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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4f. AntiCristo senhor do mundo


4f


            Voltemos ao patriarca.

            Entre as numerosas conversões que obteve, conta-se, em 1213, a do fidalgo Orlando de Chiusi de Consentino, que ofertou à Ordem a propriedade do Mont’ Alverne, tornado célebre não somente pelas demoradas visitas que a ele fez posteriormente o apóstolo, mas pelo fenômeno de estigmatização, que aí se lhe produziu e de que adiante falaremos.

            Prosseguindo a obra de evangelização com êxito crescente, quer pela entrada de novos irmãos na Ordem, quer pelo acolhimento que da parte do povo encontrava, operando sensível ressurgimento da fé e melhorando os costumes, promovendo, numa palavra, uma verdadeira restauração, pelo menos parcial, da Igreja Cristã, houve que amplia-la a outros países da Europa e ao Oriente, para onde Francisco enviou alguns de seus abnegados companheiros, seguindo ele mesmo, em 1219, com outros irmãos para o Egito, a anunciar a Boa Nova (1).

            (1) Dos frutos dessa evangelização nos dão noticia os trechos seguintes de uma carta de Jacques de Vitry, citada pelo cronista de cujos depoimentos nos temos socorrido:
               "Tenho a dizer-vos que, Maitre Reynier, prior de S. Miguel, entrou na Ordem dos Irmãos Menores, ordem que por todos os lados se multiplica muito, porque imita a Igreja primitiva e segue em tudo a vida dos apóstolos.    "O mestre desses irmãos chama-se o irmão Francisco: é tão amável que se faz venerar por todos. Vindo para o nosso exército, não temeu, por zelo pela fé, as iras dos nossos inimigos.
               "Colin, o inglês nosso letrado, entrou na mesma Ordem, assim como dois outros dos nossos companheiros, Miguel e D. Matheus, ao qual eu tinha confiado o curato da Santa Capela. Castor e Henrique fizeram o mesmo, bem como outros cujos nomes esqueço."
           
            Antes disso, porém, ocorreu um sucesso que merece destaque. Levado a Roma pelo cardeal Hugolino, que tomara como protetor da Ordem, contra a má vontade do sacro colégio, e obrigado a pregar diante do papa, Francisco de Assis, tendo preparado a sua oração, no momento de a proferir, esqueceu completamente o que escrevera e humildemente o confessou. Mas tão inspirado logo se sentiu que improvisou um eloquente discurso, com que subjugou toda a assistência.

            Ali sofreu ele a primeira investida contra a pureza institucional da sua comunidade. Encontrando-se com o patriarca da Ordem dominicana, pretendeu este induzi-lo a fundir na dele a Ordem franciscana, para satisfazer os desejos do papado e também para melhor desse modo retribuir os favores que da cúria romana recebera, em virtude dos quais não hesitara em adoptar na sua comunidade a regra de S. Agostinho.

            Francisco de Assis opôs-se formalmente: "queria isolada e simples a sua querida Ordem dos irmãos menores".

            O inimigo, entretanto, não desanimou. Enquanto Francisco evangelizava no Oriente, o cardeal Hugolino, que só hipocritamente se fizera protetor dos franciscanos, impunha às clarissas a regra beneditina, a que tanto se opusera o patriarca, ao mesmo tempo que os substitutos deste no governo da Ordem, atraiçoando a confiança que neles fora depositada, "mitigavam os votos, multiplicavam as observâncias, precipitavam a Ordem na imitação das antigas, adstringindo-a a meras prescrições ritualísticas".

            Avisado Francisco de Assis do que ocorria, regressou imediatamente do Egito e ficou desolado, ao encontrar "evidentes sinais de relaxação: os frades já eram proprietários", violando assim o voto de pobreza absoluta que haviam feito.

            Recorrendo ao cardeal Hugolino, este, em lugar de apoiar o patriarca, procurou convence-lo de que "convinha entrar a Ordem sem demora no regime habitual do catolicismo, aceitando as concessões de Roma". O privilégio das irmãs clarissas foi cassado, e o papa Honório III expediu em 1220 uma bula modificando os dispositivos da regra franciscana.

            Diante desse criminoso desmoronamento da sua amada comunidade, no que se refere ao espírito em que fundamentalmente a instituíra, Francisco de Assis, com a alma transpassada de amargura, reuniu em setembro daquele ano o último capítulo geral, a que presidiu, e abdicou suas funções em Pedro de Catania, dizendo aos companheiros: "De ora avante, irmãos, morri para vós; mas eis aqui o irmão Pedro de Catania, a quem todos vós e eu obedeceremos".

            Fiel aos seus sentimentos de humildade, não tendo embora senão lágrimas no coração para presenciar a deturpação da obra que com tanto amor edificara, conservou-se o patriarca na prometida obediência, assistindo ainda ao capítulo geral de 1221, em que Pedro de Catania foi, a seu turno, substituído pelo irmão Elias.

            Terminara para a Ordem o período de inspiração e liberdade, entrando ela no regime de absoluta sujeição à igreja.

            "O santo - informa o cronista - deixando a Porciúncula, buscou a solidão nas montanhas da Úmbria. Em 1224 assistiu ele pela última vez ao capítulo geral, dirigindo-se em seguida, com os irmãos Masseo, Ângelo e Leão, para o famoso Mont'Alverne".  Alí ocorreu, na manhã de 14 de setembro, após uma longa vigília de penitência e oração, o fenômeno de estigmatização, a que aludimos.

            "Nos raios quentes do sol a erguer-se, o qual, sucedendo ao frio da noite, vinha reanimar lhe o corpo, distinguiu de repente o santo uma forma estranha. Um serafim, asas abertas, voava para ele dos confins do horizonte, inundando-o de alegrias inexprimíveis. No centro da visão aparecia uma cruz e o serafim estava pregado nela. Quando a visão desapareceu, sentiu que às delicias do primeiro momento se juntavam dores pungentes. Profundamente confundido, procurou com ansiedade a significação de tudo isso e encontrou, impressos em seu corpo, os estigmas do Crucificado".

            Tratou de ocultar humildemente os sinais glorificadores, passando desde então a andar calçado e escondendo as mãos nas mangas do hábito, mas não tardou em ser descoberto, daí lhe provindo a conhecida designação de "São Francisco das Chagas".

            Em fins de setembro deixou para sempre, com profunda saudade, o Mont' Alverne, dizendo adeus às arvores amigas e seguindo para a Porciúncula, onde pouco se demorou, entrando em seguida a evangelizar o sul da Úmbria.

            Era já o ocaso da sua missão. Ferido no amor exuberante com que servia ao Senhor e que se desdobrava enternecido por todos os seres da criação, não era mais que uma sombra angustiada e errante daquele jovial condottiere do Bem, que fraternizava com as aves, entoando, de conserto, hinos de glorificação ao Criador; que tirava as formigas e as lagartas do caminho, para não serem pisadas, e agasalhava na manga do hábito as cigarras, que lhe vinham cantar na palma da mão; que, em sua profunda humildade, não apagava as lâmpadas e as velas, “para não profanar a luz com o seu sopro", nem amarfanhava uma folha de papel escrito, porque podia conter as letras com que se escreve o nome de Jesus. O poeta, que compusera o maravilhoso "Hino do Sol", que celebrara as cariciosas belezas da Água, como das mais preciosas dádivas de Deus às criaturas deste mundo e tecera apaixonados madrigais a Dona Pobreza, continuava, sim, a bem-dizer e louvar o Criador por tudo e por todas as coisas, sem exceção do próprio sofrimento, com que exalta e aperfeiçoa as potencialidades da alma humana, mas não podia esquivar-se à infinita amargura que lhe resultava de ver lançada por terra a obra com que, no seu expressivo dizer, "Deus quisera fazer um novo pacto com o mundo".

            Esse traumatismo moral não podia deixar de afetar-lhe profundamente o organismo. Adoeceu, por isso, mais de uma vez, gravemente, sendo removido, em busca de melhoras, para a ermida de Monte Colombo, perdida entre árvores e rochedos, e mais tarde para Siena, sem resultado, sendo acometido de vômitos de sangue.

            Quis então voltar para a Úmbria. "Tinha pressa em rever a sua Porciúncula e os mais lugares que se avistam dos terraços de Assis e tão doces recordações lhe avivavam".

            Numa de suas mais agudas crises viram-no, ardendo em febre, levantar-se de repente na cama e bradar com desespero: - Onde estão os que me roubaram os irmãos? Onde estão os que me roubaram a família?

            "É necessário recomeçar - pensava alto - criar uma nova família, que não esqueça a humildade: ir servir os leprosos e, como outrora, pormo-nos sempre, não só em palavras, mas na realidade, abaixo de todos os homens".

            Na PorciúncuJa ditou um testamento para os irmãos menores e ditou outro para as filhas de santa Clara, "que interessados fizeram desaparecer".

            Aproximava-se o desenlace, cujas particularidades resumimos. Do palácio episcopal de Assis, onde ocorrera a derradeira crise, foi a seu pedido carregado pelos companheiros para a sua querida Porciúncula, detendo-se em caminho, para abençoar a cidade e dirigir-lhe, numa comovida prece ao Senhor Jesus, os últimos adeuses.

            No dia primeiro de outubro (1226) mandou que, despido, o deitassem na terra: queria morrer nas braços de sua dama, a Pobreza. Reposto no leito, a todos pedia perdão e abençoava.

            Da radiosa serenidade, com que encarava a sua próxima libertação, pode ajuizar-se pela despedida que antes, ainda em Assis, dirigira aos companheiros, exortando-os: "Adeus, meus filhos! ficai sempre no temor de Deus, ficai sempre unidos em Jesus. Grandes provações vos estão reservadas! a tribulação vem perto. Felizes os que perseverarem como começaram, pois haverá escândalos e cisões entre vós. Eu vou para o Senhor e para o meu Deus. Sim, tenho certeza de que vou para Aquele que eu servi".

            Depois disso, ainda reuniu ao pé de si os irmãos Ângelo e Leão e entoou com eles o cântico em louvor da morte corporal.

            O desenlace, porém, só veio a ocorrer na Porciúncula, como íamos descrevendo, ao cair da tarde de 3 de outubro, verificando-se por essa ocasião um tocante sucesso, assim narrado pelo irmão Boaventura:

            “À hora do passamento, as cotovias, aves que amam a luz e temem as sombras do crepúsculo, juntaram-se em grande número sobre o teto da casa, embora se aproximassem as sombras da noite, e, esvoaçando com certa alegria desusada, entraram a dar testemunho, tão gracioso quão evidente, da glória do santo, que costumava convida-las para louvarem a Deus".

            Saudado assim, do lado de cá, por esse coro de inocentes e delicadas criaturas, que um poder divino punha indubitavelmente em alvoroço naquele momento, para confusão dos néscios e edificação dos sapientes, penetrou os umbrais da imortalidade e foi, do lado de lá, recebido entre hinos glorificadores dos anjos do Senhor, aquele que, fiel até a morte, O servira com todas as potencialidades de sua alma, ébria de amor divino, e tudo fizera realmente para cumprir a determinação de "restaurar a sua Casa, na iminência de ruina".

            Pouco importa que, na obnubilação da consciência, que os infelicitava, não tivessem os detentores da direção visível da igreja aproveitado a misericordiosa lição e advertência que, pelo humilde "poverello" de Assis, lhes enviara o Senhor e de que voltaremos, no próximo capítulo, a ocupar-nos com o possível desenvolvimento. Nem por isso a obra franciscana, por sua repercussão nos costumes e na restauração da fé, entre membros do clero e no seio do povo, deixou de ser uma fecunda tentativa de salvação da igreja, indubitável, embora temporariamente apenas, obtida, amparando-a contra os mais graves efeitos da crise que a assoberbava e - tal a pressão oculta que a desorientava - apenas mitigada, não tardou em recrudescer, como vimos páginas atrás, desdobrando-se nos séculos imediatos.

            Rematemos, por agora, as referências ao sublime "poverello", por muitos com justo título denominado "o Cristo da Idade Média", assinalando que o prestígio de suas virtudes de tal modo universalmente se impusera que, menos de dois anos após o seu desprendimento, isto é, aos 26 de julho de 1228, com inobservância do interregno para casos tais estabelecido pela cúria romana, mas tendo em consideração os notórios e abundantes sinais de santidade patenteados em sua vida, o papa Gregório IX presidia em Assis às cerimônias da canonização e a 27 colocava a primeira pedra da famosa basílica consagrada S. Francisco".

            Assim - não é possível esquivar-nos ao oportuno comentário - os infiéis "vigários do Cristo" que, insensíveis à providencialidade e aos intuitos da obra franciscana, haviam atormentado a vida do seu excelso fundador, acabrunhando-o de desgostos pela impiedosa deturpação com que a mutilaram, tanto que o viram libertado, deram-se pressa em reivindicar para a periclitante igreja, que desgovernavam, a glória daquela figura incomparável. E eles, que lhe não tinham sabido respeitar as virtudes, nem muito menos imitá-las, arrogaram-se a autoridade, de resto meramente convencional e exterior, de conferir-lhe a santificação. Infiéis, todavia, uma vez mais ao espírito do Cristianismo, outra forma não encontraram, para glorificar a memória do que fora, antes de tudo, acima de tudo e sempre, o apóstolo da Pobreza, senão a ereção de uma basílica suntuosa.


            Incoerência de cegos, que se obstinavam em permanecer condutores de cegos!

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