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terça-feira, 4 de novembro de 2014

2b. AntiCristo senhor do mundo


AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935

2b

            Dez dias apenas depois daquele em que o Senhor Jesus "foi assunto ao céu", achando-se os apóstolos reunidos em Jerusalém, uma inesperada transfiguração se lhes operou, semelhante àquela de que fora teatro o cimo do Tabor.

            Se aí o Cristo, envolto em deslumbrante auréola, havia conversado com os espíritos visíveis de Moisés e de Elias, em presença de Pedra, Tiago e João, no cenáculo em que ocorreu a poderosa manifestação do Espírito Santo, foram as "virtudes do céu" que, sob a visível aparência de "umas como línguas de fogo", precedidas de "um estrondo como de vento que soprava com ímpeto", repousaram sobre os apóstolos, em cada um desenvolvendo os dons supranormais, mediante cujo influxo não somente eles, homens rudes e incultos, entraram a falar em vários idiomas, que lhes eram desconhecidos, perante a numerosa assembleia de israelitas e forasteiros de procedências diversas, que ali acorreram, atraídos pelo estrondo precursor da manifestação, mas adquiriram, no mesmo instante, a consciência profunda do seu ministério, tornando-se de então em diante "homens novos”, sem mais vacilações nem desfalecimentos, aptos para afrontar, destemidos, os poderes humanos e as resistências adversas do invisível, que lhes seriam, de concerto com aqueles, frequentemente opostas.

            De posse da herança maravilhosa que lhes transmitira o Mestre e em que acabavam de ser confirmados, converteram-se verdadeiramente em bandeirantes da fé, empreendendo frequentes excursões, de que a cidade de Jerusalém se constituiu o núcleo de irradiação, e indo alguns deles aos mais remotos confins da Palestina - posteriormente até muito mais longe - levar a boa nova de que o reino de Deus estava próximo e anunciar, não o Senhor crucificado, mas o Cristo redivivo.

            As conversões, desde o começo, entraram a ser obtidas aos milhares e não faltavam prodígios para testificar a autoridade de que se achavam investidos.

            Pedro e João, dirigindo-se um dia ao templo, a pragar, como o costumavam, notaram, junto à porta denominada Especiosa, a presença de um homem que era coxo de nascença e ali estendia a mão aos transeuntes, de cujos óbolos vivia. Detiveram-se um instante a contempla-lo e, como se obedecesse a uma inspiração do Alto, disse-lhe Pedro:

            - Olha para nós.

            Atendido, começou de acentuar a sua condição de pobreza, que sempre foi o apanágio e a ufania dos verdadeiros discípulos de Jesus, para em seguida transfundir-lhe a graça de que se sentia portador, nestes termos:

            - Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda.

            E no mesmo instante, auxiliado pelo apóstolo, que o tomou pela mão direita, "os pés e artelhos se lhe firmaram" e o homem começou a andar, entrando, com os dois, no templo, bem dizendo a Deus, na presença do povo, que se maravilhava do ocorrido.

            Aproveitou Pedro o fato para uma prédica exortativa, secundado por João, a qual, porém, não tardou em suceder a primeira reação dos vigilantes e interesseiros guardas da tradição mosaica. Foram ambos presos e levados no dia seguinte à presença do Sinédrio, sendo contudo soltos, depois de ameaçados, para serem, algum tempo depois, novamente metidos no cárcere, por intervenção do sumo sacerdote e dos saduceus, enfurecidos de inveja contra eles.

            "Mas um anjo do Senhor - refere o texto (Atos, V, 19) - abrindo-lhes de noite a porta do cárcere", os restituiu à liberdade, ordenando-lhes que voltassem a pregar no templo, o que fizeram no dia seguinte com o mesmo desassombro.

            Sucediam-se assim alternadamente a difusão da palavra divina e as perseguições que visavam embaraça-la,

            Estevão, "cheio de graça e de poder", na plenitude da mocidade, que comunicava ao seu verbo inspirado os arroubos do entusiasmo, tornando-o a tal ponto contundente que os adversários "não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito pelo qual ele falava", do mesmo passo que "fazia grandes prodígios e milagres entre o povo", é também preso e conduzido á reunião do Sinédrio, acusado, mediante falsos testemunhos, de proferir palavras subversivas "contra o lugar santo e contra a lei".

            Defende-se com eloquência, produzindo um longo discurso baseado nas Escrituras, mas, não podendo conter a sua indignação, remata-o com veementes apóstrofes aos "homens de dura cerviz, incircuncisos de coração e de ouvido", que se haviam tornado "traidores e homicidas" relativamente ao Justo anunciado nas profecias, o que lhe valeu ser violentamente arrastado, posto fora da cidade e apedrejado.

            "E as testemunhas - refere o autor dos Atos dos Apóstolos - depuseram as suas capas aos pés de um moço chamado Saulo. E apedrejaram Estevão", até vê-lo expirar, invocando o Senhor Jesus e suplicando o perdão para seus algozes. "E Saulo - acrescenta a narrativa - consentiu na sua morte".

            Não somente consentiu nessa bárbara imolação da primeira vítima ilustre que, depois do Mestre, havia de continuar a gloriosa cadeia dos Sacrificados pela redenção dos homens, senão que, arrebatado nos desvarios do zelo farisaico, marcaria de um violento contraste a primeira fase da missão que lhe estava reservada, fazendo-se implacável perseguidor da Igreja cristã.

            É assim que, munindo-se de cartas do sumo sacerdote para as sinagogas de Damasco, pôs-se a caminho, resolvido a fazer prender e conduzir para Jerusalém quantos encontrasse no serviço do Senhor.

            "Vaso escolhido, entretanto, para levar o Seu nome perante os gentios e os reis, bem como perante os filhos de Israel", essa atitude inicial de Paulo serviria apenas para demonstrar até que ponto, amortalhado na matéria, exposto às adversas sugestões do oculto, pode o espirito, mesmo de tamanha envergadura, padecer uma verdadeira obsessão que, produzindo-lhe o fanatismo religioso, lhe oblitere o senso da missão com que viera ao mundo e a cujo desempenho esteve ele, Paulo, na iminência de falir.

            Mas o Senhor, vigilante, o observava. Tanto, pois, que, "respirando ainda ameaças e morte contra os Discípulos", se avizinhava de Damasco, sentiu-se Paulo de repente envolto em deslumbrante claridade. Cai por terra, e uma voz, que lhe não era certamente estranha, percute lhe a consciência e os ouvidos: "Saulo, Saulo, porque me persegues?"

            Acordado assim do pesadelo espiritual que o atormentava e que até então estivera longe de perceber, brada em resposta: "Quem és tu, Senhor?" E logo a transfiguradora revelação: "Eu sou Jesus, a quem tu persegues".

            Estava operada a sua conversão e definitivamente neutralizada a manobra do AntiCristo - que outra não era a origem da obsessão de Paulo. - E aquela dileta ovelha, algum tempo tresmalhada, regressava triunfante ao aprisco, não somente para ser a coluna viva, o atleta inconfundível da organização cristã, mas para ser também glorificada no indispensável batismo das perseguições, consoante o aviso dado pelo Mestre, em visão, ao discípulo Ananias, de Damasco: "Eu lhe mostrarei quanto lhe é necessário padecer pelo meu nome".

            Curado, por esse discípulo, da cegueira psíquica, de que fora momentaneamente acometido na estrada, ao manifestar-se lhe o Senhor, é incorporado à comunhão dos crentes e, depois de batizado, entra ali mesmo em Damasco a pregar que "Jesus é o Filho de Deus", deixando atônitos os israelitas da cidade, que não compreendiam essa mudança de atitude e "deliberaram entre si tirar-lhe a vida".

            Conseguindo, porém, subtrair-se à ronda sinistra dos que “guardavam também as portas dia e noite para o matar", auxiliado pelos discípulos, que "o tomaram de noite e o desceram pela muralha, baixando-o numa alcofa", encaminha-se Paulo a Jerusalém e aí, depois de vencida a natural relutância dos fieis, ainda atemorizados por suas recentes façanhas, integra-se na comunidade dos apóstolos, cuja atividade evangelizadora, até esse momento circunscrita aos da nação judaica, se incumbe de ampliar aos gentios, imprimindo à propagação do Cristianismo o cunho de universalidade, que estava nos desígnios do Mestre.
 

            Antes, porém, de acompanharmos neste rápido escorço a trajetória desenvolvida pela Boa Nova, até implantar-se na capital dos Césares, para aí receber o batismo supremo das perseguições em massa, detenhamo-nos a assinalar um dos caracteres mais expressivos que, logo de começo, lhe foi impresso pelos imediatos continuadores de Jesus, suficientemente compenetrados do seu pensamento, que de resto continuava a assisti-los, inspirando-lhes os movimentos, para sentirem a necessidade imperiosa de conformar não apenas os seus atos individuais, mas as próprias condições de sua vida, coletivamente organizada, com os fraternos e igualitários preceitos da doutrina. 

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