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domingo, 12 de abril de 2020

O caminho das urzes


O caminho de urzes
Arnaldo S. Thiago
Reformador (FEB) Julho 1941

            Lágrimas derramo sobre as minhas alegrias terrenas: elas foram sempre envenenadas por alguma falsidade.

            Busco as alegrias do céu, onde reina a pura felicidade.

            Mas, para buscar a felicidade no céu é preciso conhecer a falsidade das coisas terrenas - porque sem a experiência destas coisas, aqueles bens celestiais nunca poderão ser obtidos.

            A viagem é longa. Por vezes a jornada parece transmutar-se: em lugar de ascensão - queda. Tem-se a impressão de haver descido muito, depois de muito haver subido. Isto particularmente sucede quando os amigos nos abandonam, quando os íntimos nos repudiam, quando a censura substitui os louvores com que éramos enaltecidos...

            Esta é a hora mais terrível da experimentação, em que o grande e excelso Mestre procura conhecer o valor da nossa própria consciência. Então, o neófito que aspira desvendar os segredos da vida, se não tem princípios e foi apenas um traficante dos gozos terrenos, soçobra e imerge no desconhecido, no caos imenso das dúvidas terríveis, onde o espírito se sente batido por todas as angústias e por um mortal desassossego...

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            Conserva o teu próprio caráter, homem sofredor das retortas terrenas; não te deixes vencer pelos julgamentos alheios, nem fascinar pelos triunfos passageiros da tua sensibilidade. Abre-se diante de ti uma estrada juncada de urzes, por onde não gostam os homens de transitar - os teus pobres companheiros de jornada. Investe resolutamente por esse caminho, fere-te nas urzes: viverás sem muito pão, porque esse caminho é quase deserto e ninguém te ajuda, porque por ele - já t'o disse - pouquíssimos transitam.

            Mas ao fim terás a satisfação de saber que foste um homem e sabermos que temos sido homem nos tormentos da terra é melhor do que reconhecermos que fomos apenas, para sermos ditosos, do número daqueles que Panúrgio (personagem de Rabelais. Durante uma viagem de barco no mar, Panúrgio tem uma discussão com um comerciante de carneiros, que viajava com o rebanho. Como vingança, Panúrgio compra-lhe um carneiro por alto preço e atira-o no mar. O exemplo e os balidos deste, levam os outros carneiros a segui-lo e, até o comerciante agarrado ao último, se afogam) tange com o seu bastão, sem dificuldades nem raciocínios...

            Acorda, homem, do teu sono! Já dormiste demasiado. Já entretiveste a alma com os brincos fúteis da terrena vida. Faze deles agora o motivo superior da tua aprendizagem. Não os desdenhes: examina-os como peças curiosas que serviram à recreação da tua infância espiritual, como os artefatos encontrados nas antigas cavernas, servem ao arqueólogo para conhecer a inteligência embrionária do homem primitivo.

            Não te iludas mais com esses brincos infantis. Dá-lhes o valor que merecem e, empregando-os, porventura, algumas vezes, para atrair ao teu convívio as almas cândidas que foram enganadas pelos sorrisos da alegria terrena, procura encaminhá-las sabiamente pela estrada de urzes que têm de perlustrar, se também aspiram às alegrias do céu. Mas, ao passo que caminhas tu sozinho, acompanha solícito alguma alma que dê entrada resolutamente no atalho de urzes - porque essa, que ouvir e compreender o que lhe digas, será tua eterna companheira.

            Vai de fronte erguida, caminheiro da adversidade terrena. Eu te deixo agora, para esperar-te nos pórticos eternos. Sê prudente, sê forte e bendize da mão que te fez sofrer, apontando-te o caminho de urzes, porque nesse instante foste agraciado pela divina misericórdia.

            Bendize das tuas lágrimas. E segue sempre avante, sem recriminações, com resignação e humildade.

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