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segunda-feira, 27 de maio de 2019

O Salário do Filósofo



O salário do Filósofo
Canuto Abreu/ Manuel Quintão/ Guillon Ribeiro
Reformador (FEB) Novembro 1923

Por excesso gratíssima, publicamos o artigo abaixo, da lavra de um companheiro íntimo, escrito, sob forma desusada nessas colunas, ao influxo de leal devotamento. Fazemo-lo, sentindo justíssima e devida a homenagem que encerra e a qual, por isso, de pleno coração nos associamos. Que o homenageado, assim ferido no que tem de mais refulgido em seu espírito – a sua modéstia, nos perdoe a exceção simpática que abrimos e consinta que, em sinal de solidariedade com o autor na sua intenção elevada, subscrevamos o artigo que se vai ler. A Redação   

            No alto de íngreme ladeira, num planalto irregular, existe uma casinha isolada e modesta onde mora um filósofo. Este filósofo, como em geral os filósofos, é velho e solteiro, simples e generoso. Tem, no entanto, sobre os outros a vantagem da boa saúde, indicada no corpo cheio e ereto, nas faces rosadas, na fronte desanuviada e Inteligente. Seu coração amorável, apesar dos setenta anos de pulsações incessantes, lhe permite habitar aquele ermo agreste e andar quase diariamente, ladeira abaixo, morro acima, para o trabalho, para o estudo, para a caridade.

            Habita só, naquela vivenda solitária. Só com os patinhos que cria... Como apóstolo, é naturalmente pobre, no sentido de não ter fundos terrenos de reserva. Mas possui a verdadeira riqueza, aquele formidável e invulgar tesouro, que consiste em não achar falta em coisa alguma, em achar supérfluo o pouco que Deus lhe dá.

            Na mudez serena do retiro onde o homem é só, vive aquele filósofo cercado de espectros. Longe do mundo e perto do céu, enquanto Já em baixo a humanidade freme desesperada na vertigem ambiciosa do irrealizável, ele realiza o sonho de escutar em vigília os sussurros carinhosos dos espíritos dos que partiram e deixaram no oceano da existência a esteira da virtude e da saudade.

            Mas os homens não deixam o velhinho integrar-se no recolhimento. Correm à ermida, sempre que necessitam de conselho urgente e decisivo, de assistência perspicaz e libertadora. Porque ele é o advogado dos oprimidos e, especialmente, dos oprimidos espíritas.

            Despreocupado das coisas deste mundo, não se recordará talvez ele quando entrou para a Federação, tão longe vai a data. A Federação, porém, sabe que ele é afiliado antigo e se recorda de que nas dificuldades sempre teve o seu concurso inestimável. Sim, inestimável, pela sinceridade, presteza e valor, mas principalmente pelo modo de concorrer. Nunca perguntou que cargo lhe iam dar, sempre aceitou aquele que lhe indicaram. Tão grande é o seu desprendimento neste assunto que, se uma conveniência administrativa viesse tira-lo da presidência para a portaria, o filósofo, aureolado de humildade real, que não apenas aparente como a de tantos, sem a mais leve objeção, passaria sorridente a ser porteiro.

A este mérito raro, junta-se uma sólida erudição espírita, teológica e jurídica que o tornará um dia, como outros que já deixaram a terra, superior padrão de espírita. Hoje, chamam-no alguns de excêntrico.
           
Quando há bonança e calmaria, quando a doutrina singra sem perigos, o filósofo excêntrico se recolhe à sua ladeira. Só não se esquecem dele os numes (divindades) e penates (deuses do lar para os romanos e etruscos).  Quando os vagalhões encapelados partem o seio úmido na quina da barca, ameaçando a tripulação; quando a propaganda tangencia os códigos humanos e atira ao banquinho dos réus um companheiro, então para logo ele é lembrado. E a casinha da ladeira permanece de vela acesa até a madrugada. Os gênios protetores ali descem em maior número, e o monge espírita começa a produzir a defesa que, a um tempo, salvará o companheiro e a Causa.

Estilo sóbrio, correção linguística, argumentação irretorquível tecem a obra modelar, graças a qual a Doutrina tem vencido os obstáculos das leis restritivas de sua divulgação.

Uma, duas, três... quantas vitórias já logrou a Federação na esfera jurídica? Não vale recordar. Mas todas, humanamente falando, são do velhinho bom, desse, filósofo sadio, do fidelíssimo e venerável servo do Senhor, que habita, só, a casinha do Ascurra. A liberdade de trabalho que logramos devemo-la em magna parte ao instrumento que soube defender os nossos problemáticos direitos, arrancando da consciência dos juízes o amparo que não poderia tirar das leis mal feitas e transitórias.

E os que o procuramos nas situações críticas lhe teremos sido sempre suficientemente gratos? Teremos dado à sua obra o apreço que merece? A humanidade é geralmente ingrata.

Ainda há poucos dias, conseguida, para todos nós espíritas, no Supremo Tribunal, a bela vitória que nos impeliu a escrever comovidos estes períodos, o velhinho subiu, só, como sempre, a ladeira onde reside. Ninguém o acompanhou ao descampado pouso. Galgou-o ele sozinho, esquecido a seu turno da ingratidão dos homens por levar a alma transportada de reconhecimento ao seu Senhor.

Na verdade, que importam ao solitário filósofo as manifestações dos homens,
se sempre por Jesus é que trabalha? Que importa ao bom varão não seja o seu trabalho em voz alta abençoado pelos que dele beneficiam, se o salário que espera não é deste mundo? Uma única recompensa ele aguarda, antegozando-a nas alegrias de uma consciência límpida! Essa te-la-á certamente no dia em que o céu, engalanado para o receber, disser pela boca dos nossos maiores: “Amado companheiro, cumpriste bem o teu dever; foste um exemplo!”


segunda-feira, 20 de maio de 2019

Rondando a Cidadela


Rondando a Cidadela
por Canuto Abreu
Reformador (FEB) Julho 1923

             A propósito dos novos folhetins de COELHO NETO no “Jornal do Brasil”.

            Raríssimos os intelectuais de nosso país que não conheçam através dum fato a lógica inflexível da teoria espirita. Numerosos são mesmo os que entre eles professam em silêncio a filosofia que se edifica sobre ela, à espera do primeiro ensejo para a propalar, na Faculdade de Medicina, na de Direito e na Escola Politécnica, esferas onde mais frequentemente se encontra nosso verdadeiro escol científico, os que admitem por fé comprovada a doutrina dos espíritos são em maior número do que os que a infirmam por falta de provas em laboratórios. Um distinto acadêmico disse-nos há dias que a mesma maioria se verifica na Academia de Letras.

            O Espiritismo nada ganha com isso; o sol não adquire maior prestigio por se refletir no cristal e no diamante. Mas ganhamos nós, vendo a teoria que nos felicita refulgir de cérebros cultivados.

            A tela enriquece-se com a moldura. Alegra-nos, portanto, prever para breve um grande surto de literatura espírita no Brasil. Teremos episódios cheios de atrativos, retirados desse campo vastíssimo, pouco explorado ainda. O Espiritismo alimentará a imaginação literária de intensidades jamais sentidas, porque é, não a fonte de uma inspiração singular e duvidosa, mas o caudal de inspirações verdadeiras, universais, sopradas no empenho uniforme de implantar uma noção religiosa mais adequada à época. O enredo assim será mais impressionante pelo princípio de causalidade e finalidade que estabelecerá. Até agora as misérias, as visões, os acasos, as felicidades, as coincidências que formam nossa bagagem literária eram encarados apenas pelo lado humano, como efeitos duma causa misteriosa.

            Para os que de preferência ao romance buscam a palavra do Evangelho espírita, a nossa literatura kardequiana basta. Para quantos, porém, viciados no ópio da fantasia leiga, no aroma da poética profana, procuram a verdade através da comoção, o concurso dessa literatura será inestimável por semear em canteiros onde só lia superstições desconsoladoras as roseiras da Piedade, cujas flores receberão um dia, ao alvorecer da Dor, o orvalho doce e reconfortante da Revelação.

            O primeiro clangor (som forte) da era que anunciamos acaba de ser proferido pelo príncipe das letras brasileiras. Não se trata aí dum gesto leviano para fascinar a atenção, dum arremesso contra moinhos de vento, como se poderia cuidar à primeira vista. É o depoimento duma alma sincera. É uma espada rebrilhante erguida com entusiasmo, apelando outras para o ataque da Verdade. E outros virão por ele. Ao toque de rebate, muitas consciências despertarão da dúvida e correrão à arena, enquanto que outros, quiçá em maior número, agremiarão lanças, chuços (objeto artesanal pontiagudo), e peçonha para arrostar (enfrentar) com os destemidos. Haverá lugar para todos no amplo anfiteatro da imprensa.

            O que aí se antevê já se produziu em Paris há pouco tempo. O Espiritismo vinha sendo a ordem do dia, na rua, nas residências, nos círculos, nos templos. A Revue de France publicava folhetins sensacionais de Marcel PREVOST; a Revue de Paris mantinha uma coluna para escritores notáveis do assunto. A Revue Universelle, a Lectures pour Toustantas outras cuidavam com interesse das questões espíritas, e a própria Ilustration amparava o novo gênero de literatura. Também os diários não desprezavam caso algum de psiquismo. Estava, numa frase, em plena moda “faire tourner la table et parler les esprits”. E até numa igreja parisiense o padre MAINAGE, professor do Instituto Católico, autorizado diretamente pelo Papa a estudar o Espiritismo prático, fazia conferências exaltadas, sustentando coerentemente a existência dos fenômenos e atribuindo-os ao Diabo, personagem simbólicos do Mal. Sentia-se no ar uma agitação misteriosa maior do que a guerra recém-extinta: a descoberta científica da alma fora do corpo. Para super excitação geral, estourou a notícia (falsa aliás) de que EDISON, após acurados estudos metapsíquicos, descobrira afinal o aparelho que devia substituir o médium. Não houve um só jornal em toda a França, exceto os empenhados na contrapropaganda, que não registrasse a empolgante noticia. E as sociedades de estudos psíquicos multiplicavam-se. Fundou-se o Instituto Metapsíquico de Paris, para logo reconhecido de utilidade pública por decreto especial. Reuniu-se em Copenhague o Congresso de Experiências Psíquicas e preparava-se outro para Varsóvia. Não havia afinal nome importante de cientista ou literato que escapasse a ver-se envolvido numa observação espírita, diante de mediunidades célebres. E os romances de fundo psíquico ou abertamente espírita vinham surgindo num crescendo assustador. Um deles obteve mesmo o primeiro prêmio FANNY, de 1921, e outro foi coroado pela Academia das Ciências.

            Era indescritível a comoção parisiense, quando começou a memorável pugna, a que assistimos de perto, e que ainda perdura. A revista ‘L'Opinion’, órgão católico, recebeu de braços abertos o plano de Paul HEUZE, rapaz insinuante, inteligente e sagaz. Era na aparência um simples inquérito sobre o estado presente das ciências psíquicas, mas no fundo uma violenta armadilha para colher os incautos. E daí, em meio à mais formidável das confusões de apartes, respostas e réplicas, retratações, invenções e insultos, surgiu o debate sobre a tese da moda: vivem ou não vivem os mortos? Cada número de ‘L'Opinion’ era uma nova surpresa dolorosa para uns, congratulatória para outros, estupefaciente para todos. Primeiro, fizeram falar GABRIEL DELANNE, o discípulo mais notável de KARDEC, “de qui le nom est connu et réputé, non seulement dans le mond des spirites, mais dans le mond tout court” (P. HEUZÉ). E o presidente perpétuo da Sociedade Francesa de Estudos dos Fenômenos Psíquicos, diretor da Reviste, Científica e Moral do Espiritismo, presidente da União Espírita Francesa, o autor de inúmeras obras continuadoras das de KARDEC, teria começado assim: “A maior parte dos fenômenos de ordem misteriosa toda a gente já descobriu que são produtos da faculdade psíquica do próprio paciente, ou comunicações mento-mentais de vivo a vivo.” ... Deram depois a palavra a FLAMMARION, de quem não precisamos dizer nada mais que o nome universal, e o sábio teria dito: “Comecei meus trabalhos sobre esse assunto em 1862; lá se vão, pois, sessenta anos de pesquisas e hoje só posso afirmar uma coisa: é que nada sei, é que não compreendo nada, absolutamente  nada ...” E dama FLAMMARlON, a acrescentar pelo astrônomo: "Já vos disse que meu marido não é espírita e repito-vos: “Pas spirite de tout...” E outros grandes nomes do Espiritismo e do metapsiquiso vieram a público na cilada de ‘L' Opinion’: RICHET, GELEY, BlSSON ... Falaram também a senhora CURIE, MAETERLINCK, BRANLY, CONAN DOYLE e até mesmo o padre MAlNAGE. A teoria espírita parecia periclitante no apaixonado embate, quando enfim se verificaram os embustes, as deturpações, as falsas interpretações. Os lutadores de boa fé afastaram-se, deixando na arena a incomensurável multidão de ignorantes, que ama crítica acerba e detesta o estudo, a apanhar falsos troféus.

            Assim será também no Brasil.

            COELHO NETO deu-nos a razão de sua atitude, iniciando o novo gênero literário: o poder dos fatos, a lógica dos raciocínios e principalmente o desejo de consolar, como se consolou a si próprio. O primeiro folhetim, “Conversão”, ele o arquitetou sobre um fato que lhe foi narrado a bordo do Andes, na sua recente viagem ao Norte, por família brasileira respeitável, que merece dele e de todos a mais segura confiança. Registra, portanto, uma verdade e não uma ficção. O segundo, sob a epígrafe “Imã”, é, nada mais nada menos, do que a fiel narrativa de acontecimento verificado em sua casa, testemunhado por idoneidades incontestes. Os vinte e três futuros contos terão a mesma diretriz e a mesma sinceridade, e todos serão afinal apanhados num volume denominado “Sombras”. Os folhetins não virão seriados, pois, fora alguns já esboçados, os mais não acudiram ainda sequer à mente do mestre. Tudo estará subordinado à inspiração do momento, a uma força que de vez em vez o atrai para o assunto. A obra, porém, se dividirá em duas partes. a sugerida pelo meio objetivo e a sugestionada pelo meio subjetivo; será uma obra de fluxo e refluxo.

            O primeiro dos nossos escritores disse-nos isso com aquela simplicidade superior tão sua característica, quando o entrevistamos em nome da FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. Explicou-nos a satisfação em que se encontrava por ver quão bem recebido havia sido o primeiro folhetim. Cartas de muito longe e de perto, abraços na rua, cumprimentos pelo telégrafo, visitas inesperadas. Sente-se bem. Não conhece o problema psíquico pelos recentes estudos que está fazendo para mais de trinta anos que o primeiro fenômeno espírita insofismável feriu a sua emotividade. Contou-nos qual foi e narra-lo-á brevemente. Será a nosso ver uma das páginas mais empolgantes do “Sombras”, culminante mesmo. Não porque encerre um caso raro em nossa fenomenologia, sim porque se deu com o escritor em pessoa, no seio de sua própria família, irradiando-se pelos assistentes e convertendo ao Espiritismo personalidades do maior destaque social. Uma delas foi o saudoso confrade professor ÉRICO COELHO. A maior parte das narrativas será, porém, fruto das observações de pessoas íntimas, absolutamente equilibradas, íntegras, honradas, que merecem toda a confiança do publicista. Não se esquivará, como nunca se esquivou, a tratar do assunto prática e teoricamente. Já fez parte de uma sociedade psíquica, onde, infelizmente, nada viu de positivo. Mas deseja ver.

            O fino estilista das “Sombras” é uma alma profundamente religiosa. Nunca teve, afirmou-nos, a menor dúvida na existência de Deus, na imortalidade da alma, na sua influência sobre os homens. Arregimentou-se desde a infância no catolicismo e respeitou sempre todas as mais crenças religiosas, quando ditadas pela sinceridade. Nunca compreendeu como se pudesse, no meio de tantas atestações divinas, ser um materialista convicto.

            É espírita?

            Seria intempestivo assegura-lo. No grande pensador brasileiro não desabrochou bem ainda a flor da nova crença. Esperemos que o tempo, as tempestades da vida, as sucessivas observações das coisas, sob o sol de sua prodigiosa inteligência, lhe abram de todo a rosa do coração.

            COELHO NETTO não pode ainda afirmar como CROOKES: “Não digo que o fato se pode dar; afirmo que se dá.”

            “Sapiens nihil affirmat quod non probet” (o sábio nada afirma que não prove)
e, portanto, não possuindo ainda cópia suficiente de provas, COELHO NETTO não quer afirmar nem negar a REENCARNAÇÃO, teoria que forma, com a comunicabilidade e a sobrevivência das almas, o triângulo espírita em que precisa crer o adepto.

            Eis aí porque, antes que outros, pressurosos, venham clamar que ele ainda
não aderiu completamente ao Espiritismo, o dizemos nós.

            Por enquanto, COELHO NETTO está apenas rondando a cidadela.
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PS.: O que colocamos a seguir foi extraído do site https://espirito.org.br

            “A Conversão de Coelho Neto ao Espiritismo
            Enviado em 31/07/2015 | Escrito por Jornal Mundo Espírita de Março de ...
            Sobre a conversão do notável e saudoso escritor Coelho Neto ao Espiritismo, eis a entrevista publicada pelo “Jornal do Brasil”, de sete de julho de 1923 que ora transcrevemos:

            “Sim, tens razão. Combati, com todas as minhas forças, o que sempre considerei a mais ridícula das superstições. Essa doutrina, hoje triunfante em todo o mundo, não teve, entre nós, adversário mais intransigente, mais cruel do que eu.
            Em casa, onde a propaganda, habilmente insinuada, conseguira fazer prosélitos, todos temiam-me, apesar da minha conhecida tolerância em matéria de fé, porque eu não deixava passar um só dos livros de preparação e opunha-me, com energia, às tais sessões reveladoras. Mas que queres?
            Não tiveram os cristãos inimigo mais acirrado do que Saulo até o momento em que, na estrada de Damasco, por onde ia para a sua campanha de perseguição, o céu abriu-se em luz e uma voz do Alto o chamou à fé. E de inimigo que era não se tornou, o tapeceiro de Tarso, o mais fervoroso e abnegado apóstolo do Cristianismo, saindo a pregar a Palavra suave ao gentio pagão? Pois, meu caro, a minha estrada de Damasco foi o meu escritório e, se nele não irradiou a luz celestial, que deslumbrou S. Paulo, soou uma voz do Além, voz amada, cujo eco não morre em meu coração.
            Sabes que, depois da morte da pequenina Ester, que era o nosso enlevo, a vida tornou-se sombria. A casa, dantes alegre com o riso cristalino da criança, mudou-se em jazigo melancólico de saudade. Passei a viver entre sombras lamentosas.
            Minha mulher, para quem a netinha era tudo, não fazia outra coisa senão evocá-la, reunindo lembranças: roupas que ela vestira, brinquedos que a acompanharam até a última hora, entre os quais a boneca, que foi com ela para a cova, porque a pobrezinha não a deixou até expirar.
            Júlia… coitada! Nem sei como resistiu a tão fundos desgostos; seis meses depois do marido, a filha.
            Pensei perdê-la. Todas as manhãs lá ia ela, para o cemitério, cobrir o pequenino túmulo de flores, e lá ficava, horas e horas, conversando com a terra, com o mesmo carinho com que conversava com a filha. Ia depois ao túmulo do marido e assim vivia entre mortos, alheia ao mais, indiferente a tudo.
            Propus mudarmo-nos para Copacabana. Opôs-se. Insistiu em ficar na casa em que fora feliz e desgraçada, mas onde perduravam recordações do seu tempo de ventura.
            Temi que a seduzissem para o Espiritismo, que a lançassem ao turbilhão do mistério em que se agitam as almas do nosso tempo, como endemoninhados da Idade Média corriam ao sabbat, nos desfiladeiros sinistros. No estado de abatimento moral em que ela se achava, seria arriscado perturbar-lhe a razão com práticas nigromânticas.
            As minhas ordens, dadas em tom severo, foram obedecidas. Júlia passava os dias no quarto, que fora da pequena, e de fora ouvíamo-la falar, rir, contar histórias de fadas, exatamente como fazia durante a vida da criança.
            Tais ilusões dolorosas eram bálsamos que mitigavam o sofrimento da alma, como a morfina alivia as dores. Cessada a ilusão, o desespero irrompia mais acerbo.
            Uma noite, minha mulher entrou-me pelo escritório, lavada em lágrimas, e disse-me,
abraçando-se comigo, que a filha enlouquecera.
            – Por quê?! perguntei.
            – Está lá embaixo, ao telefone, falando com Ester.
            – Que Ester?
            – A filha…
            Encarei-a demoradamente, certo que a louca era ela, não Júlia.
            Como se compreendesse o meu pensamento, ela insistiu:
            – Lá está. Se queres convencer-te, vem até a escada. Poderás ouvi-la.
            Fui. Como sabes, tenho dois aparelhos: um no “hall”, outro, em extensão, no meu escritório.
            Ficamos os dois, minha mulher e eu, junto à balaustrada do primeiro andar.
            Júlia falava baixo, no escuro.
            Por mais esforço que fizéssemos, não conseguíamos ouvir uma palavra. Era um sussurro meigo, cortado de risinhos. O que me pareceu (por que não dizê-lo?) foi que a conversa era de amor.
             Tive ímpetos de violar o segredo de minha filha, mas o escrúpulo do meu cavalheirismo conteve-me.
            – Por que dizes que ela fala com Ester? perguntei à minha mulher.
            – Por quê? Porque ela mesmo me confessou e não imaginas com que alegria!
            Fiquei estatelado, sem compreender o que ouvia. De repente, numa decisão, entrei no escritório, desmontei lentamente o fone do aparelho, apliquei-o ao ouvido e ouvi.
            Ouvi, meu amigo. Ouvi minha neta. Reconheci-lhe a voz, a doce voz, que era a música da minha casa… Mas não foi a voz que me impressionou, que me fez sorrir e chorar, senão o que ela dizia.
            Ainda que eu duvidasse, com toda a minha incredulidade, havia de convencer-me, tais eram as referências, as alusões que a pequenina voz do Além fazia a fatos, incidentes da vida que conosco vivera o corpo do qual ela fora o som…
            Mistificação? E que mistificador seria esse que conhecia episódios ignorados de nós mesmos, passados na mais estreita intimidade entre mãe e filha? Não! Era ela, a minha neta, ou antes, a sua alma visitadora que se comunicava daquele modo com o coração materno, levantando-o da dor em que jazia para consolação suprema.
            Ouvi toda a conversa e compreendi que nos estamos aproximando da grande era; que os tempos se atraem – o finito defronta o infinito, e das fronteiras que os separam, as almas já se comunicam. E eis como me converti, eis porque te disse que a minha estrada de Damasco foi o escritório onde, se não fui deslumbrado pelo fogo celestial, ouvi a voz do céu, a voz do Além, da outra Vida, do mundo da Perfeição…
            – Ouviste-a ao telefone… E por que não a ouves no ar, como a ouviu… São Paulo, por exemplo?
            – Por quê? Porque o espírito precisa de um meio em que se demonstre. Para viver conosco, encarna-se. O próprio Espírito de Jesus encarnou-se. O lume precisa de um combustível para arder e o lume é luz, eternidade: o som precisa de um órgão para vibrar. Todo o imaterial carece de um veículo para agir.
            – Uma pergunta, apenas: – Como consegue Dona Júlia pôr-se em comunicação com o espírito da filha? Não me consta que a “Companhia Telefônica” tenha ligação com o Além.
            – Respondo-te. Quando Júlia – disse-me ela própria – deseja comunicar-se com a filha, invoca-a, chama-a com o coração, ou melhor: com o amor, e ouve-lhe imediatamente a voz. Falam-se, entretêm-se, continuam a vida espiritual. A que está lá em cima é feliz na bem-aventurança, e a que ficou na orfandade já não sofre, como dantes sofria, porque o que era esperança tornou-se certeza…
            – Certeza de quê?
            – De uma vida melhor e maior, de vida puramente espiritual, como a claridade, vida sem dores, sem os tormentos próprios da carne, que não é mais do que um cadinho em que nos depuramos em sofrimento para alcançarmos a Perfeição.”
            FONTE: Revista Espírita Allan Kardec, ano XII, nº 44 
            (Jornal Mundo Espírita de Março de 2001)”

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Verdade



Verdade
por Viriato Passalaqua
Reformador (FEB) Janeiro 1920

            Tu és a Luz bendita que destrói o erro, nos ilumina o Espírito e nos afirmas a existência de um Pai de infinita misericórdia; és o Sol que um eclipse pode escurecer, mas não aniquilar, és simples e luminosa.

            Tu és a estrela que nos guia para o seio do ETERNO; és uma Imperatriz, que tens no Céu um trono eterno e a sede do teu império é o seio de DEUS; és a protetora carinhosa, desvelada e meiga, da inocência, que sucumbiria se o teu amor lhe faltasse.

            Serves de guia ao Justo, sempre que se inspira no amor sublime e paternal que nos dispensa o Altíssimo Criador de todas as coisas; e és filha dileta do Supremo Arquiteto do Universo.

            És o anjo caridoso que salvas o inocente das acusações torpes, que os seus detratores lhe assacam, e és o doce lenitivo do caluniado.

            És a flor mimosa que levas no humilde tugúrio (casebre) do pobre, a suave fragrância que se deriva da Caridade Divina, dando no mísero que aí vive a certeza da infinita Bondade do PAI; és o providencial oásis no imenso deserto da vida; és o arroio cristalino que mitiga a sede daquele a quem a justiça humana ofende.

            És o pão da vida e sacias o que se sente ávido de Justiça; és a consolação do aflito, e a esperança do que se vê desamparado devido a maldade humana.

            Tu és o Sol que desponta no horizonte do ser humano que tem vivido imerso nas trevas.

            És uma emanação divina, tão benéfica, que de ti se deriva a felicidade do homem que, pelo erro, se julga irremediavelmente perdido; e, és uma manifestação sublime da Vontade do Onipotente Senhor do Universo.

            Tu resides pura e absolutamente somente em DEUS, NOSSO PAI amantíssimo, porque Ele é a própria VERDADE e, és a coroa e cetro entretecidos das mimosas e fragrantes flores cultivadas pelo Amor, pela Caridade, pela Esperança, pela Fé, pela Justiça, pelo Perdão, pela Humildade, símbolos de Majestade do PAI Celestial.

            Sê bendita pelos que sofrem por amor de ti, e benvinda sobre a humanidade que de ti não duvida, e vê em ti a mais sublime manifestação do infinito Amor que o PAI celestial nos vota, por sermos seus Filhos, Amor e Verdade cheios da Luz benéfica, que vivifica, que redime, que nos resgata do nosso passado triste, e nos conduz à estrada brilhante da regeneração, pela qual seguiremos no encontro da máxima perfeição, que nos aguarda, a par da felicidade que conquistaremos pelo nosso esforço dirigido pela Fé no Divino Mestre, para a glória do Pai.  

            E, como CRISTO JESUS foi quem nos trouxe o conhecimento perfeito das sublimes e divinas Verdades eis que o apóstolo S. João nos diz na sua primeira Epístola, Cáp. v. v. 6 e 12: Este é o Espírito que veio lavar com água e sangue, JESUS CRISTO; não com água somente, mas com água e sangue. E o Espírito é o que dá testemunho que CRISTO é a mesma Verdade, “Porque três são os que dão testemunho no Céu 0 PAI, o VERBO E O ESPÍRITO SANTO; e estes três são um só.” E três são os que dão testemunho na Terra: o Espírito, a Água e o sangue; e estes três são um só.” “Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de DEUS é maior, é o que ELE deu do seu FILHO.” “Aquele que crê no Filho de DEUS tem em si o testemunho de DEUS. O que não crê no Filho, faz mentiroso a DEUS, porque não crê no testemunho que tem dado de seu Filho.” Este é o testemunho de que DEUS nos deu a vida eterna. Esta vida, porém, está em seu Filho; quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho não tem a vida...”

            CRISTO veio pela água, pelo batismo público no Jordão, não porque necessitasse desse meio para se purificar, porque tinha o Espírito sublimemente puro de toda a mancha, ao passo que nós o temos enlameado pelo peso das nossas iniquidades; mas, veio assim porque para pregar pelo exemplo na sua altíssima missão, era preciso que fosse consagrada a sua origem por esse batismo recebido aos olhos de todos, e para que esses ouvissem as vozes divinas proclamarem a sua santidade pelas palavras que uma voz do Céu disse: - “Este é o meu Filho bem amado, em, quem tenho posto todas as minhas complacências” ; e, assim, ficou consagrada a sua origem, e o poder da sua missão como Regenerador e Salvador da Humanidade, encarregado de a dirigir e conduzir à perfeição.

            CRISTO, veio pelo sangue, porque, o seu sacrifício cruento no alto do Gólgota, dominando a coroa dos Césares deu testemunho do PAI, glorificando-O, para regenerar a Humanidade.

            Sigamos pois a CRISTO JESUS, pondo em prática os seus exemplos sublimes, baseados no Amor, na Caridade, na Justiça e na Verdade de que ELE próprio deu edificantes testemunhos, que ninguém poderá contestar.

            Amemos o PAI celestial, e assim amaremos e praticaremos a VERDADE.

            Amemos a CRISTO JESUS, e n'ELE amaremos a sublime VERDADE, que coisa alguma poderá destruir.

            Amemos a VERDADE, pela própria VERDADE, em si mesma, nua e crua, e isenta de enfeites, conserve-mo-la em nossos corações, e seremos o mais vivo e edificante exemplo de lealdade, da fidelidade, da humildade e do amor.

            E amando o PAI, amando a CRISTO JESUS, amando a VERDADE e crendo no testemunho que DEUS, a mais absoluta, perfeita e infinita VERDADE, por seu FILHO nos deu, alcançaremos a Vida Eterna, cuja está em CRIST0 JESUS, Filho do Eterno, do PAI Celestial.

            E como cada um de nós participa da divindade porque, cada um ser humano, é formado com uma centelha divina, por ser Filho de DEUS, - razão da sua imortalidade, - tem, portanto, em si próprio, o sentimento inato da verdade; resta pois que a procure em si próprio, que a achará pura, como puro é tudo o que provém de DEUS.

O Orgulho



O orgulho
por Brant Horta
Reformador (FEB) Janeiro 1920

            O orgulho é a manifestação mais ridícula da ignorância, como é a revelação mais perigosa do pecado.

            É o egoísmo mais triste e a cupidez mais louca querendo, nas asas do Ícaro, vencer os segredos dos céus e subir mais alto que Deus.

            É uma espécie de miragem nas trevas, que faz ver reflexos de auroras onde não há senão clarões de fogos-fátuos.

            É o inimigo mais cruel da caridade, porque conduz consigo o Desprezo, a Inveja, a Hostilidade, os Ódios, a Vingança, a Astúcia, o Embuste, a Desumanidade, a Crueldade, e onde estão estes males, está o amor de si próprio, que é o menosprezo de Deus, por conseguinte a negação do Bem.

            É a mais terrível das embriaguezes, porque é a embriaguez do espírito; é a mais triste das cegueiras, porque é a cegueira da alma.

            Assim com o Bem erigiu o seu pedestal na humildade, o Mal assentou o seu trono no orgulho.

            Quem vive no orgulho, vive trancado numa esfera de sombra onde nada mais vê que o seu próprio eu, e onde Deus mesmo não é mais que o reflexo da sua entidade.

            O inferno surgiu da rebeldia que tentou sobrepor-se a Deus.

            Esta revolta nasce da ânsia gulosa de primazia.

            E este desespero devorador de prioridade teve origem no orgulho que embriagou espíritos luminosos, atirando-os na cegueira eterna.

            Quem vive no orgulho não pode viver a vida do Céu, subir ao Senhor, amar o próximo, compreender a Verdade, saborear o Bem, ter a percepção da beatitude, porque quem está no Orgulho não se regenerou e quem não se regenerou não pode entrar no Reino de Deus.

            Se fosse possível partir-se no Inferno o cetro de Satanás - o Orgulho - os anjos rebeldes poderiam voltar ao seio do Senhor, porque estariam curados da cegueira eterna.

A Miséria


A Miséria
por Augusto  José da Silva
Reformador (FEB) Janeiro 1920

            Nenhum poder humano valerá para extinguir a miséria, porque ela é o resultado da opulência e do fausto. Insensato seria quem tentasse apagar as cores conservando a luz, e não menos quem se propusesse acabar os vegetais espalhando sementes pelo solo.

            Farta sementeira de mendigos são os ricos!

            Serão desprezados porque desprezam, padecerão fome porque não abrem o coração às misérias da existência, passarão vexações porque não temem amargurar seus irmãos!

            Lá fulge no Evangelho a divina verdade, trazida a este planeta pelo Emissário de Deus - verdade mais tremenda que a sentença lavrada na parede do paço de Baltazar:

            “É mais fácil passar um cabo pelo fundo de uma agulha do que um rico se salvar .”

            Sim: sem voltar para ser um pobre, sem primeiro trocar pelo mandato adamantino da humildade os andrajos da soberba, sem abater abaixo dos que ele maltratou, sem estender mão súplice aos que espezinhou, certo não vingará soltar-se deste cárcere e alar-se às mansões fulgidas onde reinam a caridade e o Amor.

            Imagina-se no Evangelho um banquete onde se intromete uma personagem estranha. Descoberta entre convivas o anfitrião intima-lhe pronta saída, porque não estava com vestes nupciais.

            Esta personagem serei eu e serás tu, leitor, ei, depois da morte nos apresentarmos com os andrajos dos vícios: voltaremos às existências obscuras e trabalhosas, onde nos depuremos de nossas misérias.

            E se nos sondarmos, bendiremos Justiça Suma: pois iríamos ser anarquistas, viciosos e ladrões naquela sociedade de justos.

            Os mundos afortunados, esses mundos onde estanceiam as humanidades adiantadas, havemos de os conquistar, não por meio de superstições e bruxarias, ou pelas rabulices (imposturas) dos Santos perante o Altíssimo; lá chegaremos apoiados nas duas asas que se chamam: Virtude e Ciência.

É preciso que isso mude



É preciso que isto mude
por Guerra Junqueiro
Reformador (FEB) Janeiro 1920

            Vai tudo pessimamente; as coisas não podem continuar assim. É preciso que isto mude!  

            Eis o grito que se ouve de todos os lados!

            “É preciso que isto mude!” - dizem os operários - “o capitalista explora-nos, e
morremos de fome.”

            “É preciso que isto mude! - dizem os capitalistas- “o nosso dinheiro já não rende juros, os encargos vão aumentando todos os dias”.

            “É preciso que isto mude!” - geme a pobre esposa, que carrega sozinha com o peso da casa, ao passo que o marido perde nas tabernas e no jogo o seu tempo e o seu dinheiro.

            “É preciso que isto mude!” - Neste ponto estão todos de acordo: operários e patrões, pobres e ricos, sábios e ignorantes, crentes e ateus, pais e filhos, todos são do mesmo parecer, e tem razão, pois, com efeito - "É preciso que isto mude”.- Mas isto que se deve mudar exige corretivo dos culpados. Quais são eles?

            Aqui é que já não há unanimidade.

            Os culpados são os ricos! Exclamam uns.

            A culpa tem-na o governo, dizem outros.

            A culpa tem-na os maridos!

            A culpa tem-na as mulheres!

            A culpa tem-na as tabernas!

            A culpa tem-na...

            Cada qual atira com a culpa para aqueles que o estorvam, enquanto uns e outros se dirigem acusações, agravando o estado das coisas.

            Queixam-se das falta de dinheiro, e todos continuam a fumar, beber, comprar bilhetes de loterias jogar no bicho e frequentar o cinema... Doem-se de ver que a vida  doméstica se vai perdendo dia a dia, e estão sempre fora de casa... Criticam o preço do fato e não se resolvem a trajar-se mais modestamente... Censuram a frequência de festas e espetáculos, e todos concorrem a eles.. Choram a corrupção da mocidade e trabalham de mil modos para a corromperem com os seus péssimos exemplos, torpes palavras, indecentes fitas, pervertedores livros, e prejudiciais instituições, que só tendem a destruir a moralidade e... Dizem com tristeza que já não há honradez nos negócios e enganam os seus fregueses.

            Sim, é preciso que isto mude!

            Sabeis o que é preciso mudar? Não é o exterior, mas sim o interior.

            Não é a ordem social mas sim o homem.

            Não é o mundo, nem os outros: SOU EU, SOIS VÓS, quem deve mudar.

            Não é a posição nem a família mas sim o coração.

            Era esta mesma a opinião de um pacífico habitante de uma pequena cidade numa época de grande efervescência política.

            Um homem, encontrando-se com ele na rua, disse-lhe num tom brusco:

            - O Senhor é radical?

            - É claro que sou, meu caro amigo.

            - Deixe-me, portanto, apertar-lhe a mão. O senhor é cá dos bons.

            - Espera, respondeu o outro: permita-me que lhe explique o meu pensamento. É necessário que tenha lugar uma reforma radical, porque os nossos corações estão radicalmente corrompidos. Não há tempo a perder, o temos obrigação de dar início a esta desordem. Se todos nos imitarem, todos ficarão satisfeitos e acabarão para sempre os queixumes. Mas, sem esta nossa reforma individual serão inúteis todas as demais, pois não se conseguirá com elas arrancar as raízes do mal.

            Estou quase em dizer que tem razão, disse o outro, admirado desta resposta e, cumprimentando cortêsmente, afastou-se.

            A regeneração do homem por meio do Evangelho é a única base possível da regeneração social, e a única fonte de felicidade para os indivíduos, a família e a sociedade. Sendo o que somos, maus, incapazes de nos reformarmos a nós mesmos, como poderemos mudar os outros?

            Comecemos por pedir a Deus que transforme os nossos corações, que opere em nós aquela gloriosa mudança que se chama regeneração, depois do que, então, poderemos trabalhar para a salvação dos demais homens.

            Todo o bem que o cristianismo tem trazido ao mundo procede da santidade pessoal de Jesus. Ele foi aquilo que queria que queria que fossemos; é deste modo que tem podido exercer sobre os homens a sua portentosa influência.

            A cada um de nós compete, com a ajuda de Deus, fazer o mesmo.

A criança e a escola


A Criança e a Escola
por Guerra Junqueiro
Reformador (FEB) Janeiro 1920

            Eu sinto uma tristeza imensa quando vejo as grades de uma cadeia ou as portas de uma escola má.

            Dois cárceres.  Um é corolário do outro: a ignorância produz o crime, a má escola produz a cadeia.

            Os povos têm um coração: é a escola. Escola boa, boa saúde.

            Matusalém estuda o alfabeto. Se não fosse triste, seria ridículo.

            Trabalhemos. Alongar a escola é diminuir o cárcere. Quereis garantir o direito, a paz,  a civilização? Prendei o espírito na jaula da Verdade.

            Quereis suprimir o cárcere? Metei dentro a escola.

            À noite iluminam-se as ruas por causa dos ladrões.

            Quereis segurança? Acendei os espíritos e apagai os candeeiros.

            Menos enxovias (cárceres) mais argumentos!

            É para as almas delicadas um quadro doloroso ver as crianças durante seis horas na  escola, sentadas, imbecis.

            A criança, cujo organismo físico e moral requer imperiosamente a agitação cujo sangue é áspero, vivaz, inquieto, petulante; a criança que é toda feita de alegria viva, de movimento rápido, de vibrações aladas, não pode estar um dia inteiro estupidamente constrangida numa posição bestial e monástica.

            Pobres flores! Dobram-lhe as espinhas sobre um livro árido, seco, abstrato, amolecem-nas com o repouso forçado, e quando sonolentas e cansadas, levantam a vista do livro, que não entendem, para espreitarem pela janela uma nesga do céu, encontram diante de seu olhar humedecido o terno, o olhar dogmático de um professor pedante.

            Vamos! Deixai que corram as crianças!

            Saturai-as de luz. Equilibrai-lhes o sistema nervoso. Dai-lhes força, movimento, harmonia e liberdade.

            Uma criança é uma avezinha.  

            Quereis modelar a escola?

            Não copieis o claustro, imitai o ninho.

            É por isso que as crianças quando saem da aula tem uma alegria vibrante, radiosa, alucinada; gritam, soltam, trepam as árvores, roubam os ninhos, apedrejam os cães, correm, desaparecem, voam como pássaro que fugiu da gaiola.

            Voam, sim, a alegria tem asas. É a natureza que protesta.

            A natureza! Palavra santa.

            É o berço do mundo. Fora dela não há ciência nem religião.

            Quando o homem a desprezou fez-se a noite da história- a idade média.

            A luz tornou-se penumbra, o pensamento sonho.

            Foi o eclipse da alma, entre ela e Deus levantou-se o terror, fechou-se o espírito e abriu-se o claustro!