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terça-feira, 4 de novembro de 2014

2e. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935

2e

            Multiplicavam-se as conversões de gentios e judeus, entre estes contando-se mesmo sacerdotes do Mosaísmo, não servindo as perseguições, como a primeira levada a efeito em larga escala contra a família cristã, logo após a sumária execução de Estevão, seguida a breve trecho da de Tiago, morto a espada por ordem de Herodes, senão para ampliar cada vez mais a difusão da ideia, à semelhança de grãos maduros que um vento impetuoso dispersa para longe.

            É assim que, lançados fora de Jerusalém, segundo referem os Atos, "pela tribulação que houve por causa de Estevão" e terá provavelmente sido a mencionada na história, como ocorrida no ano 42, movida por Agripa, sobrinho de Herodes, o qual, chegado a Jerusalém, “ganhou a simpatia dos seus compatriotas perseguindo os cristãos e restabelecendo os antigos costumes", se encaminharam os discípulos à Fenícia, Chipre e Antióquia, permanecendo um ano inteiro nessa última cidade, onde "pela primeira vez foram chamados cristãos". Aí se lhes reuniu Paulo, que Barnabé, "homem bom e cheio do Espírito Santo e de fé", havia expressamente ido buscar o Tarso, para os secundar na propaganda.

            Porque, compartilhada embora a tarefa por outros valorosos companheiros, como Filipe, João Marcos, Timóteo, Silas, além de, inicialmente, João e Pedro, que era o mais acatado no colégio apostólico por sua autoridade moral, intimamente vinculada ao prestigio decorrente da privança que desfrutara junto ao Mestre, é sobretudo em torno da singular figura do "apóstolo dos gentios" e graças ao seu infatigável espírito de organização e de iniciativa que se opera o grande movimento de proselitismo, do mesmo modo que se lhe devem os primeiros desenvolvimentos éticos da doutrina, expressos nas quatorze epístolas endereçadas aos crentes das principais cidades em que aprofundara raízes à ideia cristã, desde os Coríntios aos Romanos, aos quais transmite sucessivamente os ensinamentos e exortações de grande iniciado, que viera a ser.

            Indicar, pois, sumariamente, como nos propomos, a sua trajetória, inçada de vicissitudes, em direção a Roma, arvorando na palavra, nas atitudes e na ação as transfiguradoras promessas do Evangelho, é indicar a marcha da própria ideia naquele predestinado rumo.

            De Antióquia, acompanhado de Barnabé, encaminha-se Paulo a Icônia e, em seguida, a Listra, onde, por instigação de alguns judeus, é apedrejado e deixado por morto fora da cidade. Levantando-se, porém, tanto que o rodearam os discípulos, ali volta novamente, para, no dia imediato, empreender, ainda com Barnabé, mais um turno de evangelização, com escalas em Derbe e na Panfília, depois de atravessar a Psídia, demorando-se em Perga, a anunciar a palavra, descendo em seguida a Atalia, daí outra vez navegando rumo de Antioquia, para regressarem juntos a Jerusalém.

            E assim, sucessivamente, percorrendo as principais cidades em que seu entusiasmo comunicativo ora estimulava os crentes à perseverança e multiplicava o número dos prosélitos, ora provocava reações violentas, como na cidade macedônica de Filipos, em que é açoitado e preso com Silas, que então o acompanhava, prossegue no indefeso apostolado, visitando. repetidamente Corinto, Êfeso, Tessalônica, Mileto, Bereia e Atenas, em cujo Areópago prega o "Deus desconhecido", surpreendendo os amáveis cultores do aticismo (elegância e sobriedade de linguagem) com a originalidade e arrojo de sua doutrina e atitudes.

            De regresso mais uma vez a Jerusalém, depois de haver enviado à Macedônia os discípulos Timóteo e Erasto e de haver novamente evangelizado não somente aí, mas na Grécia e em Tiro e Cesareia, é envolvido na mais grave sublevação, que o havia de compelir, pelas tumultuárias vicissitudes de que se revestiu, à culminância providencial do seu apostolado.

            Estando ele no templo, uns judeus "vindos da Ásia", tanto que o viram, entraram a bradar, acusando-o de pregar contra o povo, contra a lei e contra o lugar santo, que - estrugiam - profanara, nele introduzindo gregos.

            "Alvoroçou-se toda a cidade" - a narrativa dos Atos é expressiva - "e houve ajuntamento do povo, e agarrando a Paulo, o arrastaram para fora do templo. E imediatamente foram fechadas as portas. E, procurando eles mata-lo, o tribuno da coorte foi avisado de que toda Jerusalém estava amotinada, e este, levando logo soldados e centuriões com sigo, correu a eles; os quais, tendo visto o Tribuno e os soldados, cessaram de espancar a Paulo. Então, chegando-se o Tribuno, o prendeu e ordenou que fosse acorrentado com duas cadeias e perguntou-lhe quem era e o que havia feito. Na multidão uns gritavam de um modo, outros de outro; e não podendo, por causa do tumulto, saber a verdade, mandou que fosse Paulo recolhido à cidadela. Ao chegar às escadas, foi ele carregado pelos soldados, por causa da violência do povo, pois a multidão o seguia, gritando: Mata-o!"

            Em vão tentou Paulo defender-se, com permissão do tribuno arengando ao povo, que excitado cada vez mais exigia a sua morte. Recolhido à cidadela, escapou de ser açoitado, graças a ter invocado a sua qualidade de cidadão romano, com o que logrou, daí em diante, a proteção do tribuno, que não somente lhe garantiu ainda uma vez a vida, quando, no dia seguinte o mandou, já livre, mas escoltado, apresentar ao Sinédrio, como sobretudo, informado de uma cilada que ao intrépido apóstolo preparavam os judeus, o enviou logo depois, com uma carta de recomendação, a Felix, governador de Cesareia, fazendo-o acompanhar de numerosa escolta de infantaria, lanceiros e cavalaria.

            Ali permaneceu Paulo durante dois anos, constrangido em sua liberdade, até que, substituído Felix pelo novo governador, Pórcio Festo, ao ser perante este acusado pelos judeus, que haviam para esse fim descido de Jerusalém, terminou sua contestação apelando para o Cesar.

            Dias depois, conduzido à presença do rei Agripa, que fora a Cesareia saudar o novo governador, teve Paulo ocasião de, perante ele, articular com vigor a própria defesa, fazendo uma eloquente síntese do seu apostolado. E teria sido imediatamente posto em liberdade, no consenso uniforme daqueles magnatas, "se não tivesse apelado para o Cesar". Essa afortunada circunstância, todavia, longe de haver sido habilidade de homem, para sair-se do apuro em que estivera, como na aparência o faria supor semelhante gesto, outra coisa não fora realmente senão o resultado da assistência espiritual do Mestre, que em todas as emergências o inspirava, e para que se realizassem os desígnios de que, em visão anterior, o cientificara.

            Referem, com efeito, os Atos que, na noite imediata ao seu encarceramento, dois anos antes, em Jerusalém, o Senhor apareceu visivelmente a Paulo e, "pondo-se ao seu
lado, lhe disse: Tem bom ânimo; pois assim como deste testemunho de mim em Jerusalém, importa que também o dês em Roma".

            Ordenada, portanto, a partida do intimorato apóstolo para a Itália, com alguns outros presos, sob a guarda de um centurião, foi empreendida a memorável e acidentada viagem, ao começo com boa fortuna até ao porto de Mira, daí em diante, porém, convertida em adversa, acossado que foi por temporais o veleiro, para que ali haviam sido transbordados, e que veio a soçobrar em frente à ilha de Malta, onde tiveram de permanecer três meses, mas dando essas mesmas vicissitudes ocasião a que Paulo patenteasse a clarividência de seus dons e desse testemunho do Poder divino, que incessantemente o sustentava. É assim que, ora advertia o piloto dos perigos da travessia, prosseguida em inoportuna ocasião, não obstante a aparência favorável do tempo, logo tornado borrascoso, ora reanimava os companheiros, na angustiosa emergência do naufrágio, assegurando, tranquilizado por suas visões, que nenhum seria vitimado, mas só haveria perdas materiais - o que, de fato, se verificou - ora, durante a estadia em Malta, efetuava numerosas curas, aplicando unicamente as mãos sobre os enfermos.
 
            Embarcados num terceiro navio, que os conduziu a um porto da península, chegou Paulo finalmente a Roma.


            Aí já encontrou sem duvida em germinação a ideia cristã, que em sua impalpável irradiação o havia precedido, como se infere claramente da própria narrativa dos Atos, que alude a "alguns irmãos", com que travara conhecimento no trajeto para a cidade eterna, e a alguns outros que o foram receber, conduzindo-o "até a praça de Apio e as Três Vendas". Mas a sua presença ali, como a sua “permanência durante dois anos em um aposento alugado, onde recebia todos os que vinham ter com ele, pregando o reino de Deus e ensinando as coisas concernentes ao Senhor Jesus Cristo", seriam, consoante mesmo os desígnios do Alto, a que aludimos, indispensável coroamento da dupla obra de evangelização e de organização a que o seu verbo iluminado imprimira estrutura e diretrizes, que reclamavam, para sua plena eficiência, fossem rematadas naquele amplo teatro da então capital do mundo. 

2d. AntiCristo senhor do mundo


AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935

2d

            Multiplicavam-se as conversões de gentios e judeus, entre estes contando-se mesmo sacerdotes do Mosaísmo, não servindo as perseguições, como a primeira levada a efeito em larga escala contra a família cristã, logo após a sumária execução de Estevão, seguida a breve trecho da de Tiago, morto a espada por ordem de Herodes, senão para ampliar cada vez mais a difusão da ideia, à semelhança de grãos maduros que um vento impetuoso dispersa para longe.

            É assim que, lançados fora de Jerusalém, segundo referem os Atos, "pela tribulação que houve por causa de Estevão" e terá provavelmente sido a mencionada na historia, como ocorrida no ano 42, movida por Agripa, sobrinho de Herodes, o qual, chegado a Jerusalém, “ganhou a simpatia dos seus compatriotas perseguindo os cristãos e restabelecendo os antigos costumes", se encaminharam os discípulos à Fenícia, Chipre e Antióquia, permanecendo um ano inteiro nessa última cidade, onde "pela primeira vez foram chamados cristãos". Aí se lhes reuniu Paulo, que Barnabé, "homem bom e cheio do Espírito Santo e de fé", havia expressamente ido buscar o Tarso, para os secundar na propaganda.

            Porque, compartilhada embora a tarefa por outros valorosos companheiros, como Filipe, João Marcos, Timóteo, Silas, além de, inicialmente, João e Pedro, que era o mais acatado no colégio apostólico por sua autoridade moral, intimamente vinculada ao prestigio decorrente da privança que desfrutara junto ao Mestre, é sobretudo em torno da singular figura do "apóstolo dos gentios" e graças ao seu infatigável espírito de organização e de iniciativa que se opera o grande movimento de proselitismo, do mesmo modo que se lhe devem os primeiros desenvolvimentos éticos da doutrina, expressos nas quatorze epístolas endereçadas aos crentes das principais cidades em que aprofundara raízes à ideia cristã, desde os Coríntios aos Romanos, aos quais transmite sucessivamente os ensinamentos e exortações de grande iniciado, que viera a ser.

            Indicar, pois, sumariamente, como nos propomos, a sua trajetória, inçada de vicissitudes, em direção a Roma, arvorando na palavra, nas atitudes e na ação as transfiguradoras promessas do Evangelho, é indicar a marcha da própria ideia naquele predestinado rumo.

            De Antióquia, acompanhado de Barnabé, encaminha-se Paulo a Icônia e, em seguida, a Listra, onde, por instigação de alguns judeus, é apedrejado e deixado por morto fora da cidade. Levantando-se, porém, tanto que o rodearam os discípulos, ali volta novamente, para, no dia imediato, empreender, ainda com Barnabé, mais um turno de evangelização, com escalas em Derbe e na Panfília, depois de atravessar a Psídia, demorando-se em Perga, a anunciar a palavra, descendo em seguida a Atalia, daí outra vez navegando rumo de Antioquia, para regressarem juntos a Jerusalém.

            E assim, sucessivamente, percorrendo as principais cidades em que seu entusiasmo comunicativo ora estimulava os crentes à perseverança e multiplicava o número dos prosélitos, ora provocava reações violentas, como na cidade macedônica de Filipos, em que é açoitado e preso com Silas, que então o acompanhava, prossegue no indefeso apostolado, visitando. repetidamente Corinto, Êfeso, Tessalônica, Mileto, Bereia e Atenas, em cujo Areópago prega o "Deus desconhecido", surpreendendo os amáveis cultores do aticismo (elegância e sobriedade de linguagem) com a originalidade e arrojo de sua doutrina e atitudes.

            De regresso mais uma vez a Jerusalém, depois de haver enviado à Macedônia os discípulos Timóteo e Erasto e de haver novamente evangelizado não somente aí, mas na Grécia e em Tiro e Cesareia, é envolvido na mais grave sublevação, que o havia de compelir, pelas tumultuárias vicissitudes de que se revestiu, à culminância providencial do seu apostolado.

            Estando ele no templo, uns judeus "vindos da Ásia", tanto que o viram, entraram a bradar, acusando-o de pregar contra o povo, contra a lei e contra o lugar santo, que - estrugiam - profanara, nele introduzindo gregos.

            "Alvoroçou-se toda a cidade" - a narrativa dos Atos é expressiva - "e houve ajuntamento do povo, e agarrando a Paulo, o arrastaram para fora do templo. E imediatamente foram fechadas as portas. E, procurando eles mata-lo, o tribuno da coorte foi avisado de que toda Jerusalém estava amotinada, e este, levando logo soldados e centuriões com sigo, correu a eles; os quais, tendo visto o Tribuno e os soldados, cessaram de espancar a Paulo. Então, chegando-se o Tribuno, o prendeu e ordenou que fosse acorrentado com duas cadeias e perguntou-lhe quem era e o que havia feito. Na multidão uns gritavam de um modo, outros de outro; e não podendo, por causa do tumulto, saber a verdade, mandou que fosse Paulo recolhido à cidadela. Ao chegar às escadas, foi ele carregado pelos soldados, por causa da violência do povo, pois a multidão o seguia, gritando: Mata-o!"

            Em vão tentou Paulo defender-se, com permissão do tribuno arengando ao povo, que excitado cada vez mais exigia a sua morte. Recolhido à cidadela, escapou de ser açoitado, graças a ter invocado a sua qualidade de cidadão romano, com o que logrou, daí em diante, a proteção do tribuno, que não somente lhe garantiu ainda uma vez a vida, quando, no dia seguinte o mandou, já livre, mas escoltado, apresentar ao Sinédrio, como sobretudo, informado de uma cilada que ao intrépido apóstolo preparavam os judeus, o enviou logo depois, com uma carta de recomendação, a Felix, governador de Cesareia, fazendo-o acompanhar de numerosa escolta de infantaria, lanceiros e cavalaria.

            Ali permaneceu Paulo durante dois anos, constrangido em sua liberdade, até que, substituído Felix pelo novo governador, Pórcio Festo, ao ser perante este acusado pelos judeus, que haviam para esse fim descido de Jerusalém, terminou sua contestação apelando para o Cesar.

            Dias depois, conduzido à presença do rei Agripa, que fora a Cesareia saudar o novo governador, teve Paulo ocasião de, perante ele, articular com vigor a própria defesa, fazendo uma eloquente síntese do seu apostolado. E teria sido imediatamente posto em liberdade, no consenso uniforme daqueles magnatas, "se não tivesse apelado para o Cesar". Essa afortunada circunstância, todavia, longe de haver sido habilidade de homem, para sair-se do apuro em que estivera, como na aparência o faria supor semelhante gesto, outra coisa não fora realmente senão o resultado da assistência espiritual do Mestre, que em todas as emergências o inspirava, e para que se realizassem os desígnios de que, em visão anterior, o cientificara.

            Referem, com efeito, os Atos que, na noite imediata ao seu encarceramento, dois anos antes, em Jerusalém, o Senhor apareceu visivelmente a Paulo e, "pondo-se ao seu lado, lhe disse: Tem bom ânimo; pois assim como deste testemunho de mim em Jerusalém, importa que também o dês em Roma".

            Ordenada, portanto, a partida do intimorato apóstolo para a Itália, com alguns outros presos, sob a guarda de um centurião, foi empreendida a memorável e acidentada viagem, ao começo com boa fortuna até ao porto de Mira, daí em diante, porém, convertida em adversa, acossado que foi por temporais o veleiro, para que ali haviam sido transbordados, e que veio a soçobrar em frente à ilha de Malta, onde tiveram de permanecer três meses, mas dando essas mesmas vicissitudes ocasião a que Paulo patenteasse a clarividência de seus dons e desse testemunho do Poder divino, que incessantemente o sustentava. É assim que, ora advertia o piloto dos perigos da travessia, prosseguida em inoportuna ocasião, não obstante a aparência favorável do tempo, logo tornado borrascoso, ora reanimava os companheiros, na angustiosa emergência do naufrágio, assegurando, tranquilizado por suas visões, que nenhum seria vitimado, mas só haveria perdas materiais - o que, de fato, se verificou - ora, durante a estadia em Malta, efetuava numerosas curas, aplicando unicamente as mãos sobre os enfermos.
 
            Embarcados num terceiro navio, que os conduziu a um porto da península, chegou Paulo finalmente a Roma.


            Aí já encontrou sem duvida em germinação a ideia cristã, que em sua impalpável irradiação o havia precedido, como se infere claramente da própria narrativa dos Atos, que alude a "alguns irmãos", com que travara conhecimento no trajeto para a cidade eterna, e a alguns outros que o foram receber, conduzindo-o "até a praça de Apio e as Três Vendas". Mas a sua presença ali, como a sua “permanência durante dois anos em um aposento alugado, onde recebia todos os que vinham ter com ele, pregando o reino de Deus e ensinando as coisas concernentes ao Senhor Jesus Cristo", seriam, consoante mesmo os desígnios do Alto, a que aludimos, indispensável coroamento da dupla obra de evangelização e de organização a que o seu verbo iluminado imprimira estrutura e diretrizes, que reclamavam, para sua plena eficiência, fossem rematadas naquele amplo teatro da então capital do mundo. 

2c. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935

2c

            Encontra-se, com efeito, em a narrativa dos Atos dos Apóstolos, logo no capitulo II, esta significativa passagem:

            "E todos os que criam estavam unidos, e tudo o que cada um tinha era possuído em comum por todos. Vendiam as suas propriedades e os seus bens e os distribuíam por todos, segundo a necessidade que cada um tinha."

            Mais adiante (cap. IV) insiste o narrador:

            "E da multidão dos que criam o coração era um e a alma uma: e nenhum dizia ser sua coisa alguma daquelas que possuía, mas tudo entre eles era comum. E os apóstolos, com grande valor, davam testemunho da ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor, e havia muita graça em todos eles. E não havia nenhum necessitado entre eles; porque todos quantos eram possuidores de terras ou de casas, vendendo-as, traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés dos apóstolos; e repartia-se a cada um conforme a sua necessidade."

            Haviam desse modo criado um núcleo de comunismo, social e prático, fundado no desinteresse e naquele tocante amor espiritual que os vinculava, auspicioso gérmen associativo, cuja continuidade e desenvolvimento não tardaram, todavia, em ser mutilados, logo no primeiro século, em consequência das perturbações que a nação judaica vinha padecendo, agravadas sobretudo e rematadas no tremendo epílogo, que foi o cerco de Jerusalém, com a sua definitiva e irremediável dispersão.

            Embora nunca mais renovada, na sucessão dos séculos, por força mesmo das ulteriores vicissitudes que haviam de transviar a obra do Cristianismo de sua primitiva orientação social e humana, essa tentativa, de que o ascetismo de certas ordens religiosas e as comunidades claustrais posteriores não são mais que uma deturpação exclusivista e estéril, convinha ser recordada não só como um testemunho documental de que no Evangelho de Jesus se encontram em gérmen os fundamentos da mais adiantada forma de organização da sociedade, como para estabelecer-se um instrutivo paralelo, mais que nunca oportuno em nossos dias, entre aquele comunismo pacífico da primeira geração cristã, espontâneo em seus métodos de realização (1), e o comunismo revolucionário contemporâneo, violento em seus processos e que, a pretexto de igualitárias reivindicações - no fundo indubitavelmente legítimas - outra coisa não pretende, nem realizou até agora com a subversiva experiência consumada na Rússia, que não seja uma brusca inversão de posições entre as classes sociais, tornando opressora a que fora oprimida até a véspera e, em lugar da fraternidade, que nem mesmo entre os seus adeptos é sinceramente praticada, contribuindo para mais profundo tornar o dissidio entre cidadãos de uma mesma pátria.

            (1) Veja-se Atos, cap. V. 4.

            A diferença fundamental consiste em que o primeiro se inspirava no Amor, associado ao respeito pela liberdade natural do homem - únicos princípios em que se pode esteiar uma união verdadeiramente fecunda e solidaria entre todos eles - e, considerando a transitoriedade desta vida, focalizava na Imortalidade as suas aspirações, ao passo que o outro, materialista e irreligioso, inspira-se no ódio de classes, que erige mesmo em bandeira de combate, e, banindo toda preocupação imortalista, faz da vida presente e da apropriação dos bens efêmeros que lhe são peculiares a finalidade do destino humano. É uma obra construída na areia movediça das contingências terrestres e não sobre aquela rocha viva de que falou Jesus, aludindo à aplicação de sua palavra - que o é de vida eterna - aos atos da vida humana, individual e coletiva. Obra do AntiCristo, que visa perpetuar a divisão entre os homens, alimentando-lhes as paixões inferiores, enquanto o comunismo, ou melhor, o socialismo cristão, que há de ser um dia a forma definitiva de sua organização econômica e politica, tende a reuni-los em um largo espirito de verdadeiro cooperativismo fraterno, sem odiosas exclusões.

            O núcleo constitui do pela primeira geração cristã, é certo que não passou de um esboço rudimentar, em sua feição particularista, sem nenhuma repercussão na esfera político-administrativa, em cuja atividade, ao demais, estavam excluídos de participar aqueles imediatos continuadores de Jesus, em sua quase totalidade pertencentes à nação judaica, reduzida a mera tributaria do Império Romano omnipotente, mas tendo começado pela abolição voluntária - a tanto equivalente a alienação, que efetuavam - da propriedade territorial justamente considerada apropriação criminosa de um bem comum a todos, representou por isso mesmo, na singeleza de seus moldes, um precedente exemplificador do que hão de ser, no futuro, as sociedades humanas organizadas segundo os enobrecedores princípios do Evangelho.

            Mais tarde veremos como as largas doações de terras, pelos imperadores romanos feitas ao papado, contribuíram para precipitar a decadência do Cristianismo, convertendo-o progressivamente numa instituição de caráter acentuadamente mundano, em contra posição aos desígnios de seu Divino Instituidor, que lhe havia traçado a altruística diretriz, formalmente proclamando: "Meu reino não é deste mundo". Por agora cumpria apenas indicarmos a origem cristã da grande reforma social, que os turbulentos pregoeiros de nossos dias se esforçam em levar à prática, não somente renegando essa origem, mas promovendo guerra de extermínio à Doutrina em cujos princípios se inspiraram os seus primeiros desinteressados realizadores.

            Encerremos, pois, aqui este parêntesis e prossigamos na enumeração de alguns dos mais significativos episódios que assinalaram a incoercível marcha do Evangelho, rumo do Ocidente, sobretudo no que se refere aos lances de heroísmo praticado pelos seus destemidos portadores e que tanto haviam de contribuir para a sua edificante e gloriosa consolidação. 

2b. AntiCristo senhor do mundo


AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935

2b

            Dez dias apenas depois daquele em que o Senhor Jesus "foi assunto ao céu", achando-se os apóstolos reunidos em Jerusalém, uma inesperada transfiguração se lhes operou, semelhante àquela de que fora teatro o cimo do Tabor.

            Se aí o Cristo, envolto em deslumbrante auréola, havia conversado com os espíritos visíveis de Moisés e de Elias, em presença de Pedra, Tiago e João, no cenáculo em que ocorreu a poderosa manifestação do Espírito Santo, foram as "virtudes do céu" que, sob a visível aparência de "umas como línguas de fogo", precedidas de "um estrondo como de vento que soprava com ímpeto", repousaram sobre os apóstolos, em cada um desenvolvendo os dons supranormais, mediante cujo influxo não somente eles, homens rudes e incultos, entraram a falar em vários idiomas, que lhes eram desconhecidos, perante a numerosa assembleia de israelitas e forasteiros de procedências diversas, que ali acorreram, atraídos pelo estrondo precursor da manifestação, mas adquiriram, no mesmo instante, a consciência profunda do seu ministério, tornando-se de então em diante "homens novos”, sem mais vacilações nem desfalecimentos, aptos para afrontar, destemidos, os poderes humanos e as resistências adversas do invisível, que lhes seriam, de concerto com aqueles, frequentemente opostas.

            De posse da herança maravilhosa que lhes transmitira o Mestre e em que acabavam de ser confirmados, converteram-se verdadeiramente em bandeirantes da fé, empreendendo frequentes excursões, de que a cidade de Jerusalém se constituiu o núcleo de irradiação, e indo alguns deles aos mais remotos confins da Palestina - posteriormente até muito mais longe - levar a boa nova de que o reino de Deus estava próximo e anunciar, não o Senhor crucificado, mas o Cristo redivivo.

            As conversões, desde o começo, entraram a ser obtidas aos milhares e não faltavam prodígios para testificar a autoridade de que se achavam investidos.

            Pedro e João, dirigindo-se um dia ao templo, a pragar, como o costumavam, notaram, junto à porta denominada Especiosa, a presença de um homem que era coxo de nascença e ali estendia a mão aos transeuntes, de cujos óbolos vivia. Detiveram-se um instante a contempla-lo e, como se obedecesse a uma inspiração do Alto, disse-lhe Pedro:

            - Olha para nós.

            Atendido, começou de acentuar a sua condição de pobreza, que sempre foi o apanágio e a ufania dos verdadeiros discípulos de Jesus, para em seguida transfundir-lhe a graça de que se sentia portador, nestes termos:

            - Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda.

            E no mesmo instante, auxiliado pelo apóstolo, que o tomou pela mão direita, "os pés e artelhos se lhe firmaram" e o homem começou a andar, entrando, com os dois, no templo, bem dizendo a Deus, na presença do povo, que se maravilhava do ocorrido.

            Aproveitou Pedro o fato para uma prédica exortativa, secundado por João, a qual, porém, não tardou em suceder a primeira reação dos vigilantes e interesseiros guardas da tradição mosaica. Foram ambos presos e levados no dia seguinte à presença do Sinédrio, sendo contudo soltos, depois de ameaçados, para serem, algum tempo depois, novamente metidos no cárcere, por intervenção do sumo sacerdote e dos saduceus, enfurecidos de inveja contra eles.

            "Mas um anjo do Senhor - refere o texto (Atos, V, 19) - abrindo-lhes de noite a porta do cárcere", os restituiu à liberdade, ordenando-lhes que voltassem a pregar no templo, o que fizeram no dia seguinte com o mesmo desassombro.

            Sucediam-se assim alternadamente a difusão da palavra divina e as perseguições que visavam embaraça-la,

            Estevão, "cheio de graça e de poder", na plenitude da mocidade, que comunicava ao seu verbo inspirado os arroubos do entusiasmo, tornando-o a tal ponto contundente que os adversários "não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito pelo qual ele falava", do mesmo passo que "fazia grandes prodígios e milagres entre o povo", é também preso e conduzido á reunião do Sinédrio, acusado, mediante falsos testemunhos, de proferir palavras subversivas "contra o lugar santo e contra a lei".

            Defende-se com eloquência, produzindo um longo discurso baseado nas Escrituras, mas, não podendo conter a sua indignação, remata-o com veementes apóstrofes aos "homens de dura cerviz, incircuncisos de coração e de ouvido", que se haviam tornado "traidores e homicidas" relativamente ao Justo anunciado nas profecias, o que lhe valeu ser violentamente arrastado, posto fora da cidade e apedrejado.

            "E as testemunhas - refere o autor dos Atos dos Apóstolos - depuseram as suas capas aos pés de um moço chamado Saulo. E apedrejaram Estevão", até vê-lo expirar, invocando o Senhor Jesus e suplicando o perdão para seus algozes. "E Saulo - acrescenta a narrativa - consentiu na sua morte".

            Não somente consentiu nessa bárbara imolação da primeira vítima ilustre que, depois do Mestre, havia de continuar a gloriosa cadeia dos Sacrificados pela redenção dos homens, senão que, arrebatado nos desvarios do zelo farisaico, marcaria de um violento contraste a primeira fase da missão que lhe estava reservada, fazendo-se implacável perseguidor da Igreja cristã.

            É assim que, munindo-se de cartas do sumo sacerdote para as sinagogas de Damasco, pôs-se a caminho, resolvido a fazer prender e conduzir para Jerusalém quantos encontrasse no serviço do Senhor.

            "Vaso escolhido, entretanto, para levar o Seu nome perante os gentios e os reis, bem como perante os filhos de Israel", essa atitude inicial de Paulo serviria apenas para demonstrar até que ponto, amortalhado na matéria, exposto às adversas sugestões do oculto, pode o espirito, mesmo de tamanha envergadura, padecer uma verdadeira obsessão que, produzindo-lhe o fanatismo religioso, lhe oblitere o senso da missão com que viera ao mundo e a cujo desempenho esteve ele, Paulo, na iminência de falir.

            Mas o Senhor, vigilante, o observava. Tanto, pois, que, "respirando ainda ameaças e morte contra os Discípulos", se avizinhava de Damasco, sentiu-se Paulo de repente envolto em deslumbrante claridade. Cai por terra, e uma voz, que lhe não era certamente estranha, percute lhe a consciência e os ouvidos: "Saulo, Saulo, porque me persegues?"

            Acordado assim do pesadelo espiritual que o atormentava e que até então estivera longe de perceber, brada em resposta: "Quem és tu, Senhor?" E logo a transfiguradora revelação: "Eu sou Jesus, a quem tu persegues".

            Estava operada a sua conversão e definitivamente neutralizada a manobra do AntiCristo - que outra não era a origem da obsessão de Paulo. - E aquela dileta ovelha, algum tempo tresmalhada, regressava triunfante ao aprisco, não somente para ser a coluna viva, o atleta inconfundível da organização cristã, mas para ser também glorificada no indispensável batismo das perseguições, consoante o aviso dado pelo Mestre, em visão, ao discípulo Ananias, de Damasco: "Eu lhe mostrarei quanto lhe é necessário padecer pelo meu nome".

            Curado, por esse discípulo, da cegueira psíquica, de que fora momentaneamente acometido na estrada, ao manifestar-se lhe o Senhor, é incorporado à comunhão dos crentes e, depois de batizado, entra ali mesmo em Damasco a pregar que "Jesus é o Filho de Deus", deixando atônitos os israelitas da cidade, que não compreendiam essa mudança de atitude e "deliberaram entre si tirar-lhe a vida".

            Conseguindo, porém, subtrair-se à ronda sinistra dos que “guardavam também as portas dia e noite para o matar", auxiliado pelos discípulos, que "o tomaram de noite e o desceram pela muralha, baixando-o numa alcofa", encaminha-se Paulo a Jerusalém e aí, depois de vencida a natural relutância dos fieis, ainda atemorizados por suas recentes façanhas, integra-se na comunidade dos apóstolos, cuja atividade evangelizadora, até esse momento circunscrita aos da nação judaica, se incumbe de ampliar aos gentios, imprimindo à propagação do Cristianismo o cunho de universalidade, que estava nos desígnios do Mestre.
 

            Antes, porém, de acompanharmos neste rápido escorço a trajetória desenvolvida pela Boa Nova, até implantar-se na capital dos Césares, para aí receber o batismo supremo das perseguições em massa, detenhamo-nos a assinalar um dos caracteres mais expressivos que, logo de começo, lhe foi impresso pelos imediatos continuadores de Jesus, suficientemente compenetrados do seu pensamento, que de resto continuava a assisti-los, inspirando-lhes os movimentos, para sentirem a necessidade imperiosa de conformar não apenas os seus atos individuais, mas as próprias condições de sua vida, coletivamente organizada, com os fraternos e igualitários preceitos da doutrina. 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Ante o Cristo Consolador



Ante o
Cristo Consolador
Emmanuel
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Abril 1955

            Nas consolações e tarefas do Espiritismo, é necessário que o coração vibre acordado em sintonia com o cérebro para que não venhamos a perder valiosas oportunidades no tempo.

            Provarás a sobrevivência da alma além da morte através de testemunhos insofismáveis da experimentação, entretanto, que calor apresentará semelhante esforço, se não auxilias o aperfeiçoamento moral do Espírito em peregrinação na carne?

            Movimentarás equações filosóficas) anunciando à mente do povo os princípios da reencarnação, contudo que adiantarão teus assertos, se não ofereces ao próximo os recursos indispensáveis à sublimação da vida interior?

            Aproveitarás a mediunidade, distribuindo ideias novas e novas convicções entre os homens sedentos de esperança, por intermédio da argumentação irretorquível; no entanto, de que te servirá o interesse fortuito, nas revelações graciosas, se não despertas a noção de responsabilidade naqueles que te observam e ouvem?..

            Realizarás as melhores demonstrações científicas, positivando a vida consciente em outros mundos e em outras esferas de ação; todavia, de que valerá semelhante empreendimento se te não dispões a ajudar o pedaço de chão em que nasceste, contribuindo, de algum modo, na construção da Terra melhor?

            E, por isso que, quase sempre, Espiritismo sem Cristianismo é simples empresa intelectual, destinada a desaparecer no sorvedouro de caprichos da inteligência.

            Não se entrelaçariam dois mundos diferentes para o simples trabalho da pesquisa ociosa ou do êxtase inoperante.

            Não se abririam as portas do Grande Além para que o homem se infantilizasse na irresponsabilidade ou na inconsequência.

            Cristo é o ponto de equilíbrio em nosso reencontro.

            Espíritos desencarnados e encarnados, todos nos achamos em degraus diferentes da escada evolutiva.


            Sem Jesus, estaríamos confinados à sombra de nós mesmos, e, sem a disciplina do Seu Evangelho de Luz e Amor, com todas as pompas de nossa fenomenologia, convincente e brilhante não passaríamos de consciências extraviadas e irrequietas a caminho do caos. 

domingo, 2 de novembro de 2014

03. O que nós estamos lendo?




Testemunhos
de Chico Xavier
por Suely Caldas Schubert

 
Suely Caldas Schubert


Prefácio
Francisco Thiesen
Edição FEB
 
Francisco Thiesen


             "Quando Wantuil de Freitas assume a Presidência da Federação Espirita Brasileira, as Portarias policiais ainda vigoravam constrangendo as instituições espíritas a cumprirem exigências descabidas, em desacordo com a liberdade de culto existente no Pais. Wantuil lançou-se, então, à luta, para que o Espiritismo tivesse a igualdade de direitos concedidos às demais religiões." ("Testemunhos de Chico Xavier", p. 53.)

           Antônio Wantuil de Freitas não quis continuar concorrendo à reeleição para o cargo de Presidente da Federação Espírita Brasileira, em agosto de 1970, por motivo de saúde e de sua avançada idade, desencarnando em 11 de março de 1974.            
           
            Por várias vezes conversamos com o antigo Presidente – cuja experiência era enorme, haja vista que foi diretor da FEB por trinta e quatro anos consecutivos, sendo os últimos vinte e sete no posto máximo – sobre assuntos de interesse do trabalho espírita, no Movimento, e sobre questões ligadas notadamente à atividades que estávamos exercendo na Casa Máter do Espiritismo no Brasil.

            Numa tarde, em sua residência, disse-nos Wantuil o seguinte: “Thiesen, quero que saiba que se existe o Departamento Editorial, que você está administrando por delegação do atual Presidente, Armando de Oliveira Assis, devemo-lo, em grande parte, à existência de um homem sem o qual a obra do livro espírita talvez não tivesse prosperado - Francisco Cândido Xavier." E, depois de estender-se em considerações interessantes quanto ao livro espírita, aduziu: “Quero recomendar-lhe, com os olhos voltados para o futuro, que entenda habitualmente as hostilidades e ataques à Federação com a maior naturalidade, e sempre que acusações nos sejam endereçadas não se preocupe em a elas responder, porque a nossa Casa está suficientemente preparada para resistir ao assédio de adversários gratuitos, graças à sua experiência quase secular. Mas, se porventura formos levados a defender-nos, evitemos expor o médium a dificuldades a que ele, como homem, compreensivelmente talvez não possa resistir por longo tempo. Preservá-lo, portanto, é para nós simples dever."

*

            Ocorrida a desencarnação de seu pai, Zêus Wantuil entregou à Federação os livros e papéis que o ex-Presidente ainda conservava em seu poder. Como se sabe, Wantuil havia transformado parte de sua residência no escritório central do qual comandava todos os labores febianos.

Zêus Wantuil


            Zêus, no entanto, consultou-nos sobre se devia também entregar, ou não, as cartas dirigidas a A. W. de Freitas por Chico Xavier e por algumas outras personalidades. Pensara mesmo, num primeiro momento, em incinerá-las, com o louvável propósito de prevenir divulgações extemporâneas de documentos não suficientemente analisados e explicados, caso caíssem em mãos de pessoas descomprometidas com os altos fins da Doutrina, do. Movimento Espírita e da Casa de lsmael. Sugerimos-lhe, na oportunidade, que no-las confiasse à guarda, esperando o desenrolar dos acontecimentos e os conselhos do tempo.

            Foi assim que nos tornamos depositário desse acervo de imenso valor. Levando em conta os alvitres de Wantuil e a confiança com que Zêus nos honrou, poucas vezes estampamos em "Reformador" cartas de Chico Xavier e de outros confrades, só o fazendo quando esse procedimento podia ser útil aos leitores para sua melhor elucidação a respeito da linha doutrinária da Federação, para esclarecimento de fatos históricos da Unificação ou para dirimir dúvidas de vulto.

            Selecionadas, mais tarde, em dois grupos, as cartas principais tiveram seu arquivo acompanhado de indicações, peça por peça, de seus conteúdos. Oportunamente, excertos dessas missivas foram datilografados e com eles formamos um volume de regular proporção. Pensávamos em escrever um livro, mas o considerável trabalho administrativo e a precariedade da resistência física cedo nos demoveram desse intuito.

            Mantendo-nos no propósito de dar à publicidade alguns tópicos dessa correspondência, já que o tempo e as circunstâncias atuais afastaram, em grande parte, os temores referidos por Wantuil, deveríamos designar, como de outras vezes o fizemos, alguém para realizar a tarefa. A escolha recaiu na pessoa de Suely Caldas Schubert, dedicada médium e estudiosa da Mediunidade há longos anos. Era necessário, segundo pensávamos, que o trabalho fosse executado por quem estivesse familiarizado com a teoria e a prática da Doutrina Espírita e com os assuntos e fatos gerais do Movimento; que bem conhecesse a pessoa e a obra de Chico Xavier; que estivesse para maior facilidade de consultas e contatos, ligado à Administração da Federação Espírita Brasileira e fosse, por isso mesmo, merecedor de sua confiança, e, se possível, com trabalho já publicado e bem aceito sobre temas pertinentes à Mediunidade. A autora de “Obsessão / Desobsessão - Profilaxia e Terapêutica Espíritas", convocada ao cometimento - dentro das coordenadas preestabelecidas - dispôs-se à obra, efetuando, inclusive, contatos pessoais com Chico Xavier e deste obtendo sugestões de valia e explicações para pontos menos explícitos de determinadas missivas.

            Transcorridos quatro anos, o livro ficou concluído. Recebeu a contribuição de companheiros na revisão a que foram submetidos os originais. Devidamente satisfeitas as formalidades legais com a obtenção da autorização especial do médium Francisco Cândido Xavier, para utilização, pela Federação Espírita Brasileira, da correspondência dirigida a A. Wantuil de Freitas, o trabalho está pronto para o prelo. As cessões de direitos autorais à FEB, sempre gratuitas, são, neste livro, da autora e do missivista.           

            De futuro, certamente, outras cartas integrarão novos estudos e comentários, pois, por ora, somente parte das cartas aludidas está sendo objeto de publicação.

*

            Bem documentada para responder às agressões contínuas a que a submetem pessoas afoitas, nem por isso se abalançou a Federação a dar-lhes resposta, cônscia de seus deveres e responsabilidades, atenta às diversificadas áreas de sua atuação no Movimento, cuidando da divulgação da Doutrina e impondo-se pelas obras que realiza, ocupada com as atividades da Unificação dos Espíritas, com a Educação Espírita das Gerações Novas e com o Estudo Sistematizado do Espiritismo. Sua revista "Reformador", centenário porta-voz da Casa de lsmael, continua primando pelo equilíbrio e pela sensatez, enquanto os demais órgãos e serviços da Casa prosseguem trabalhando e o Espiritismo estende em todas as direções a sua influência. A presença da Federação transcende as fronteiras do País e neste é sentida nos empreendimentos e realizações mais respeitáveis.

            A obra do livro espírita ganha proporções jamais vistas, assegurando a continuidade da Revelação progressiva da Doutrina dos Espíritos.

            Por intermédio de Chico Xavier temos recebido do Plano Mais Alto - e bem assim através de um pugilo valoroso de outros médiuns cristãos - desenvolvimentos e esclarecimentos dos ensinos que foram confiados a Allan Kardec e à Equipe de seus abnegados auxiliares e cooperadores.

            A Federação Espírita Brasileira, publicando os “livros-astros" da Espiritualidade Superior, ao longo de decênios dessa transferência de conhecimentos avançados, o fez graças à sintonia ideal estabelecida entre Chico Xavier, Emmanuel e Wantuil de Freitas, o que fica demonstrado por palavras simples e precisas do médium e da coordenadora/ comentadora da correspondência que para esse fim lhe confiamos.

            É o compromisso da Mediunidade com Jesus, permitindo e facilitando às pessoas simples de coração e aos sedentos da alma - ao povo faminto de consolação e de esclarecimento -, mas valorizando a inteligência, o estudo e o trabalho em todos os níveis de evolução dos seres humanos, o acesso à Mensagem excelsa do Consolador prometido e enviado pelo Senhor.

            Mostrando, por dentro, o processamento de luminosas e sacrificiais realizações, este livro cumpre a sua finalidade.

            Os detalhes necessários às elucidações ficaram a cargo da autora. Neles não precisamos entrar. Concordamos com as considerações e ponderações dela, com as
transcrições e citações de textos de apoio doutrinário e evangélico, de páginas de Allan Kardec, Léon Denis e credenciados escritores e médiuns.

                                                                                   *
  
            O Porvir reservar-nos-á ensejos novos de estudo da Grande Planificação Espiritual que deu origem às contribuições de Chico Xavier / Emmanuel, interessando milhares de Espíritos que seguem as inspirações do Cristo de Deus e, no Brasil, do Guia Ismael, cuja Casa, na feliz definição de Chico Xavier, é “comparável a um Estado da Espiritualidade na Terra".

            Encerrando estas linhas, queremos consignar aqui, de maneira explícita e muito sincera, a nossa solidariedade à conduta exemplar de Francisco Cândido Xavier, também carinhosamente conhecido pelo nome de Chico Xavier.

            Que a Paz de Jesus, Nosso Senhor e Mestre, seja com todos nós.

Brasília (DF), 14 de julho de 1986
Francisco Thiesen
Presidente da Federação Espírita Brasileira



 Antônio Wantuil



Apresentação

            A correspondência de Chico Xavier a Wantuil de Freitas, ora parcialmente tornada pública pela gama de ensinamentos que transmite, é impressionante depoimento sobre a vida desse autêntico missionário do Cristo que é FRANCISCO CÂNDIDO XA VIER.

            Através dos trechos dessas cartas, a verdade dos fatos vem à tona de maneira cristalina, apagando vestígios de possíveis distorções e dirimindo dúvidas.

            Ao nos inteirarmos do conteúdo dessa correspondência, enorme e profundo sentimento invadiu-nos. À emoção unia-se a admiração e a perplexidade. Comovemo-nos por encontrar o Chico na intimidade de suas lutas. Jamais ele aparecera assim aos olhos do mundo. Aqui estão seus depoimentos pessoais, os seus sentimentos mais íntimos, a sua vivência de cada dia portas adentro do próprio coração.

            Em muitos instantes a confissão de seus sofrimentos, de suas reações ante as perseguições soezes, as calúnias torpes que lhe eram lançadas, as criticas ferinas e agressões que com espantosa frequência se repetiam em seu cotidiano causou-nos impacto muito grande.

            A verdadeira dimensão da figura humana de Chico Xavier surge assim através de suas cartas. Estas representam o sinete da autenticidade da vida missionária de um dos maiores médiuns psicógrafos que o mundo conhece.

            Passo a passo vamos acompanhando-lhe a trajetória. A sua vida é a mais lídima mensagem de amor e paz do nosso tempo.

            Sua obra se reveste de característica singular, pois fala não apenas por ele mesmo, mas também por Emmanuel, a nobre entidade que é o seu guia espiritual; por Bezerra de Menezes, que durante mais de meio século dirige a sua mediunidade receitista; por Humberto de Campos e André Luiz; por centenas de poetas e muitos escritores, perfazendo um sem-número de autores para um único médium!

            A oportunidade de comentar parte da riquíssima correspondência de Chico Xavier para Wantuil de Freitas, no tempo em que este ocupou a Presidência da Federação Espírita Brasileira, trouxe-nos também o ensejo de constatar a notável coerência de seus depoimentos ao longo dos anos. É admirável encontrarmos nessas cartas muitas das citações que ele faz em entrevistas as mais diversas, realizadas mais de 30 ou 40 anos depois, em todas mantendo sempre o mesmo relato fiel e coerente.

            Chico Xavier! Nome repetido, amado e respeitado!

            Quantos são os consolados, os esclarecidos, os acordados para a vida, os salvos da morte, os redimidos, os que reviveram na esperança, os que aprenderam a amar, os que retornaram ao Cristo através da sua mediunidade abençoada?

            Quantos renasceram para a vida após serem atendidos por ele?

            Quantos ingressaram no Espiritismo graças às suas páginas psicográficas?

            Quantas obras assistenciais foram inspiradas por ele?

            A força dessa figura humana exponencial, frágil na sua aparência, dimana principalmente do exemplo, da sua extraordinária vivência evangélica.

            Estas cartas propiciam-nos uma visão mais completa de Chico Xavier.

            Lendo-as, vamos gradativamente descobrindo que os testemunhos dolorosos fazem parte da “subida através da luz” na feliz expressão de Emmanuel sobre o livro "Luz Acima", comentado por nós no transcurso desta obra.

            As lutas, as dores, as perseguições são íntimas companheiras do médium e lhe maceram o corpo e a alma, deixando cicatrizes profundas. São as "marcas do Cristo" de que nos fala o apóstolo Paulo.

            Os comentários que fazemos dessa correspondência não trazem o intuito do elogio, mas sim o de reconhecer a verdade que está diante dos nossos olhos. A pretexto de não elogiarmos, não podemos incorrer no engano de permanecermos indiferentes ou omissos.

            A figura veneranda de Chico Xavier inspira-nos respeito e amor.

            O seu maior livro é a sua vida, que ele escreve página a página com as tintas do próprio suor, com sofrimentos e lágrimas na jornada sacrificial a que se impôs.

            Entretanto, fá-lo com amor e por amor.

            A sua obra psicográfica e caritativa é a mais eloquente lição de Doutrina Espírita. O tempo só faz consagrar a autenticidade de sua mediunidade.

            Os nossos comentários têm o propósito de evidenciar a programação espiritual entre Emmanuel e Chico Xavier, envolvendo a FEB, Wantuil de Freitas e uma equipe de trabalhadores dedicados; a vivência evangélica de Chico Xavier; a sua coerência doutrinária e a mediunidade com Jesus.

            Esperamos ter alcançado os nossos objetivos. Essa correspondência é riquíssimo filão de ensinamentos. Muita coisa mais poderá ser escrita a partir de agora.

            Estamos felizes pela honrosa incumbência que recebemos do Presidente da Federação Espírita Brasileira, Francisco Thiesen, de comentar parte das cartas de Chico Xavier para Wantuil de Freitas, no período de 21 anos desse intercâmbio.

            Leitor amigo! Você vai encontrar, a partir de agora, o mundo particular de Chico Xavier. Como nós, você  certamente ficará surpreso.

            Almejamos que este livro seja um estimulo definitivo para todos nós. Um estímulo que nasce da força viva do exemplo, das lições silenciosas que ele, Chico, nos transmite, das sementes que brotam nessa semeadura de quase 60 anos, dos frutos que o tempo sazonou, da coragem e da fé que sentimos renascer no recôndito de nosso coração ante a coragem é a fé de que ele dá testemunho dia após dia, dessa existência, enfim, que é um livro sublime.

            Erasto nos fala da missão dos espíritas:

            "Ide e pregai a palavra divina. É chegada a hora em que deveis sacrificar à sua propagação os vossos hábitos, os vossos trabalhos, as vossas ocupações fúteis. Ide e pregai. Convosco estão os Espíritos elevados. Certamente falareis a criaturas que não quererão escutar a voz de Deus, porque essa voz as exorta incessantemente à abnegação. Pregareis o desinteresse aos avaros, a abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranos domésticos, como aos déspotas. Palavras perdidas, eu o sei; mas não importa. Faz-se mister regueis com os vossos suores o terreno onde tendes de semear, porquanto ele não frutificará e não produzirá senão sob os reiterados golpes da enxada e da charrua evangélicas. Ide e pregai!

.......................................................................

            Ide, pois, e levai a palavra divina; aos grandes que a desprezarão, aos eruditos que exigirão provas, aos pequenos
e simples que a aceitarão; porque, principalmente entre os mártires do trabalho, desta provação terrena, encontrareis fervor e fé. Ide; estes receberão, com hinos de gratidão e louvores a Deus, a santa consolação que lhes levareis, e baixarão a fronte, rendendo-lhe graças pelas aflições que a Terra lhes destina." ("O Evangelho segundo o Espiritismo", cap. XX, item 4.)

            Esta é a própria Vida de Chico Xavier.

Juiz de Fora (MG), abril de 1985

Suely Caldas Schubert