Pesquisar este blog

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

8a. 'À Luz da Razão' por Fran Muniz



8a
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924



            Citemos ainda, como simples curiosidade, outra demonstração da falta de fé e da pouca importância ligada às orações pelo sistema católico romano.

            O fato, a seguir, passou-se em véspera de Carnaval. Realizava-se em certo lugarejo uma batalha de confetes e nesse mesmo dia a igreja local celebrava a festa do seu padroeiro; chamemos a esta igreja o nome suposto de –“Senhor Bom Jesus do Morro”, porque não corra o risco de ser repreendido por sua Eminência, o respectivo vigário.

            O povo, folião como o é o nosso, divertia-se, em ampla liberdade, ora nos folguedos de Momo, ora nos atrativos da festa da igreja, em frente da qual se lia num grande cartaz anunciativo, o nome do padroeiro:

            Hoje - Festa do “Senhor Bom Jesus do Morro” e da “Boa Imprensa”.

            A multidão, na sua maioria, de cabelos empoados, rostos coloridos, roupas e laços espalhafatosos, espremia-se entre chufas e risolas, no adro da igreja onde, num coreto, a música assinalava as vendas do leilão de prendas e o comércio das barraquinhas.

            Em dado momento, porém, a massa começou a invadir a igreja em atropelos e correrias. Era o Te-Deum que se celebrava em pleno templo repleto de fantasiados.

            E, enquanto lá dentro se solenizava essa oração semi carnavalesca, um vendedor ambulante apregoava lança-perfumes na porta da casa de Deus.

            É risível, não é verdade?

            Pois é a isso que está reduzida a religião romana.

            A nós outros, contudo, nada disso surpreende no catolicismo, porque conhecemos fatos muito mais graves e quase inacreditáveis. O que nos admira, porém, é a audácia daquele vendedor de artigos de carnaval fazer o seu negócio à porta do estabelecimento dos outros...

            Esse episódio, apesar das reservas de que se cobre, não poderá ser susceptível de dúvidas. Foi assistido por cerca de duas mil testemunhas.

            Depois, temos coisas idênticas, mais publicamente ostentadas:

            Quem não conhecerá, num subúrbio da Capital, o célebre “Mafuá” do padre J..?

            Pois, em pleno Carnaval de 1919, foi visto, por muitos milhares de pessoas, um padre de batina e tudo, regendo a banda de música num coreto daquele chamariz.

            E o mais extraordinário é que, um outro padre a quem se fez sentir tal rebaixamento da religião, respondeu:

            “- Nada de mal há nisso. O padre não estava se divertindo, nem era carnavalesco, mas sim cooperava na obtenção de auxílios para a construção a uma nova igreja”.

            Assim, pois, tudo serve de objetivo de uma classe que não treme de procurar, até no deboche e na orgia, o auxílio monetário para o custeio da religião.

            Mas, confiemos isso ao critério das boas consciências e reatemos o nosso exame às missas.

            A conclusão verificada neste dogma é que o padre ora por obrigação de cumprir o que ensina o missal e os fiéis oram para satisfazer o uso ensinado pelo padre; ambos, porém, fazem da oração um ajuntamento de palavras que partem dos lábios sem passarem no coração. Mas como repetem a fórmula, um certo número de vezes, julgam-se quites com o compromisso para com Deus.

            Esta incoerência bem define a falta de convicção observada entre os seus adeptos; daí o tédio que se vai apoderando deles, começando pela redução das visitas à igreja, no que, aliás, fazem muito melhor.        

            É já bastante comum, por exemplo, ouvir dizer, mormente as senhoras:
           
            Hoje acordei tão indisposta, tão aborrecida ... e não tendo que fazer, fui à missa.

            Ou então:

            Ora, hoje não fui à missa: Acordei tão indisposta..., tão aborrecida...

            Por sua vez, concorrem grandemente para a destruição da fé, os símbolos e contra sensos com que são mimoseados diariamente os visitantes para desfastio.

            A missa mesma, por si só, é um perfeito arsenal de símbolos.

            Os católicos devem conhecer perfeitamente todos os passos e circunstâncias referentes à paixão do Nazareno e que são simbolizados na missa, por isso abstemo-nos de especificá-los. Trataremos somente do que representa a ascensão do Mestre ao seio do Onipotente.

            Na missa, a subida majestosa do Mestre dos mestres, é simbolizada na elevação da hóstia, com a diferença, porém, de que, aí, o Cristo em forma de biscoito, em vez de subir ao Céu, desce para as imundas vias gástricas do sacerdote.

            Sinceros e profundos pesares aos católicos que concordarem com esse gravíssimo desrespeito ao seu Deus.

            Na verdade, a fé não pode persistir numa religião que está em plena decadência, devido à falta de conhecimentos dos seus chefes e isso originou também em seus súditos a falta de noção do valor e da sublimidade da prece.

            E o resultado é rezarem, sem consciência, como um gramofone que repete palavras gravadas no disco.

            A prece, no entanto, não é nada disso. A prece é uma corrente fluídica que, partindo do pensamento, pelo impulso do coração, atravessa o espaço universal em direção a Deus ou aos espíritos, a quem nos queiramos dirigir. É como o som transmitido pelo ar.

            Mas, para se conseguir a realidade da prece, são necessárias a perfeita concentração do espírito, a vontade inabalável e a pureza de coração.

            E não é o que se obtém nas missas, entre a preocupação da pragmática simbólica, a disparidade da fé e de sentimentos, o murmúrio dos sinos, das cantilenas e dos órgãos.

            Urge, pois, a humanidade compreender que a verdadeira oração consiste em cada qual procurar se elevar a Deus pelo único veículo que é o coração.

            Destarte, será cassada para sempre, a procuração dos intermediários, devolvendo-se ao mesmo tempo à igreja o que a ela, exclusivamente pertence: - Orgulho e ambição.

            E há de ser assim, pois vemos no Evangelho a profecia de “estar próximo o tempo em que Deus não seria mais adorado nos montes nem nos templos, porque Deus é Espírito e Verdade e em espírito e verdade quer ser adorado.”

            Desta predição, há muito se vai sentindo a realidade com o despontar dos raios benditos e fulgurantes por novos horizontes.

            E, à proporção que esse ditoso “tempo” vem avançando para a felicidade humana, a doutrina interesseira vai recuando para o -nada- de onde saiu.

            Como prêmio aos seus serviços, daqui a alguns séculos, certamente, a posteridade sorrirá penalizada ao saber ter existido uma religião que pretendeu subornar Deus, vendendo a salvação do próximo, quando, nem sequer dessa vantagem podia dispor em proveito próprio.





Como Deus falou aos homens


Como Deus falou aos homens

            Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, antigamente, aos nossos pais pelos profetas; nestes últimos dias, porém, falou-nos por meio de seu Filho, a quem constituiu herdeiro do universo e pelo qual também criou o mundo. É ele o esplendor de sua glória e a imagem do seu Ser; sustenta o universo com a sua palavra onipotente. Depois de conceder resgate dos pecados, sentou-se à direita da majestade nas alturas. Tão superior é ele aos anjos quanto o nome que herdou excede o deles.  (Hb, 1, 1 ss)



            Ante os olhos do homem desdobrou Deus a obra-prima da Natureza – livro de figuras para os principiantes na escola do espírito.

            Depois, enviou Deus os seus arautos por ele inspirados, a fim de interpretar as figuras magníficas do livro da Natureza.
           
            E, por fim, apareceu no cenário da história o próprio Filho de Deus, para dizer aos mortais que o poderoso e inteligente autor da Natureza é também pai de infinita bondade e amor – Pai nosso que está no céu...
           
            Nesse tríplice curso – a Natureza, a lei de Moisés e o Evangelho de Cristo – pode o homem formar-se na ciência da Divindade.
           
            Inexcusável és, pois, ó analfabeto de Deus!
           
            Ateu – analfabeto do espírito...
           
            Pecador – analfabeto do coração...

                                                          
        
Huberto Rohden
in “Em Espírito e Verdade”
Edição da Revista dos Tribunais, SP – 1941  



Somos devedores porque possuidores



 Somos devedores –
 porque possuidores


         Sou devedor a gregos e bárbaros, a sábios e ignorantes. Da minha parte, estou pronto para anunciar o Evangelho também a vós, em Roma.
            Pois não me envergonho do Evangelho, porque é virtude divina para dar salvação a todo o homem que crê, em primeiro lugar para o judeu, mas também para o gentio. Pois nele se patenteia que Deus justifica pela fé e para a fé, conforme está escrito: “O justo vive da fé.”   (Rom 1, 14 ss)



 
            Homem, que te julgas proprietário da fortuna que possuis!...
           
            Homem, que te dizes dono da ciência que adquiriste!...
           
            Homem, que te arvoras em possuidor das graças que recebeste!...
           
            Oh! Como vives iludido, pobre homem!...
           
            Não és dono de coisa alguma – és apenas depositário, administrador...
           
            O único dono e proprietário é Deus.
           
            Foste por Ele encarregado de administrar, por alguns anos, os cabedais da inteligência, da graça, em benefício teu e em benefício de teus semelhantes.
           
            “Amarás o teu próximo como a ti mesmo...”
           
            És depositário de grandes riquezas? De um vasto saber? De grandes favores divinos?
           
            Pois, sabe, ó homem, que de tudo isto és devedor, não somente a Deus, mas também ao próximo -- devedor a “gregos e bárbaros, devedor a sábios e ignorantes.”
           
            O Evangelho é anticomunista e anticapitalista. Toda a propriedade tem função social.
           
Todos nós somos devedores do próximo, e tanto mais devedores quanto mais possuidores de bens materiais e espirituais...

                                                       

Huberto Rohden
in “Em Espírito e Verdade”
Edição da Revista dos Tribunais, SP – 1941  


terça-feira, 27 de novembro de 2012

8. 'À Luz da Razão' por Fran Muniz


8
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


A MISSA

            No interesse... (digamos o termo próprio)- mercantil -, de que lançou mão a igreja a tantos meios para aumentar sua propaganda religiosa, nem mesmo se salvou a solenidade da oração. No entanto, basta abrir o Evangelho e ler esta advertência do Mestre.

            “Quando orares, não sejas como os hipócritas que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos dos homens; mas entra no teu aposento e fechada a porta, ora a teu Pai em secreto; e teu Pai que vê o que se passa em secreto, te dará a paga. E não fales muito como os gentios, pois cuidam que serão ouvidos pelo muito falar, porque o Pai sabe o que te é necessário, antes que Ihe peças.”

            Para as boas inteligências isto patenteia claramente a inutilidade das preces longas e sonoras, celebradas em horas aprazadas e impróprias.

            A igreja, porém, sufocando mais esse raciocínio, acha que Jesus errou; que não soube o que disse; que a prece deve ter ostentação, ser celebrada a horas certas e prolongar-se, nunca menos de trinta a quarenta minutos; que feita pelo próprio não tem valor; e quando, elevada a Deus num aposento, a portas fechadas, não é também bastante. Por isso, resolveu, por deliberação dos Concílios, adaptá-la a seu comodismo, fazendo dela, ao mesmo tempo, uma fonte de renda.

            Chamam a isso – missa - e só deve ser celebrada por procuração, num templo vistoso, ornamentado com ídolos multiformes e de todos os matizes.

            Os celebrantes devem estar vestidos a caráter, para o ato que deve ser tanto mais espalhafatoso e tonitruante, quanto mais alto for o preço do ajuste. Aí, então, será a missa realizada no altar mor e relativamente acompanhada de badalar de sinos, músicas vocal e instrumental, grande profusão de velas acesas, acólitos de categoria elevada, etc.

            Quanto às missas baratas, essas são ditas nos altares laterais, sem aparatos nem entusiasmo, talvez por serem os respectivos santos aí, menos milagrosos, ou porque a alma dos pobretões não mereça os cuidados que é preciso dispensar a todos que podem pagar o luxo das orações.

            Assim sendo, a entrada no céu é para quem mais der.

            Como quer que seja, é mais uma desobediência ao Cristo, praticada pelos seus próprios representantes e ao mesmo tempo a persuasão levada aos incautos de se considerarem desobrigados de orar à Deus, por si e pelos seus entes queridos, cuja salvação julgam comprar ao Criador, por intermédio dos seus ministros.

            No entanto Jesus disse, referindo-se às fingidas orações introduzidas pelos hipócritas que torciam o sentido da lei:

            “Guardai-vos dos escribas que fazem todas as suas obras para serem vistos dos homens; por isso, trazem suas compridas túnicas, grandes franjas e gostam de andar de roupas largas; ter nos banquetes o primeiro lugar; que os saúdem na praça e que lhes chamem mestres. São homens de rapina e corrupção que a pretexto de largas orações, devoram as casas das viúvas e os bens dos órfãos.”

            Esta prevenção com os que andam de compridas túnicas, roupas largas... Enfim, Cristo falava dos escribas e fariseus.

             Além disso, ninguém pretenderá que a igreja tivesse pago a Cristo a autoridade que assevera ter dele recebido para salvar as almas, porque eIe mesmo recomendou:

            “Dai de graça o que de graça recebestes.” Como, pois, exige ele o pagamento da salvação?

            É que o Concílio procurou acomodar a seu jeito aquele princípio, a fim de auferir lucros com a prática da caridade remunerada, pois acha que - de graça só vive a igreja.

            Jesus demonstrou que “fora da caridade não há salvação», avisando, contudo, que a prática desta virtude, só é considerada perfeita, quando “não saiba a mão esquerda o que dá a direita”.

            A igreja pratica, justamente, o contrário, porque embolsa com a direita o pagamento do pretenso benefício feito com a esquerda.

            Quando Jesus expulsou os mercadores que faziam do templo um covil de ladrões, condenou, implicitamente, o tráfico, das coisas santas, sob qualquer forma que fosse. Ora, se Deus não vende a sua bênção, nem o seu perdão, nem a entrada no seu reino, será admissível que o homem tenha o direito de as fazer remunerar?


            A igreja admite isso e ainda em seu beneficio estabelece a repetição de inúmeras orações como único meio de tentar o Criador a recolher as almas que ele talvez houvesse resolvido abandonar.

            Ora, se para a salvação da alma, Deus só aceite muitas orações, há falta de caridade dos padres para com aqueles por quem se dizem poucas ou nenhuma, por não poderem pagar; se, ao contrário, a quantidade é desnecessária, há extorsão em receber pagamento do supérfluo, que se torna inútil.

            Se Deus subordinasse sua clemência ao dinheiro é lógico que anularia a sua justiça para com aqueles que não pudessem pagá-la.

            Não! Deus que é a Perfeição absoluta, não podia delegar a criaturas imperfeitas o direito de vender a sua misericórdia!

            Ela é como o sol: irradia tanto para o rico como para o pobre desde que seja pedida de coração. Não queiram vender a graça do Soberano do Universo quando se considera imoral vender a dos soberanos da terra!

            Mas deixemos esse lado mercantil e estudemos o positivo valor das missas e suas consequências:

            Determinadas, como são, as primeiras horas matutinas para as orações ao Senhor, o que é uma condição imposta para se pensar nele, as fieis católicas são chamadas pela “voz de Deus”.

            Não riam nem zombem os incrédulos: “voz de Deus”, segundo a opinião dos servos do papa, é o som dos sinos.

            Nestes momentos em que, justamente, as boas esposas ou governantes, mais necessitam de atender aos principais afazeres da casa, é precisamente quando são compelidas pela igreja a orar e ouvir a missa, o que fazem com os olhos fitos no padre e o pensamento no lar que deixaram abandonado.

            De modo que, apesar de bem intencionadas que sejam, estas crentes nem servem a Deus nem à família.

            Este raciocínio, porém, ainda não teve guarida no pensamento da turba ilaqueada.

            A preocupação primordial é ir à missa porque ir à missa é ‘chic’. Pouco importa o elemento heterogêneo que aí se reúne para as orações.

            Todavia, como nos apraz auxiliar o esclarecimento do nosso semelhante, tentemos uma revista no labirinto do templo. à hora da missa e examinemo-lo com sincera imparcialidade:

            Que vemos aí?

            Aqui um personagem de destaque social, genuflexo sobre uma almofada de seda, demonstrando não só o luxo e a vaidade perante Deus mas ainda que a oração para Ele não vale o sacrifício da comodidade do crente.

            Junto a este, um agiota rezador de rosários, que empresta aos necessitados, a vinte e trinta por cento e um católico que, nadando na abundância, repele os que não têm um pão para matar a fome.

            Ali, um fervoroso beato que bate no peito e vive a desmoralizar a família do vizinho e acolá um que faz o “sinal da cruz” com o punhal na cava do colete.

            Mais além, um que acabou de “tomar” água benta e está pronto para assassinar o primeiro que lhe ganhar o dinheiro no jogo.

            Deste lado, uma senhora que se confessou e distribui carícias a seu predileto, enquanto o marido moureja, amargamente, o dinheiro para lhe sustentar a vaidade.

            Mais adiante, namorados que se entreolham: outros que criticam as toaletes e os hábitos do próximo e os demais preocupados em fazer notar seus brilhantes ou a madrepérola da capa do breviário.

            Olhemos agora para cima: Lá estão as tribunas repletas de assistentes. São os membros da irmandade e convidados íntimos que, para se destacarem da plebe comum, colocam-se mais alto que o próprio Deus, visto que o altar lhes fica em plano inferior.

            E, como compensação e estímulo a tudo isso, o padre, no fim da missa,  volta-se e abençoa a multidão. 


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

7. 'À Luz da Razão' por Fran Muniz


7
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


O PADRE


            Segundo afirmativa do Catolicismo a sua “Ordem” dá ministros à igreja, a quem Deus conferiu os poderes de converter a hóstia no corpo de Cristo e perdoar os pecados, quando lhes aprouver.

            Isto foi exarado na escritura católica e propalado na época medieval, cujas inteligências aceitavam o disparate dos homens escolherem entre si os que deviam receber de Deus a autoridade e o poder dos seus atributos.

            Estribada nesta presunção, a seita romana, vem atravessando os séculos, sem que ninguém procure esmerilhar a razão de serem concedidas a seus ministros as prerrogativas divinas. E, quando se pede a um católico uma explicação sensata desse e de outros erros, não raro é ouvi-lo dizer, entre a espada e a parede: - Ora, quando eu nasci, foi essa a religião que encontrei...

            Com isso, fica o argumento encerrado e a igreja continua a se manter cercada de um tal ambiente retrógrado, sem fé, sem raciocínio e sem convicção.

            Esse desapego à investigação, deu causa a que o sacerdote fosse considerado um ente com o privilégio da parcialidade celeste. Daí, a confiança ilimitada que lhe dedicam os que vão até ao desvario de levar ao conhecimento do seu vigário, todos os atos praticados ou a praticar, desde os mais comezinhos aos de maior importância, inclusive os de natureza íntima.

            Por esse meio, o sacerdote penetra na vida privada da maioria dos seus fiéis, constituindo-se consultor e conselheiro indispensável de muitos lares, dos quais se torna frequentador assíduo, provocando, às vezes, a propagação, em surdina, de atos duvidosos e desagradáveis à sociedade.

            Elevado, assim, ao píncaro da consideração, supõe-se senhor da confiança alheia, assume ares de autoridade absoluta e dessa atitude, não há raciocínio, nem evidência que o destrone.

            No entanto, o que é o padre? Será um ser impoluto , um santo secretário do Criador, revestido dos plenos poderes divinos para enviar ao seio do Onipotente os escolhidos pela sua igreja?

            Será um ente sobrenatural, ante o qual a credulidade fanática se deva prostrar, pelo pavor das penas infernais?

            Porventura, se poderá crer, ainda hoje, que o padre pode condenar ou absolver alguém? Não vêem que condenar é negar Deus e absolver é substituí-lo?          

            Não. Já é tempo de ventilar o cheiro de incenso que narcotiza o cérebro; desatar o trapo de batina que asfixia a razão; e ofuscar o brilho fictício dos templos suntuosos, que obscurece as retinas. As crenças incoerentes só são admitidas pelos que permanecem ainda na mediocridade intelectual, aceitando cegamente o dogmatismo insensato imposto em perfeita contradição com o cristianismo.

            Essa metamorfose tem de se realizar, fatalmente, embora não se possa ainda precisar-lhe, a época; contudo não está longe o advento intelectual que revelará o padre em toda a sua irrisória jactância de representante de Cristo.

            Vestindo a batina, para se distinguir do povo, o padre, desse modo, age em frisante contraste com o Cristo que nunca se distinguiu pela roupa, porque vestia igual a toda a gente da sua época.

            Na pretensão de se comparar ao Divino Mestre, usa,  igualmente, coroa, mas simbólica, apenas, representada pela tonsura circular na cabeça, porque a de espinhos lhe magoaria a epiderme, e isso de sacrifício de verdade é só com o Cristo...

            Conserva-se também celibatário para, no entanto, constituir família clandestina, e nesse estado, livre de encargos e responsabilidade, atravessa uma existência inativa, infrutífera e inútil, esquecendo-se de que um dia prestará contas de como empregou a sua vida na terra.

            Cercado de beatos e aduladores, é impelido aos páramos do orgulho e da vaidade, onde se sente perfeitamente aclimatado. Sua principal preocupação é incutir no cérebro frágil das crianças o terror de Deus, a quem eles só conhecem na qualidade de vingador acérrimo e intransigente, que manda arremessar às labaredas do inferno os que não vão à igreja, não fazem comunhão e não estudam o catecismo.

            Desse modo, as crianças crescem, tornam-se adultos e a família se constitui dominada por essa crença absurda; a veneração pelo padre vai a ponto de, mesmo quando moças ou senhoras não sentirem a inconveniência que há em depor beijos nas mãos de um homem estranho.

            Tira o padre o seu meio de vida dos batizados, casamentos e missas fúnebres. Dado o seu interesse mercantil, não é fora de lógica que se o veja esfregar as mãos de contente, quando aumentam tais recursos seja como for, até mesmo com a morte do nosso próximo.

            Posto que estes sacramentos sejam inúteis e contraproducentes, o sacerdote faz deles um comércio; prometendo transportar as almas ao Céu, por preço reduzido, além das verônicas, bentinhos, gravuras de santos e outras quinquilharias que mercadeja a preços de liquidação.

            Todavia, é justo confessar que o padre faz também alguma coisa, grátis, por exemplo: Amaldiçoa todos quantos propalam a verdade; excomunga quem não lhe dá interesse; manda para o inferno os que não são católicos, mormente, os espíritas.

            Ora, bem sabemos que uma crença enraizada é bastante difícil de se modificar, porém o bom senso nos manda encarar a fé com a razão para discernirmos o bom do mau e a verdade da mentira.

            Feito isso, facílimo será chegar-se à conclusão de que os católicos adotem um credo sem se darem ao trabalho de investigá-lo e, assim, física e moralmente, vivem agrilhoados à indolência, uns pelo orgulho, outros pelo interesse, e a maioria por praxe recreativa, sentindo-se lisonjeados com as exortações dos interessados em manter a cegueira e o atraso humanos.

            Apertados, assim, num círculo estreito, acham-se incapazes de compreender outra coisa que não sejam as futilidades dogmáticas extraídas do Evangelho, segundo a letra, pelos que não têm capacidade de fazê-lo segundo o espírito.

            Deste modo, se tornam inimigos gratuitos da Luz, da Verdade e da Ciência que os envolvem, convidando-os ao exame e incitando-os ao progresso.

            Mas, felizmente, não será sempre assim, porque, pouco a pouco, se irão destacando inteligências mais ou menos desenvolvidas, que compreenderão o presente e o futuro menos materiais e se convencerão de que Deus não pode nem deve ser adorado como ensina a igreja papal.

            Aconselhamos, por isso, aos iludidos a se orientarem nos fatos e provas recolhidas pela história, ante os quais, se surpreenderão horrorizados. Há de lhes assaltar o espírito as barbáries praticadas pelos salvadores de almas que se dizem cristãos ao serviço de Deus, d'Ele usurpando a infalibilidade para, com isso, provocarem a rebelião e a carnificina. Ficarão sabendo que esta religião se impôs com um fuzil na destra e um catecismo na sinistra, sob a condição do -crê ou morre-; como, religiosamente, desapossavam pais de família dos seus bens terrestres, com promessas ou ameaças do Céu; como empregavam o nome de Deus no massacre e extermínio de irmãos; como fizeram da religião um arranjo, deturpando o Evangelho, com Deus nos lábios e o interesse no coração; e muitos outros delitos que se não podem enumerar aqui.

            Quem não conhecerá, ao menos, a história das guerras religiosas?

            Nos ”autos de fé espanhóis", por exemplo, quem, senão os sacerdotes do catolicismo, impeliu os homens a se matarem uns aos outros, persuadidos de que suas mãos assassinas eram consagradas a Deus?

            Quais foram os instigadores na matança de “S. Bartolomeu”?  Não foram os ministros servos do Senhor?

            O móvel de tais carnificinas foi, ao menos por ignorância, fanatismo, ou desejo de se elevarem perante Deus? Não, mas, tão somente, a ambição do poder para dominarem o mundo.

            Façamos ponto. Falta-nos espaço para reproduzir aqui, os episódios tétricos dos tempos das cruzadas em que os representantes da igreja saciaram a sua ardente sede de sangue.

            Mas, sendo a leitura sempre fastidiosa a quem julga que a ilustração não vale a perda de algumas horas, lembramos atentar no que se passa presentemente, mesmo à nossa vista.

            Que observamos nos dédalos da religiosidade apostólica?

            Vemos os caridosos ministros de Deus embolsarem o dinheiro, muitas vezes esmolado de porta em porta e umedecido pelas lágrimas das viúvas e dos órfãos; vêmo-los que atacam a reputação individual ou de uma doutrina dentro do seu próprio templo, aplaudidos pelos carolas e beatos da sacristia; apoderaram-se do Céu para presenteá-lo aos seus filiados que lhes dão pingues proveitos e, até apesar da alardeada castidade, serem encontrados em certos lares a que levam o adultério, onde alguns tem sido assassinados em flagrante.

            Diante destas provas analisadas e inconfundíveis, os que aceitarem a utilidade dos padres, não poderão fugir à evidência de que vivem iludidos, a menos que queiram laborar de má fé, fechando os olhos, para não ver.

            Contudo, permitam-nos algumas perguntas inocentes, mas necessárias:

            Se, catequizados pelos pastores católicos e absortos na beatitude e na intransigência dos dogmas, todos os homens se tomassem padres; não é verdade que esse estado celibatário geral provocaria a extinção da espécie humana?  

            A Terra ficando habitada somente pelos irracionais, continuadores, só eles, da Lei da procriação, não seria a prova de que seriam mais racionais do que nós?

            Objetar-se-á, e com razão, que a “Ordem eclesiástica” se oporia a tal resolução, visto que, dada essa praticabilidade, seria absurdo o demasiado numero de ministros de Deus.

            Mas respondemos: A “Ordem” poderia evitar de recebê-los, mas não evitaria que eles imitassem o procedimento dos padres e, nesse caso, o que seria das Artes, das Ciências e, enfim, de todas as profissões cujo trabalho constitui o Progresso? Até a Natureza, trabalhadora incansável de todos os instantes, seria preciso mandar: para!

            Dir-se-á, ainda, que todos se afeiçoariam a esse novo estado de coisas, visto que, então, não necessitaríamos do progresso, segundo a própria igreja o afirma.

            Bom de dizer-se será: mas antes que tivéssemos tempo de nos afeiçoar ao novo estado, a morte nos ganharia a todos.

            Semelhante ideia, felizmente, é abstrata e impraticável, porque a melhor parte da humanidade acode célere aos silvos das máquinas, ao fumo dos transatlânticos, à fertilidade dos campos e ao apelo das ciências, enquanto que o clero romano, prefere imitar a catalepsia do irmão de Marta, da Betânia, e, assim, permanecer sentado no “marco da estrada”, até que um novo Cristo lhe venha grifar aos ouvidos!

            “Lázaro, levanta-te e caminha!”
















sábado, 24 de novembro de 2012

Fazer primeiro por ti...




 Fazer 
primeiro por ti...


                Mussafir era um rapaz que somente pensava em si. Não que ele fosse propriamente mau, mas revelava profunda indiferença por seus semelhantes e seguia o preceito cínico de Mirabi-el-Fanur, que costumava dizer a seus discípulos:

            - Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...

            Por isso, Mussafir ia-se tornando egoísta e frio, pois o egoísmo corrompe as boas qualidades do espírito e faz repontar no caráter do homem vícios e defeitos difíceis de erradicar.

            Naquele dia, topara o rapaz com o velho Hiraim, a quem chamavam "o faquir", homem sem riquezas materiais, mas dotado de bondoso coração, como outro igual talvez não se encontrasse na Arábia de seu tempo. Ao atravessar a rua esburacada, Hiraim pisou em falso e caiu, torcendo o pé. Ao ver Mussafir, chamou-o:

            - Bom rapaz, vem cá! Ajuda-me a chegar a casa.

            Sem se deter, Mussafir olhou-o com indiferença e respondeu:

            - Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...

            E seguiu seu caminho sem olhar para trás. Entretanto, Hiraim, sem revelar mágoa, retrucou:

            - Alá há de te ouvir e eu lhe peço que retifiques os sentimentos senão terás uma velhice amargurada por lágrimas e dores... E será triste, se isso acontecer...

*

            Mussafir ignorava a verdadeira personalidade de Hiraim. O velho faquir possuía dons especiais, que lhe davam certa ascendência sobre o comum dos mortais. Dotado de vidência, pudera ver que Mussafir andava cercado por entidades sombrias, pois sua alma ia lentamente perdendo o róseo tom da inocência e obscurecendo ao contato de impuros companheiros invisíveis. Hiraim compadeceu-se de Mussafir e com extrema dificuldade se dirigiu para a mesquita de Arbnachar, abriu a almocela e sobre esse tapete formulou uma prece ao Criador de todas as coisas...

            Mussafir deitara-se cedo. A noite quente e abafada forçava ao repouso e ele, que sentia o corpo quebrantado, como se lhe houvessem dado forte sova com varas dos famosos marmeleiros de Benir-Adib, fora para o leito na esperança de adormecer sem demora. De quando em quando passava a mão pela testa aljofrada de suor frio e suspirava quando lhe acorria à mente o episódio do encontro com Hiraim. Era curiosa a insistência com que ele se lembrava do velho desconhecido. Sentia o coração opresso, como se o mundo estivesse para desabar por cima de sua cabeça. Lá fora, a noite negra e profusamente estrelada parecia o tapete marchetado de belos diamantes do califa Arbjura, vindo especialmente de Bagdá para lhe ornar o palácio suntuoso.

            Pensativo, em seu leito, sentiu vontade de chorar. Mas, chorar por quê? Um homem de sua têmpera não chora... O tempo foi correndo depressa, até que Mussafir pressentiu a chegada do sono. Nessa ocasião, porém, desejou sair do quarto e espairecer um pouco ao ar livre. Levantou-se, espreguiçando-se. Sentia-se mais leve e mais tranquilo. Chegou à janela, olhou o céu e, inadvertidamente, voltou-se em direção ao seu leito. Espantou-se com o que via: seu corpo se encontrava deitado ali, em profundo sono! Após os primeiros instantes de estupefação, começou a sentir curiosidade pelo fato. Aproximou-se e tocou com o dedo o próprio corpo. Sorriu, achando graça da situação em que se via... Como podia ser isso? Como é que ele poderia estar dormindo e acordado ao mesmo tempo? Nesse instante, percebeu que alguém o chamava do outro lado da janela. Era o velho Hiraim. Mussafir não revelou surpresa. Até parecia que haviam combinado o encontro. Ia dirigir-se à porta; para sair, quando o faquir lhe fez sinal para que viesse à janela. Sairia por ali.

            - Vem comigo, rapaz. Não há perigo algum. Deixa teu corpo em descanso e vem tu, em espírito, acompanhar-me. Podes volitar e passar através da parede. Não há perigo algum. Segue-me sem receio, porquanto precisas ver alguma coisa que será útil a ti mesmo...

            Intrigado a princípio, Mussafir acabou por obedecer cegamente a Hiraim. E ambos partiram pelo espaço afora:             

            - Vou levar-te ao éden. Depois verás os campos de aprendizado, a fim de que vejas como a vida que os homens levam na Terra nem sempre está conforme com as necessidades que eles têm. Daí a instantes penetravam o paraíso anunciado a Maomé, na gruta, pelas vozes do Alto. Mussafir tremia de emoção, extasiado pelo que de felicidade ali se vislumbrava. Hiraim, todavia, quebrou-lhe o êxtase, dizendo-lhe:          

            - Como vês, aqui não se encontram as huris anunciadas para aqueles que conquistam as graças de Alá. O Todo Poderoso reserva-lhes recompensa muito mais elevada, mas é imprescindível que se desliguem completamente de todos os sentimentos inferiores e aprendam a amá-lo com a sinceridade com que O amou Rabia, aquela maravilhosa mulher maometana, verdadeiramente santa pela bondade de seu coração e por suas virtudes peregrinas...

            Para ganhar o Aliun, o paraíso predito por Maomé, meu rapaz, deve-se aprender a amar a Deus com pureza. Amá-Lo como O amava Rabia. E ela cantava esta prece de ternura e fé:

           "Oh Alá, Alá! Se Te adoro com medo do Inferno, queima-me no Inferno! Se Te adoro na esperança do Paraíso, exclui-me do Paraíso! Porém, se Te adoro pelo teu próprio amor, não me afastes da tua eterna beleza!"

*

            Quando Hiraim acabou de falar, Mussafir se achava caído de joelhos, enternecido. O velho fê-lo erguer-se, doutrinando-o:

            - Ninguém ama o Pai, se não aprende primeiro a amar o próximo, Mussafir. Abandona o preceito de Mirabi-al-Fanur e volta teu coração para o mundo. Aquele que não se compadece de seu semelhante e não o ajuda, é como que um aljube envenenado, cujas águas não têm serventia...
           
            Não mostrarei o Inferno, porque, na realidade, ele somente existe na consciência do homem afastado de Alá. Mostrar-te-ei, contudo, os campos de aprendizado onde os Espíritos podem, em suas horas de lazer, dedicar-se a trabalhos de auto retificação moral.

            Era intensíssimo o movimento das colônias visitadas. Espíritos de diversas cores iam e vinham, empolgados por suas tarefas de renovação. Uns claros, bonitos, atraentes; outros, negros, pavorosos, repulsivos. Para não ser prolixo, Hiraim limitou-se a dizer que a beleza e a delicadeza das cores dependiam, em grande parte, da elevação moral de cada um.

            - Nós mesmos, neste recinto, podemos ver nossa imagem refletida diante de nós e avaliarmos da nossa situação em face da vida que levamos.

            Mussafir, automaticamente, procurou contemplar o seu Espírito. Diante dele pairava uma névoa pardacenta, com largas manchas negras. Triste como a viúva Khadijah, ao ser desprezada por Kutam, o Maomé, o pobre rapaz ergueu os olhos, súplice, para Hiraim, mas cobriu-os, logo, com as mãos trêmulas, tal a claridade que envolvia o Espírito do velho faquir. Mussafir sentiu-se tonto e foi perdendo a noção das coisas...

*

            Despertando em sobressalto, sentou-se no leito e olhou ao redor, como que procurando Hiraim. Nada se alterara. O luar banhava o quarto deserto e silencioso. Naturalmente sonhara, tivera um pesadelo.  Todavia, o resto da madrugada ele a passou em vigília. Parecia-lhe ver a imagem de Hiraim e ouvir-lhe a voz lenta e suave.

*

            Tão cedo lhe foi possível, procurou pela cidade o faquir. Resolvera renunciar às lições de Mirabi-al-Fanur, arrependido que estava de seu procedimento da véspera. E ao encontrar Hiraim, caiu-lhe aos pés, murmurando, entre soluços:

            - Perdoa-me! Não quero ser como a planta alulab, que vive rente ao chão, em lugares úmidos e sombrios... Ajuda-me, Hiraim, a merecer as graças de Alá!

             Sorrindo compassivamente, o velho alisou lhe a cabeça e disse com ternura:

            - Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...




por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Novembro 1948