deparamos amiúde com as célebres transcrições pela metade, truncadas, mutiladas e até, às vezes, apresentadas fria, ousada e desabridamente a par de conclusões que de forma alguma se lhes poderiam inferir. Esse sistema, terrivelmente demolidor, encontramos também em trabalho d alguns confrades sôfregos por aluir (abalar) a obra de Roustaing. É o chamado “vale tudo” dialético, desde que se não deixe ninguém crer na “Revelação da Revelação”. O maranhão (grande mentira) é apresentado e fantasiado com tal desplante que custa a ser desfeito. E, ao contrário, por força de repetição – o eficiente sistema hitlerista – leva, às vezes, séculos para ser desmascarado. Durante a última hecatombe mundial o “fuehrer” explorou com galhardia esse abominável método e ele mesmo proclamava, como bom entendedor do assunto: “Uma mentira, à força de repetição, acaba sendo aceita como verdade”... Quiçá nem em “O Príncipe” se terá lido tão caviloso prolóquio...

            Uma das muitas “histórias mal contadas” é, sem dúvida, a posição do talentoso Leopoldo Cirne em face da obra de J. B. Roustaing. O ex-presidente da FEB, depois de publicar notável defesa daquela revelação, teria recuado no seu ponto de vista e desmentido tudo o que afirmara antes. Já por si só esse comportamento seria de tal jeito incompatível com o talento de Leopoldo Cirne, que talvez bastasse para ser levada à conta de calúnia a asserção. Afinal, em apenas alguns anos ninguém, da estofa intelectual de Leopoldo Cirne, reformaria tão radicalmente um ponto de vista. Recuo dessa natureza exigiria muito maior tempo, meditação, estudo aprofundado, lucubrações redobradas, cujas conclusões possivelmente só noutra encarnação aflorariam. Leopoldo Cirne não era um leviano capaz de, repentinament, “mudar a casaca”. Seu trabalho, divulgado no ano de 1903 através do “Reformador”, exatamente quando exercia  a presidência da Federação, não era um simples suelto (notícia solta, boato), mas substanciosa defesa de tese que implicitamente revelava o emprego de longo e acurado estudo filosófico. Ali, sua posição é de tal modo posta que se torna invisível crê-lo, alguns poucos anos depois, pensando diferentemente, e em termos diametralmente opostos, que torna a guinada sobremaneira absurda e ilógica. Seria quase o mesmo que, também a súbitas, passasse ele a descrer na imortalidade da alma... Nossa surpresa não seria menor. Depois, é preciso entender que a evolução espiritual conduz a uma determinada segurança interior na conceituação dos problemas filosóficos. Leopoldo Cirne tinha o necessário talento e  indispensável envergadura moral para emprestarem ao seu espírito evolucionado uma certa estabilidade consciencial e, por consequência, conceptual. A ser verdadeiro, em que lógica, dentre as cinco sugeridas por Gustave Le Bon (“As Opiniões e as Crenças”, ed. da Cia. Brasil Editora de São Paulo), se poderia enquadrar esse comportamento esdrúxulo? Em nenhuma, talvez, eis que tal comportamento não seria lógico. Assim, à sombra da própria ciência humana e oficial, temos carradas de razões para supor o absurdo da atitude que Leopoldo Cirne, de resto, nunca adotou.

            Por tudo isso, nunca poderíamos aceitar a reviravolta do pensamento de Leopoldo Cirne, como nos querem apresentar, capciosamente, alguns confrades menos sensatos. Todavia, a questão não se permite colocar em termos de aceitar ou não essa reviravolta. Isto porque, em nenhum tempo Leopoldo Cirne insinuou sequer uma alteração no seu ponto de vista. O que ocorre – e veremos a seguir – é a exploração leviana de determinado trecho da sua obra “Anticristo, Senhor do Mundo”, exploração lamentável feita pelos adversários acérrimos da doutrina rustenista. Mas nem ao menos é um trecho que comporte duas interpretções. Ele é claríssimo, cristalino e somente a técnica da mentira racionalizada, repetida assiduamente, tem tentado apresentá-lo com o sentido que Leopoldo Cirne nunca lhe emprestou. Senão, vejamos:

             “Devemos acrescentar, a propósito da “Revelação da Revelação”, que, reconhecendo embora a profundeza de muitos de seus ensinamentos, a par da magnitude do plano verdadeiramente original, em que foi plasmada, não temos dúvida em admitir que a forma expositiva, recheada de fatigantes repetições, denuncia suspeita colaboração oculta”. “Sob essa mesma epígrafe (“Espiritismo Cristão”) é que foi publicada a “Revelação da Revelação” – outro título pretencioso, constituindo uma das suspeitas inspirações que, a nosso ver, logrou o inimigo insinuar nessa obra admirável, fazendo-a um misto de luz e sombras e tornando assim necessário que, para aceitação dos magníficos ensinamentos que contém, seja empreendido um considerável trabalho de joeiramento (peneiramento) e síntese, que, eliminando as ociosas repetições do mesmo modo que certas excessivas pormenorizações, conserve em suas linhas estruturais o pensamento superior que lhe deu origem. Esse trabalho – não o duvidamos – será um dia realizado com o amor e a humildade que requer, sob a indispensável inspiração do Alto.” (“Anticristo, Senhor do Mundo”, páginas 290/291/292, 1935. Todos os grifos são nossos.)

             Ora, tais palavras não dão margem a duas interpretações. Leopoldo Cirne apenas passou a achar que houve “uma suspeita colaboração oculta” na “forma expositiva” do trabalho. Apenas na forma expositiva, que contém “ociosas repetições e excessivas pormenorizações”. Contudo, dentro do mesmo trecho, Leopoldo Cirne reconhece na obra de Roustainga profundeza de muitos de seus ensinamentos, a par da magnitude do plano, verdadeiramente original, em que foi plasmada”. E mais: “magníficos ensinamentos que contém” e “o pensamento superior que lhe deu origem”. Sugere, enfim, um trabalho de síntese para melhorar a forma expositiva. Essa sinopse, aliás, chegou a ser feita, alguns anos antes, por Antônio Luís Sayão e se intitula “Elucidações Evangélicas”. Não seria difícil explicar as razões das repetições e pormenorizações encontradas na “Revelação da Revelação”, bastando argumentar com a época e a natureza profunda do novo ensinamento, apenas assimilável se exposto, mesmo, com minúcia e repetição aclaradoras. Uma questão simples de imagem conceptual interior, necessária á apreensão do leitor. Lembramos aqui, a guisa de exemplo, o trabalho do filósofo Louis Lavelle, intitulado “Traité de Valeurs”, cujas repetições e pormenorizações se por um lado tornaram-no enfadonho, nem por isso lhe apoucaram o valor do conteúdo intríseco. O autor, assim agindo, visou a tornar claras e compreensíveis as novas ideias lançadas ao mundo. Da mesma forma, “O Capital”, de Karl Marx, pode ser considerdo excessivamente prolixo e repassado de repetições, sem que nada lhe houvesse roubado a importancia das ideias esquadrinhadas. De Emmanuel Kant as obras fundamentais; “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão Prática” ou “A Religião Dentro dos limites da Mera Razão”, podem ser igualmente incluídas ao mesmo caso. Um outro exemplo se contém, sem dúvida, na obra de Pietro UbaldiA Grande Síntese”, onde a prolixidade, a par dum sistema expositivo arrastado, são fatores incontestáveis sem que nada implique, entretanto, no inquinamento da profunda mensagem filosófica que encerra. Finalmente, os três Evangelhos  chamados sinóticos, de Mateus, Marcos e Lucas, por se repetirem, nem por isso denunciam “uma suspeita colaboração oculta”.

             Deixemos de lado, porém, esse aspecto que, se existiu, já foi corrigido pelo não menos talentoso Antônio Luís Sayão, quem sabe, até, “inspirado pelo Alto”, como era do desejo do seu confrade Leopoldo Cirne. No mais, não devemos esquecer nunca o consagrado aforismo francês: “tout est bien qui finit bien”...

            Passemos, pois, ao que mais importa. Vemos, do exposto, que Leopoldo Cirne não rejeitou a obra de Roustaing. No próprio “Anticristo, Senhor do Mundo”, pouco antes de chegar àquele malsinado trecho (pág. 290), podemos ler, sobre a natureza do corpo de Jesus, o seguinte conceito do autor:

         “Por nossa parte, não poderíamos, nem podemos, sem irreverência, compreender (a figura do Mestre) sujeita às mesmas grosseiras necessidades e contingências do comum dos homens, não menos indispensável sendo, por isso, atribuir-lhe uma corporeidade particular, a fim de não somente serem entendidas certas expressões, aparentemente enigmáticas, relativas á sua própria pessoa, mas alguns fatos capitais de sua vida, inexplicáveis a não admitir-se tal corporeidade.”

             Ora, mais claro e definitivo do que isso Leopoldo Cirne não poderia ter sido. Aliás, já à pág. 204, assim se expressava:

             “Num trabalho anterior, conformando-nos benévola e discretamente, com as explicações contidas na “Revelação da Revelação”, decorrentes da natureza do Cristo, de sua hierarquia e sua missão divinas, que aceitamos nos termos em que alí se encontra... (Grifos nossos)

             E, à pág. 280:

             “... a propósito da revelação,contemporânea de Allan Kardec, recebida igualmente na França, por J. B. Roustaing, com o concurso da médium Sra. Collignon, a qual, enfeixando admiráveis ensinamentos acerca da evolução geral dos seres, com uma profundeza e transcendência que se não encontram nas obras fundamentais codificadas pelo primeiro, e empreendendo uma explicação integral dos Evangelhos, “em espírito e verdade”, não apenas em sua parte moral, mas abrangendo, uma a uma, todas as passagens, postas em concordãncia, nos três sinóticos, relativas, inclusivamente, aos fatos da vida de Jesus e aos denominados “milagres”.”

             Fora impossível, sem dúvida, ser mais explícito. Quanto a discordar da epígrafe “Espiritismo Cristão” e do título “Revelação da Revelação” era um direito que lhe assistia e cuja externação revestia caráter meramente opiniático. Deixemos também de comentar, por um dever de caridade e respeito, os motivos inglórios que o levaram a admitir, em má hora, determinados conceitos sobre outros problemas doutrinários insertos em “Anticristo, Senhor do Mundo”. Onde se encontra já terá, por certo, compreendido seu doloroso equívoco, fruto de efêmeras desinteligencias com alguns confrades, logo após o seu afastamento da presidência da Casa de Ismael, onde deixou extraordinária folha de serviços.

             Mas, voltemos ao nosso tema. Na sua obra anterior intitulada “Doutrina e Prática do Espiritismo”, editada em 1920, como se comporta o pensamento filosófio de Leopoldo Cirne? Verifiquemos rapidamente. À pág. 279 do vol I, diz-nos ele:

             “A obra, que sob esse título (“Revelação da Revelação”) e com o subtítulo “Os Quatro Evangelhos, explicados em espírito e verdade pelos Evangelistas, com assistência dos Apóstolos”, foi recebida em forma de ditados e publicada por J. B. Roustaing (edição, traduzida, da Federação Espírita Brasileira), tem sido objeto de veementes impugnações, a pretexto e em virtude da singularidade, aos olhos de muitos inadmissível, com que é atribuída ao Cristo uma corporeidade, fora da leis da encarnação humana, constituída pela absorção e condensação de fluidos que lhe davam ao perispírito o aspecto e as condições de uma longa tangibilidade, semelhante à de Katie King (experiências de William Crookes), única entretanto compatível, na opinião de alguns que partilhamos, com a pureza e peregrina elevação daquele Espírito. À parte contudo esse ponto, em que é lícita a controvérsia, conforme o prisma por que seja individualmente examinado e contanto que dele não se faça um motivo de divisão e hostilidade, a aludida Revelação contém, de par com uma explicação minuciosa, trecho a trecho, dos textos evangélicos, sendo assim uma obra única em seu gênero, contém – dizíamos – ensinos de uma admirável transcendência, sobre os quais bem andariam os espíritas, sem ideia preconcebida, em meditar detidamente, tanto mais que se avantajam a alguns dos codificados por Allan Kardec, como por exemplo os que se referem à evolução dos seres, ali apresentada numa síntese integral, como não se encontra semelhantemente nem com tamanha clareza n’ “O Livro dos Espíritos”, em que esse ensino é ministrado sob uma forma velada e incompleta.”

             Mais adiante, à pág. 191 do vol II, lemos:

             “A explicação que dessa passagem (tentação de Jesus) se encontra na “Revelação da Revelação”, apoiada na lógica, em harmonia com o conhecimento da natureza do Cristo, da sua hierarquia e missão divinas, demonstra satisfatoriamente a “... etc.

             Restaria apenas uma consulta ligeira à última e mais recente obra de Leopoldo Cirne, intitulada ‘O Homem colaborador de Deus”, edição póstuma da Gráfica Mundo Espírita, datada de 1949. À pág. 64, deparamos:

             “Era  seus traços gerais, transitando por último do reino animal para a Humanidade, não direta e imediatamente, mas consoante os razoáveis ensinamentos da “Revelação da Revelação”.

             Logo adiante:

             “Verbo de Deus, tornado objetivo aos humanos olhares, o Senhor Jesus, cuja missão”... etc. (pág. 136.)

             À pág. 140, afirma o autor:

             “Até para Espíritos de ordem mais elevada como, por exemplo, o Senhor Jesus, a ligação a um corpo, mesmo de composição especial em harmonia com a sua pureza e sua perfeição – segundo a concepção, que se nos afigura a mais acertada e constitui, divergente embora respeitável corrente entre os espíritas -, representa sempre uma restrição, pelo menos, de seus poderes e capacidade operativa.”

             Notem bem que Leopoldo Cirne considera, para si, a mais acertada concepção, e isto no seu último livro, traduzindo, afinal, o seu último ponto de vista.

             Bem, fiquemos por aqui. Esta é a real posição de Leopoldo Cirne em face de Roustaing. E estamos certos de que, mercê do Alto, não vingarão por muito tempo os métodos desleais de que vêm fazendo uso alguns daqueles que ainda não entenderam a mensagem rustenista – ou, o que é pior – nem mesmo a kardecista-cristã... Ademais, lembremos sempre que a Verdade pe eterna e nada teme. Em artigo publicado em 18 de Março de 1953, na extinta “Vanguarda”, afirmava o insquecível Fred. Fígner: “A verdade não pode ser vencida, os vencidos somos nós que não oramos e vigiamos.”

            SURSUM CORDA! (corações ao Alto!) (*)

  (*) Aquele leitor de São Paulo (rua Dr. Coutinho, 72 – Penha), que nos escreveu aconsehando a leitura de certas obras, queremos responder, a bem da verdade, que tivemos oportunidade de as ler há muito tempo e até nos desvanecemos de possuir o “Anticristo, Senhor do Mundo”, autografada pelo próprio autor. Não tem razão o nosso leitor quando nos considera desinteressados da Verdade. Nossa vida tem sido e há-de ser uma constante preocupação pelo estudo, a fim de não cometermos erros doutrinários e, em contrapartida, encontrarmos os elos doutrinários que nos dão a chave dos magnos problemas, forrando-nos assim à intolerância dos que só querem... Kardec e não Roustaing.


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