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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

3b. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1939

3b


            Com intermitências, a que já tivemos ensejo de aludir, as perseguições aos cristãos, ora postas em pratica sistematicamente, como no reinado de Trajano e, mais tarde, no de Severo, ora interrompidas sob Cômodo e seus imediatos sucessores que, por sua tolerância, permitiram desenvolver-se tranquilamente a Igreja, para serem ulteriormente renovadas por Décio e, no fim de seu reinado, por Valeriano, suspensas novamente por Galiano, as perseguições - dizemos - vieram a ter o seu apogeu, por assim dizer, final sob o imperador Diocleciano que, ouvido um conselho de notáveis, em cuja opinião "convinha extirpar uma seita que, constituindo um Estado no Estado, lhe estorvava a ação e podia ameaçar-lhe a existência", deliberou efetivamente extirpa-la "com todas as raízes".

            Dessa fase culminante assim nos dá noticia o já citado historiador:

            "No dia das festas Terminus (23 de fevereiro de 308) o prefeito do pretório e os principais funcionários entraram à força na igreja principal de Nicomedia, onde não encontraram nenhum objeto de culto; depois de terem queimado a Escritura, derribaram em poucas horas o edifício, que, por ser erguido na parte mais alta e mais populosa da cidade, dominava o palácio imperial.
            "No dia seguinte promulgou-se o edito de proscrição geral. Em todas as províncias seriam demolidas as igrejas: pena de morte a quem assistisse a conventículos secretos; ordem de entregar os livros santos, para serem queimados solenemente; os bens das igrejas vendidos em praça, ou sequestrados, ou doados a corporações ou a cortesãos. Demais determinou-se que quem recusasse prestar homenagem aos deuses de Roma seria castigado, sendo homem livre, com a privação de honras e empregos, sendo escravo, com a perda do direito de emancipar-se. A lei deixou de proteger uns e outros; aos juízes cumpria receber quaisquer acusações contra os cristãos.
            “Tal era, em substância, o decreto, que, se não fosse atestado por muitos historiadores, pareceria fábula. Envolvia numa perseguição rancorosa uma grande parte do mundo, permitia e dava liberdade a todas as violências, a todos os ódios particulares, sem ao menos deixar às vítimas o direito de se queixarem. O juiz, em vez de ponderar a acusação com as provas, devia tão somente descobrir, perseguir, martirizar quem fosse cristão ou quisesse salvar um cristão.
            "Conta-se que um fiel, mais generoso que prudente, lendo esse edito afixado em Nicomedia, rasgou-o e começou a invectivar os césares; ora, como os governos injustos castigam com a máxima severidade quem lhes conhece e revela os malefícios, esse infeliz foi queimado a fogo lento, para expiar o ultraje à majestade imperial, sem nunca - acrescentam as narrativas - se lhe apagar dos lábios o sorriso da paz, apesar da crueza do tormento.
            "Esse espetáculo e os aplausos, com que os cristãos saudaram o seu herói, enfureceram Diocleciano. Nesse dia, por duas vezes, pegou fogo no seu palácio de Nicomedia, e o imperador atribuiu o fato à vingança dos perseguidos, concertada com os oficiais de sua casa. Galero, simulando encontrar ciladas armadas em toda parte, não quis demorar-se mais na cidade, e o fraco césar deixou realizarem-se as mais ferozes execuções. "Encarceravam-se os sacerdotes - diz Lactâncio - e todos os ministros da religião; depois, sem serem ouvidos, sem sequer serem interrogados, levavam-nos a morrer. Os cristãos, sem distinção de idade ou sexo, eram condenados às chamas e, como havia muitos, não iam ao suplício a um por um: amontoavam-nos sobre os madeiros. Lançavam os escravos ao mar com pedras ao pescoço; a perseguição a ninguém poupava, e os juízes, estabelecendo o tribunal no templo, obrigavam todos a sacrificar. As prisões estavam cheias; imaginaram-se novos gêneros de tortura e, para ninguém escapar a tanta crueldade, ergueram-se altares defronte das grades das prisões e nos tribunais, a fim de que os acusados sacrificassem antes de se defenderem: compareciam, pois, não só na presença dos juízes, mas também na dos deuses".
            "As cenas de Nicomedia tiveram imitação nas províncias: as igrejas foram espoliadas e depois incendiadas. Uma cidade da Frígia, onde se temeram resistências, por ser grande o numero de cristãos que nela residiam, recebeu um destacamento de legionários. Quando eles chegaram, os habitantes refugiaram-se na igreja, deliberados a defender-se ou a morrer: os soldados incendiaram o edifício e queimaram-nos até o último."
            "Os cristãos foram também acusados, justa ou injustamente, de algumas rebeliões na Síria e nas fronteiras da Armênia; tanto bastou para que Diocleciano agravasse o rigor das ordens, parecendo empenhado em abolir o nome cristão.
            "A Espanha, apesar de depender de Constantino, encontrou no governador Daciano um feroz executor do edito de proscrição. Na Bretanha foi menor o rigor. Na África a perseguição fez numerosas vítimas e nem poupou Adauto, chefe do tesouro particular do imperador. Eusébio ouviu dizer que no Egito se cortaram tantas cabeças num dia que o machado ficou amocegado e os carrascos tiveram de revezar-se" Depois da condenação de muitos cristãos, viu o mesmo escritor apresentarem-se outros ao tribunal, confessando a fé e pedindo a morte: os sentenciados entoavam cânticos jubilosos até expirarem"
            "A igreja de Itália forneceu copiosa colheita de mártires: em Roma, o cômico Genésio, Pancrácio, de quatorze anos de idade, Inês, de doze, o milanês Sebastião, o padre Marcelo, o exorcista Pedro ; em Benavente o bispo Januário, tão querido dos napolitanos; em Bolonha, Agrícola e Vidal, seu escravo; em Milão, Nestor, Celso, Nabor, Félix, Gervásio e Portais; em Aquileia, Cancio, Canciano e Cancienilla, da família Anícia, glórias novas de um país onde até então a glória consistia em matar, não em sofrer.
            "A igreja gaulesa foi fecundada pelo sangue de muitos e ilustres mártires. Os servos do Cristo residentes em Viena e Lyon escreviam nestes termos a seus irmãos da Ásia e da Frígia que tinham a mesma fé e a mesma esperança: "O ódio dos pagãos estava tão exacerbado contra nós que nos expulsavam das casas, dos banhos, das praças, e em geral não suportavam que nenhum de nós aparecesse em público. Os mais fracos fugiram, os mais corajosos arriscaram-se à perseguição." Primeiramente o povo lançava-se sobre eles, confusamente, em chusmas, com vociferações, arrastando-os, esfarrapando lhes as roupas, lapidando-os, dilacerando-os, fazendo-os sofrer as maiores crueldades que o furor pode inventar; depois, conduzidos à praça, interrogados publicamente pelo tribuno, eram metidos em cárceres, até a chegada do governador. Compareciam afinal perante esse magistrado. Ora, como ele os tratasse cruelmente, Vetus Epagatus, mancebo de costumes irrepreensíveis e ardente fé, não podendo tolerar esse tratamento, pediu que lhe permitissem apresentar sua defesa e demonstrar que não eram ímpios. Quantos rodeavam o tribunal, todos se tumultuaram contra ele; o governador, em vez de lhe deferir a súplica, perguntou-lhe se era cristão. Vetus confessou a fé em altas vozes e teve lugar entre os mártires com o título de advogado dos cristãos. Houve uns dez a quem faltou força para resistir, por se não terem de antemão preparado para o combate. A sua queda nos causou viva aflição e diminuiu a coragem dos outros que, não estando ainda presos, acompanhavam os mártires e não os abandonavam, quaisquer penas que houvessem de sofrer. A incerteza em que estávamos relativamente a sua confissão nos conservava apreensivos, não que os tormentos nos assustassem, mas porque pensávamos no fim e temíamos que alguns deles não pudessem resistir às últimas provas."

            Nessa furiosa arremetida, caracterizada pelo ódio conjugado da populaça e dos agentes do imperador, a influência das forças reacionárias do invisível se patenteia com evidência igual à da pressão de idêntica natureza exercida sobre a plebe de Jerusalém, quando amotinada em frente ao pretório vociferava contra a Grande Vítima o "crucifica-o!" a que não saberia resistir a pusilanimidade de Pilatos. Que razões teria, com efeito, num e noutro caso a multidão para tamanho ódio? Ainda os césares e seus interesseiros instrumentos poderiam, hipócrita ou sinceramente, invocar as conveniências da "razão de Estado" para a feroz perseguição a criaturas, cujo único delito - é certo - consistia no seu grande idealismo e na pureza de seus irrepreensíveis costumes, mas que por isso mesmo constituíam protesto vivo e elemento de perturbação no ambiente dissoluto que tanto convinha aos dominadores, podendo mesmo, na lógica insensata do conselho de notáveis, a que Diocleciano recorrera, "ameaçar a segurança do império ". O povo, a cujos direitos, conculcados pelos opressores, tão admirável agasalho oferecia o código cristão, fraternista e igualitário, é que não tinha um motivo de consciência para o furor, em tais condições, gratuito e injustificável com que se lançava às vítimas inermes da perseguição" Só a sua ignorância, o nível inferior, a que aludimos, de sua evolução moral o tornava presa fácil das tenebrosas forças do invisível empenhadas, sob a implacável direção do AntiCristo, em impedir por todas as formas o florescimento do ideal cristão em nosso mundo"

            Já era tempo, todavia, de ser posto um paradeiro àquele sanguinolento batismo de três séculos, a que, violentamente submetido, o Cristianismo resistira com vitalidade incoercível. As últimas denodadas legiões de escolhidos Espíritos, enviados pelo Senhor a darem testemunho do seu nome e da imortalidade em presença da morte, haviam, como se vê, dado exemplar desempenho a sua missão. E se, entre eles, alguns porventura, na hora suprema, fraquejaram, é que nem todos eram da mesma têmpera, ou - o que é mais certo - segundo a exata expressão da carta enviada pelos fiéis de 'Viena e Lyon aos seus irmãos da Ásia e da Frígia, não se tinham "de antemão preparado para o combate", isto é, para receber, mediante a oração e vigilância, o socorro divino que os sustentaria, na serenidade e intrepidez, até o fim de seu martírio.

            Como quer que fosse, uma trégua se impunha, a fim de que a Árvore da Vida, fecundada pelo sangue de tantos mártires, frondejasse tranquilamente, alimentando com os seus frutos as gerações que se haviam de suceder na Terra e que só a sua acolhedora sombra poderiam prosseguir no trabalho de aperfeiçoamento e de progresso que seriam chamadas a realizar.

            É certo que a cessação das perseguições marcaria o ocaso do Cristianismo glorioso e heroico. A partir de então, começaria o seu declínio interior. Não era esse, todavia, o inevitável destino que lhe estava reservado, em conflito com as forças reacionárias que, do invisível, o vinham sistematicamente combatendo e não têm cessado de o combater até agora?


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