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quarta-feira, 26 de junho de 2019

A Escola Kardecista e as Histórias da Filosofia



A Escola Kardecista 
e as Histórias da filosofia
por Luciano dos Anjos
Reformador (FEB) Outubro 1963

Somente a sua condição de missionário muito mais do que sua inteligência altamente evolucionada ou sua vastíssima cultura, é capaz de explicar satisfatoriamente a precisão com que Allan Kardec alcançou o futuro, prenunciando acontecimentos marcantes da história do Espiritismo. Ora clara, ora implicitamente, o Codificador deixou impressas, desde a época de sua missão terrena, não apenas respostas a numerosas questões que - notem bem – ainda não podia sequer ser formuladas mas também descrições exatas duma série de fatos ligados à nova doutrina que legava ao mundo, mercê da confiança do Espírito da Verdade. Kardec parecia adivinhar todo o desenrolamento do processo evolutivo do Espiritismo, inclusive suas fases negativas, embora provisórias sempre. Até esses pequenos problemas que às vezes registamos nas nossas fileiras foram assinalados com perfeita presciência e sugeridas "a priori" as soluções mais adequadas. Acima de tudo, porém, Allan Kardec anunciou essa inevitável passagem histórica: o Espiritismo seria em principio galhofeiramente ridiculizado; mais tarde, duramente combatido e perseguidos os seus adeptos; finalmente, seria adrede ignorado a fim de que se desvanecesse por completo ante uma sequência de interesses mesquinhos e pessoais. Já estamos vivendo essa última fase, fazendo-se mister reafirmar apenas - para que ninguém se iluda - que tal desprezo é calculado, pensado, medido, estudado, lembrando o comportamento dos poderosos do tempo do Cristo, quando sentiam prazer em enganar-se a si próprios, ignorando, propositalmente, a presença do Messias ou a influência que exercia sobre a plebe. Essa posição de alheamento acabou por soterrá-los com a glorificação do Cristianismo. Tanto mais encenavam sua despreocupação pelo Mestre, mais Ele punha em risco os alicerces pagãos, culminando por abatê-los e com eles as águias do Capitólio. Embora inerme, Jesus assinalou a maior vitória duma ideia ou dum movimento popular. Sem competir com o poder civil, dividiu o mundo em Antes e Depois do Cristo.

As mesas girantes, em princípio, serviram de tema aos "chargistas" da época, tornando-se motivo de chacota, zombaria ou curiosidade deletéria nas rodas de elegância, nas colunas da imprensa e nos saraus intelectuais de Paris. Como mais tarde alguns dos maiores vultos da ciência europeia e americana tomassem parte de experiências largamente difundidas, não foi mais possível encarar o assunto com os mesmos risos e passou-se então a discuti-lo, para depois combatê-lo asperamente. Mais do que qualquer outro, o clero investiu furente, intumescido de iracúndia contra as novas ideias, usando de todo o seu poder e a sua cavilação. Lançou mão, por isso e para isso, dos argumentos mais esdrúxulos, desde a negativa dos fenômenos até as explicações exclusivamente anímicas: ou, ainda, mais modernamente, profligando a "ocasião" que as sessões mediúnicas oferecem ao demônio. Hoje, desde algum tempo a esta parte, o Espiritismo entrou na sua fase de verdade que atemoriza os arautos da mentira e da imoralidade. E, se ele cresce no selo dos humildes e dos estudiosos mais honestos, os "fariseus" da atualidade se preocupam, paradoxalmente, em não se preocupar com ele ou não lhe emprestar a devida atenção.

Em 1875, pouco menos de 20 anos após o aparecimento de "O Livro dos Espíritos", o famoso “Dictionnaire Larousse" consignava em suas respeitáveis páginas que o Espiritismo estava em franco declínio e que Allan Kardec houvera apoiado suas teorias em "cenas grotescas para constituir sua doutrina, destituída de pesquisa, de reflexão, de meditação" e envolta num mistério distante "das leis físicas e da constituição positiva das coisas". Nas edições subsequentes, contudo, esse "parti pris" foi abrandecendo, tendo em vista, sem dúvida, os pareceres e as experimentações do mundo científico. Em 1900 o "Larousse" já não fala mais em Kardec e, posteriormente, diz tão-só quem ele foi, sem maiores comentários: "escritor francês, nascido em Lião, falecido em Paris (1803-1869), autor do "Livro dos Espíritos", ''Livro dos Médiuns", “Evangelho segundo o Espiritismo", etc. O “Larousse du XXe. Siècle” dedicou-lhe 16 linhas onde já se pode ler, nas duas finais: “il est, en quelque sorte, le législateur du Spiritisme." Mais tarde, o “Nouveau Larousse Illustré”, sem corrigir o equívoco da data do nascimento de Kardec (1804 é o certo), emprestou-lhe 11 linhas, registando ainda que "ses doctrines spirites furent appelée KARDECISME et ses partisans KARDÉCISTES. Por seu turno, “La Grande Encyclopedie” em suas útimas edições registra apenas (aliás, erradamente)  que Allan Kardec “fils d’un advocat, il s’adonna de bonne heure à l’étude du spiritisme, après  avoir reçu une bonne éducation philosophique et scientifique; son goût pour le merveilleux fut éveillé dès qu’il entendit parler des tables tournantes, des esprits frappeurs et des médiuns qui faisaient rage en Amérique”. Ora, aquele "de bonne heure" não tem sentido, pois é sabido que Allan Kardec só depois de muita relutância resolveu investigar os fenômenos, não lhes aceitando de pronto as explicações que então corriam. Da mesma forma "son goût pour le merveilleux" não foi acordado em tempo algum, sendo conhecido o seu frio comportamento ante os fatos que, de resto, acabou por designar de absolutamente naturais!

O correr do tempo serviu para melhorar a posição de enciclopedistas e dicionaristas ante a figura do Codificador, embora, paralelamente, aumentasse a reserva com que lhe consignavam o nome.  A "Enciclopedia Italiana" de 1933 concede-lhe algumas linhas, nas quais, inclusive, não esquece de citar Flammarion, além das obras de H. Sausse e E. Carreras como fontes bibliográficas.

Em 1957, o “Dizionario Enciclopedico Italiano” copia o texto da “Enciclopedia Italiana”, sem esquecer de resumi-lo um pouco mais. A “Encyclopaedia Britanica” (ed. de 1911 e 1954), como é de se esperar, nada fala de Allan Kardec. Da mesma forma a “The Enclyclopedia Americana", edição recentíssima de 1958, ignora a existência do Codificador. Em Portugal, a “Enciclopédia Portuguesa ilustrada” traduz e consigna o texto do “Nouveau Larousse” num escorço de 25 consoladoras linhas. Edição recente da "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” contrabalançou o breve entusiasmo de seus colegas editores e fala apenas no "escritor francês que escreveu obras de divulgação espirita". O “Lello Universal” {1958) é ainda mais cauteloso, embora assinalando que “as doutrinas espíritas foram denominadas kardecismo e os partidários delas kardecistas". No Brasil registra-se confortadora exceção à regra geral e, mais do que na França, onde Kardec reencarnou, sua figura e sua obra são melhor apreciadas. Por isso a edição de 1968 do "Dicionário Enciclopédico Brasileiro" (ed. "O Globo") vai ao ponto de imprimir-lhe o busto em tamanho regular; assinala erradamente que Kardec era "formado em Medicina sem todavia dedicar-se à profissão". O equívoco decorre de que costumava curar os enfermos pelo hipnotismo, com passes magnéticos. A “Enciclopédia e Dicionário Internacional”, impresso nos EUA pela W. M. Jackson, 55 excelentes linhas, exceto quanto aos trechos em que diz que AIIan Kardec “faliu, dando um prejuízo total a seus credores", sem dúvida uma informação falseada e aquém da verdade histórica. A firma era de sociedade com outro elemento, este, sim, bastante inescrupuloso, cuja conduta resultou na insolvência. Allan Kardec, porém, depois de dissolver a sociedade, pagou do seu próprio bolso todas as dívidas decorrentes da ação criminosa do ex-sócio. Quanto à “Enciclopédia Brasileira do Mérito”, edição de 1958 (quiçá o melhor trabalho enciclopédico já realizado no Brasil, por brasileiros), também faz justiça a Allan Kardec com 38 linhas muito boas, equivocando-se apenas quando diz que “O Livro dos Espíritos” lhe teria sido comunicado através de um médium”. Sabemos que os médiuns foram mais de dez e o condicional do verbo sem dúvida não tem sentido. Assinalemos finalmente a referência muito disparatada que o nosso Caldas Aulete faz na edição de 1958 do seu "'Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa”: “Kardecismo: doutrina que se diz mais perfeita que o espiritismo ortodoxo.”

Por seu turno, os dicionários filosóficos mais conhecidos (os poucos existentes) absolutamente não registam o nome de Allan Kardec, assinalando apenasmente, os mais modernos, a epígrafe “Espiritismo”, regra geral seguida de lamentáveis erros, comentários absurdos e detalhes históricos inteiramente desfigurados, além dum emaranhamento com doutrinas outras do Oriente e da Antiguidade, tudo isso sem nenhuma referência ao nome do Codificador. Em resumo, podemos verificar, diante do exposto, que no momento vivemos - se assim a pudermos chamar - a terceira época do Espiritismo, quando, salvo raras exceções, luta o farisaísmo hodierno para ignorá-lo ou não elegê-lo devidamente, no campo da Literatura, da Ciência, da Educação, da Filosofia, etc. Mas, quer queiram, quer não, ainda que diante de todas as objurgatórias da Igreja, da ciência oficial ou dos "donos" da história da Filosofia, há e haverá sempre, cada vez mais acentuada e mais consolidada, uma escola kardecista, tanto quanto existe a escola socrática, platônica, aristotélica, cartesiana, kantiana, patrística, etc. Isso é o que pretendemos demonstrar, embora a evidência axiomática dos fatos praticamente torne dispensável a nossa tarefa.
Seria exagero de nossa parte pleitear junto a determinados historiadores - como por exemplo o padre Leonel Franca ("Noções de História da Filosofia") - que inserissem em seus trabalhos o pensamento filosófico de Allan Kardec. Sem dúvida as partes dedicadas à escola patrística, ou à escolástica ocupam o espaço bastante para impedir quaisquer outras novas referências desse tipo. O mesmo podemos dizer de outros trabalhos como a “Histoire Générale de la Philosophie”, do eclético Victor Cousin, cujo final de vida foi uma espécie de comunhão reaproximativa com a Igreja Católica. Ou o "Breve Curso de Filosofia", do escolástico italiano Francisco M. Terlizzi. Mas, quantas obras do mesmo gênero já se publicaram e em cujas páginas poderia (ou deveria?) pelo menos citada a existência do kardecismo como corrente filosófica? Embora criticada, desapoiada ou desacreditada pelos autores respectivos, o mero registo parece a nós justo e curial. Afinal, existe uma filosofia espírita, em torno da qual surgiu e medrou uma escola definida, permanente, sempre mais numérica a cada novo dia.

Só um cego da alma ou um ignorante em assuntos de cultura, é capaz de negar o autêntico aspecto filosófico que caracteriza o Espiritismo tal como se encontra sistematizado nas obras de Allan Kardec. Aliás, é exatamente quando toma um corpo filosófico que o Espiritismo - diz o próprio Kardec -  passou a ser levado mais a sério. "Sua força está na sua filosofia" ("O Livro dos Espíritos", página 470, 28ª edição da FEB). Principalmente em “0 Livro dos Espíritos", bem como nas demais obras de Allan Kardec, quase todas as questões que ali se contém aparecem obrigatoriamente em qualquer tratado de Filosofia, "O Espiritismo - são ainda expressões de Allan Kardec -, tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do Universo toca forçosamente na maior parte das ciências." ("A Gênese". pág. 22, 13ª ed. da FEB.)

O pensamento kardecista (sabemos que a obra de Allan Kardec é antes dos Espíritos do que propriamente sua mas em termos de filosofia histórica não podemos expressar-nos doutra forma) divide-se em três grandes chaves nas quais se incluem respectivamente as partes de Filosofia, Ciência e Religião, tratadas através de cinco substanciosas obras: "O Livro dos Espíritos", "O Livro dos Médiuns", "O Evangelho segundo o Espiritismo", "O Céu e o Inferno" e "A Gênese". A estas podemos ainda acrescentar: “O que é o Espiritismo” e “Obras Póstumas”.

O volume principal, sabemos todos, é “O Livro dos Espíritos"; não apenas histórica e cronologicamente, mas acima de tudo doutrinariamente, pois, sendo a obra central do Espiritismo, nele se consubstancia todo o embasamento da doutrina. Os outros livros, ampliando aspectos especiais, estão diretamente vinculados a “O Livro dos Espíritos”. Neste, temos a ideia dum conjunto homogêneo, revelando que a doutrina não pode ser fracionada em suas partes integrantes. A base, portanto, é integra e una. Sua parte religiosa trata de Deus e dos Seus atributos, apresentando-nos um Criador cheio de amor e bondade para quem todos serão salvos, sem exceção. Trata também da questão dos anjos e dos demônios, bem como dos gênios, protetores, anjos de guarda, etc., mostrando-se com clareza o que eles representam. Perpassa pelos problemas da adoração e acentua o valor inestimável da prece, sua utilidade e sua necessidade imprescindível.

A parte científica ensina o que é o Espírito, o que é a matéria, suas ações reciprocas, propriedades, etc. Inclui a formação dos mundos, sua pluralidade e habitabilidade, os seres orgânicos e inorgânicos, o materialismo, os reinos da Natureza, os diversos fenômenos, a metodologia da comunicação entre vivos e mortos.

Finalmente a parte não menos importante, a filosófica, trata do princípio e do porquê das coisas, das raízes do nosso sofrimento, de nosso destino, de nosso atraso, o que é a inteligência, o instinto, a razão. Cuida-se da palingenesia, do equilíbrio da Natureza, do bem e do mal, da destruição dos seres vivos, da existência de Deus, da natureza divina, etc. Falamos até aqui em termos de generalidade. Se quisermos, entretanto, poderemos dividir o pensamento kardecista em partes mais detalhadas e específicas, exatamente aquelas em que está dividida sua principal obra:

1º) - Causas Primárias (Deus; elementos gerais do Universo; Criação, princípio vital).

2º) - Mundo dos Espíritos (encarnação, desencarnação, pluralidade de existências; vida espírita, volta ao corpo material, emancipação da alma, intervenção no mundo físico, ocupações dos Espíritos e os três reinos da Natureza).

3º) - Leis Morais (adoração, trabalho, reprodução, conservação, destruição, sociedade, progresso, igualdade, liberdade, justiça, amor, caridade, perfeição moral).

4º) - Esperanças e Consolações (penas e gozos terrenos; penas e gozos futuros).

Dentro da obra kardecista topamos com assuntos ele íntima relação com diversas ciências, inclusive as chamadas ciências exatas ou positivas. À guisa de simples exemplo podemos assinalar que o cap. III da 1ª parte de "O Livro dos Espíritos" referente à Criação, cuida num só tempo de diversos problemas de Biologia, História, Geologia, Antropologia, etc. Também em “A Gênese”, especialmente nos capítulos VII a XII, encontramos questões que envolvem Geologia, Astronomia, História, Psicologia, etc. O cap. XIV, que trata com especialidade dos fluidos (de passagem: que excelente pródromo às lições do nosso atual André Luiz!) abrange até problemas de Física, como de Psicologia e Fisiologia. A Antropologia, por exemplo, é alcançada quando aprendemos as leis da reencarnação ou os diferentes tipos humanos que lhe decorrem, bem como as teratogenias todas. A Biologia tem seu campo de discussão quando estudamos o princípio da hereditariedade e a formação dos seres vivos, a Vida, a morte, a reprodução das criaturas, os obstáculos à vida, etc. Quando analisamos as
propriedades da matéria, sua constituição, etc. sem dúvida invadimos o domínio da Física. Ao tratar das propriedades do perispírito e suas relações com o organismo, tocamos na Fisiologia.  Renteamos a Etnografia quando lemos conceitos sobre as raças humanas, o povoamento, a moral primitiva. Ao estudarmos o homem, o aperfeiçoamento dos indivíduos e das raças, entramos na geografia humana. Na apreciação das relações entre os povos e seu meio social e geográfico, deparamos conceitos profundos de Ecologia. Penetramos a Sociologia, ao ensejo do estudo sobre trabalho, repouso, casamento, poligamia, guerra, pena de morte, vida social, família, progresso, civilização, liberdade, igualdade, fraternidade. Convém assinalar nesta oportunidade que a Sociologia era apenas matéria de gabinete ao tempo em que Allan Kardec publicou seus trabalhos, excetuando os círculos de certa forma fechados e restritos do Positivismo. Muito antes de Emílio Durkheim, célebre filósofo e sociólogo francês, autor da obra “Da Divisão do Trabalho Social”, publicada em 1893, Allan Kardec prevê o fenômeno social da divisão do trabalho. Temos ainda a passagem pela Ética, no estudo que nos oferece sobre sanções, os efeitos da causa, as consequências à infração, o bem e o mal, o duelo. as crueldades, os efeitos da justiça, do amor, da caridade. Finalmente, consignemos que, antes de Bergson, Kardec abordara com invulgar espírito apreciativo o conhecimento filosófico intuitivo, que até hoje representa uma das teses mais discutidas em Filosofia. Embora catalogada em terceiro lugar, a parte moral do Espiritismo é, sem dúvida, a mais importante. Isto porque, tendo sido ditada pelos Espíritos, à Revelação Espírita obedeceu, além do mais,
a um planejamento altamente lógico e harmonioso. Assim, desde que as leis morais implicam já na aplicação prática da doutrina, não seria razoável deixar de precedê-las dum conhecimento geral da doutrina. Ditar nosso comportamento moral só seria possível e coerente depois de mostrar-nos detidamente os fundamentos das leis gerais que regulam o Universo. Resumindo, podemos manifestar que a moral espírita é a moral do Evangelho. ”O Espiritismo - afirmou Kardec - não traz moral diferente da de Jesus" (“O Livro dos Espíritos, página 475, 28ª ed. da FEB). Leiam-se ainda, a respeito, as questões nº 625 e 627 deste volume. Todos os postulados morais da Nova Revelação estão resumidas na secular frase de Confúcio: “Não façais aos outros o que não quereis que vos façam"; ensino reafirmado por Jesus Cristo quando sublinhou: "Amai-vos uns aos outros". A parte moral do Espiritismo mostra ao homem, portando, o caminho normal do bom procedimento na vida de relações, sugerindo- e o meio termo das ações, entre o desprendimento das coisas materiais e a dedicação exagerada, pelas coisas do Espírito. O ideal da vida não está no puritanismo dos que vilipendiam totalmente o mundo nem no imediatismo dos que só vivem para as coisas do mundo, Tanto a matéria quanto o Espírito necessários e criados por Deus.

Como vemos, a escola kardecista poderia caber perfeitamente, ao menos num simples registro, dentro do capítulo que trata da Filosofia Contemporânea (sec. XIX - XX}, ao lado do pragmatismo de Carlos Pierce e W. .James; da evolução criadora, de Bergson; da Ação filosófica, de Blondel; do idealismo (a mais violenta reação contra o Materialismo e o Positivismo agnóstico, depois, naturalmente, do próprio Espiritismo); do criticismo transcendental alemão: do neokantismo; da fenomenologia, de Husserl; e da neo-escolástica.  Não queremos cometer a injustiça ou mesmo a tolice de negar a Bergson a grandiosa tarefa. de abater o materialismo dominante, que de certa forma complementava o êxito do transformismo e do evolucionismo negativista do início do século XIX. Mas, não seria menor injustiça roubar ao kardecismo o papel de fundamental agressor, dialético e científico, de todas as doutrinas materialistas, na sua conceituação mais ampla e mais geral. Só isto justificaria a sua referência histórica no desenvolvimento da cultura das civilizações. Allan Kardec afirmou com muita propriedade: "O Espiritismo é o mais terrível antagonista do materialismo" ("O Livro dos Espíritos", pág. 46- ed. citada).

Particularizemos ainda que Kardec teve a preocupação e a perspicuidade de sugerir um nome absolutamente novo para designar os princípios filosóficos da nova doutrina que apresentava ao mundo. Embora o emprego do termo Espiritismo hoje em dia escape quase completamente ao domínio dos verdadeiros espíritas, ele foi criado para determinar uma certa corrente filosófica, um determinado conceito doutrinário, um definido campo de ideias próprias. E esse vocábulo, modernamente, ilustra todas as enciclopédias do mundo, revelando com razão a sua irradiação, a sua penetração em todos os povos, apesar do mutismo preconcebido da maioria dos Literatos e dos historiadores.

E quanto ao Codificador do Espiritismo, o professor Hippolyte Léon Denizard Rivail? Que dizer da sua figura, da sua posição, do seu comportamento em face do mundo? Poderia ser considerado um filósofo?' Teria condições para inaugurar uma verdadeira escola que lhe viesse derivar a designação do próprio nome?

Já houve até quem dissesse que Allan Kardec foi "medíocre" (arregimente-se coragem, paciência, tolerância e consulte-se “O que é o Espiritismo”, espécie de subliteratura do padre Álvaro Negromonte). Houve, conforme referências acima, os que o consideraram ingênuo e místico. Houve os que o qualificaram de ''impagável'' e "tolo" ("Tolices de Allan Kardec", dum tal Justino Mendes, pseudônimo que encobre um padre qualquer). Outro epiteto: "um dos maiores impostores que jamais tenham existido no mundo" ("Metapsíquica e Espiritismo", do padre espanhol Fernando Maria Palmés). Na verdade, porém, os fatos históricos desmentem todos esses “predicados” com que buscam mimosear o Codificador.

Allan Kardec foi um filósofo por excelência, além de homem de grande cultura e comprovada acuidade intelectual. Em prudente e humilde, o que caracteriza o autêntico espirito filosófico. Brilhantíssimo aluno de Pestalozzi, chegou a substituir o mestre em seus impedimentos. Com 27 anos apresentara um plano reformista do ensino em seu país e, antes de chegar à maturidade, já era autor de diversas obras didáticas com ideias próprias. Poliglota e tradutor de variados autores clássicos ("Telêmaco", de Fénelon, que verteu para o alemão, comentando-a, mereceu os aplausos de Pestalozzi) além de professor de Química, Física, Anatomia, Astronomia e outras matérias. Sua formação de humanista jamais poderá ser contraditada. Ao contrário do que se afirma era infenso ao misticismo e o fanatismo. "Nunca  elaborei teorias preconcebidas; observava cuidadosamemte, comprovava, deduzia consequências; dos efeitos procurava remontar as causas por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos." ("Obras Póstumas", pág. 240, 11ª da FEB) Essa, a constante de Allan Kardec que ele mesmo fazia questão de proclamar. Sobre suas experiências, diria mais tarde o grande fisiologista Charles Richet: “C'est toujours sur l'expérimentation qu'il s'appuie, de sorte que  son oeuvre n’est pas seulement une theorie grandiose et homogène, mais encore un imposant faisceau de faits.” Tout de même, Allan Karde est certainement !’homme qui, dans cette periode de 1847 à 1811, a exercé l’influense la plus penetrant, tracé le sillon le plus profond dans la science métapsychique.” ("Traité de Métapsychuque” págs. 33/34, Paris, 1923.)

Quanto ao seu caráter, era por todos os títulos um homem de bem, cioso de sua dignidade, corajoso diante da vida que, não raro, lhe foi bastante hostil. Praticante da caridade, era, ainda, tolerante, paciente, simples, sóbrio e bom. Em última análise, praticava a moral da doutrina que pregava, exemplificando sua própria assertiva de que se conhece o verdadeiro espírita pela sua transformação moral. Como filósofo, Kardec era impressionantemente simples, quadrando-se naturalmente ao apanágio de todos os pensadores imortais. O kardecismo traz, portanto, essa característica de simplicidade intrínseca e expositiva. A Filosofia, porém, como o assina-la Monteiro Lobato no prefácio da "História da Filosofia" de Will Durant, torna-se mal vista quando não é obscura. "Nós, "modernos" - diz o escritor patrício -, nos acostumamos tanto à pomposa verbiagem da Filosofia que quando a vemos apresentada em termos facilmente compreensíveis chegamos a não reconhecê-la." E logo adiante exemplifica, explicando porque nenhum jovem metafísico pode admitir Confúcio como filósofo: "Confúcio terrivelmente claro - qualidade prejudicialíssima para um filósofo" (pág. 11/12 da 2ª edição brasileira). Talvez pelas mesmas razões não gostem de Kardec...
             
Restaria lembrar, para justificar a defesa que levantamos da existência histórica duma escola filosófica kardecista, que a bibliografia espírita atual é não apenas extensíssima, mas universal, sendo de se notar que, somente no Brasil até 1963, as obras de Allan Kardec atingiam a cerca de 1 milhão e novecentos e setenta e oito mil exemplares, consideradas apenas as edições da Federação Espírita Brasileira, cujos dados conhecemos melhor. Os adeptos dessa corrente de filosofia espiritualista atingem hoje, no mundo inteiro, a muitos milhões entre vários povos e nações, desde os mais humildes aos mais intelectualizados. Monteiro Lobato. o tradutor da “História da Filosofia”, de Will Durant (possivelmente, no estilo, a mais popular do mundo), não perdoa ao autor a total omissão da filosofia escolástica,  omissão que considera "um ultraje". Acrescenta ainda que “o pior pecado de todos foi a omissão das filosofias hindu e chinesa”. Reconhecendo embora a ressalva de Will Durant, feita no prefácio, confessando ser incompleto o seu livro, comenta no entanto (tradutor brasileiro: "Não obstante, o incompleto incompleto é."

Esses comentários do escritor paulista (que por sinal era simpático ao Espiritismo) servem, certamente, a outros exemplos e a outros trabalhos. Tempo virá em que o historiador consciencioso dirá com a mesma ênfase ser imperdoável que todas as histórias da Filosofia hajam omitido, por ignorância, por faciosismo ou por medo, senão por ojeriza morbígena, a escola kardecista. No entanto, esta a escola que terá transformado o mundo...  O que é mais extraordinário: terá resumido em si toda a Filosofia: Então, dentre tantas outras, cumprir-se-á mais esta previsão do Codificador): “Mas, não é real que todas as grandes descobertas científicas hão igualmente modificado, subvertido até, as mais correntes ideias? E o nosso amor-próprio não teve que se curvar diante da evidência? O mesmo acontecerá com relação ao Espiritismo que, em breve, gozará do direito de cidade entre os conhecimentos humanos.”  ("O Livro dos Espíritos", página 476, 28ª ed. da FEB.)

Se Jesus dividiu o mundo em Antes e Depois do Cristo, o missionário de Lyon acabou dividindo o Cristianismo em antes e depois do Espiritismo.

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