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domingo, 27 de abril de 2014

Hermínio escreve sobre a Codificação



            Poucas as existências como a de Allan Kardec, nas quais tão claramente se evidencia a cuidadosa execução de um plano articulado entre Espíritos e homens. Há algum tempo, escrevi, fascinado pelo tema, um livro (ainda inédito) chamado "Mecanismos Secretos da História", para desenvolver a tese de que, ao contrário do que desejam fazer crer as correntes materialistas, a História tem um mecanismo espiritual, impulsos espirituais, causas e consequências espirituais, de vez que o homem é Espírito e todo o plano da História consiste em fazê-lo caminhar para Deus.

            No desenrolar da existência de Kardec vemos a marca inconfundível dessa ideia. Tudo na sua vida é planejado com atenção e executado com rigorosa fidelidade aos seus compromissos espirituais. Renasceu o grande Espírito em 1804. Quinze anos antes, a Revolução Francesa sacudira o mundo com o clamor de suas aspirações e o estremecera com os excessos de suas atrocidades. Justamente em 1804, Napoleão se fez imperador e a América do Norte vivia o primeiro decênio da sua independência.

            Kardec não teve pressa. Seu trabalho é todo um modelo de meticulosidade; o produto do seu labor só vem a público na época certa, no momento exato da maturação das ideias; não antes. Ele estuda, espera, reexamina, medita e somente depois de convencido segue adiante. Quer conhecer antes o terreno que pisa, para não repetir o drama do filósofo que contempla as estrelas, mas tropeça pelo chão. Durante 50 anos, meio século, toda a sua atividade está concentrada em estabelecer entre os homens sua reputação de educador e de pensador. Em 1848 os fenômenos de Hydesville, nos Estados Unidos, começam a despertar a atenção do mundo para as manifestações dos Espíritos, mas, Kardec não é adesista de primeira hora. Quer ver e estudar tudo primeiro. Somente em 1854, quando o fenômeno das mesas girantes fascinava toda a Europa, toma contato com o problema através de uma observação de seu amigo Fortier. Sem recusar sumariamente a coisa, Kardec se reserva a um juízo posterior, depois de estudado o fenômeno.

            Em princípio de 1855 outro amigo, o Sr. Carlotti, também lhe fala do assunto e Kardec continua em guarda, porque, segundo confessa, seu amigo era um tanto exuberante demais. Só em Maio de 1855 ele se põe, afinal, diante da manifestação mediúnica, em casa da Sra. Roger, com a presença do Sr. Fortier, do Sr. Patier e da Sra. Plainemaison.

            Era a primeira sessão de uma série da qual sairia toda a obra planejada pelos Espíritos. Mesmo, porém, atirando-se ao trabalho com a energia que lhe era característica, Kardec continuou lúcido e frio no exame dos fatos. Somente emite sua opinião depois de absolutamente seguro dela. Por isso, não tem pressa. De 1854, quando sua atenção foi solicitada para o fenômeno, até 1869, quando desencarnou, decorreram 15 anos incompletos. A história do pensamento humano ainda não fez justiça a esse período que marca o despertar da Humanidade. Em 11 anos vieram à luz os cinco livros básicos da Doutrina Espírita, na seguinte ordem:

1.        1857 - O Livro dos Espíritos
2.        1861 - O Livro dos Médiuns
3.        1864 - O Evangelho segundo o Espiritismo
4.        1865 - O Céu e o Inferno
5.        1868 - A Gênese

            A sequência é perfeita e se desenvolve de acordo com o plano. Em primeiro lugar, a doutrina se caracteriza pela sua despersonalização. Não é um sistema filosófico--religioso montado por um só homem, com a marca da sua personalidade, batizado com seu nome individual. A primeira pedra do edifício, a obra básica, sobre a qual se assentará toda a estrutura - "O Livro dos Espíritos" - é, de certa forma, trabalho anônimo, ou melhor, um trabalho de equipe.

            Ninguém o assina; os Espíritos se revezam nas instruções. É interessante observar, ainda, que os Espíritos não querem dar ao livro a feição de um depoimento expositivo, como se fosse um tratado. Isso, também, parece ter a sua razão de ser. Muitos aspectos do mundo espiritual são irredutíveis à linguagem humana e, ainda que eles insistissem em discorrer sobre tais aspectos, de pouco valeria para a maior parte dos leitores, senão para todos, e o livro correria o risco de ser tido por uma desvairada fantasia de cérebros doentios. Seria preferível que Kardec formulasse as perguntas, todas do ponto de vista humano, a fim de que nesse "background" intelectual do espírito encarnado, pudessem os desencarnados traçar, em linhas mestras, o panorama do mundo espiritual, de suas leis e perspectivas. Kardec era, inegavelmente, o homem indicado para formular as perguntas. Ampla e variada era sua cultura humanística, sólidos os seus postulados morais, lúcidos os seus conceitos científicos. Tinha um cérebro bem ordenado, habituado ao raciocínio lógico, e uma curiosidade intelectual sadia e bem orientada: uma inteligência penetrante, analítica e fria completava o seu arcabouço psíquico.

            Lançados os alicerces da doutrina em "O Livro dos Espíritos", Kardec prosseguiria, daí em diante, ainda sob a orientação dos seus amigos espirituais, porém, com maior autonomia de pensamento. Não é mais apenas o discípulo que pergunta aos mestres o que deseja saber; é o aluno aplicado que, findo o aprendizado, resolve explorar o terreno por sua própria conta. Não prescinde dos mestres, mas já sabe como conduzir-se. Os Espíritos deixam à sua discrição o plano de trabalho, deixam-no no exercício pleno do seu livre-arbítrio; e o novo mestre sai-se brilhantemente da tarefa. 

            Os livros subsequentes não são mais uma coletânea de instruções dos Espíritos desencarnados, sob a forma de perguntas e respostas, mas a contribuição de Kardec, o desdobramento humano da obra articulada e certamente planejada com imenso carinho, no espaço, antes de sua encarnação.

            "O Livro dos Médiuns" apareceria somente depois de 4 anos da publicação de  "O Livro dos Espíritos". "O Evangelho segundo o Espiritismo", em 1864, três anos após o precedente, seguido de perto pelo "O Céu e o Inferno", em 1865. Somente em 1868, onze anos depois do "O Livro dos Espíritos", era publicada "A Gênese".

            Este é o encerramento lógico da obra de Kardec. Nos livros anteriores explorara os segredos e problemas da mediunidade, analisara à luz do Espiritismo o Evangelho de Jesus, discutira as velhas e perniciosas crenças nas penas e recompensas eternas.

            Pouco faltava àquele espírito para fazer passar pelo crivo do seu raciocínio.

            Esse pouco está em "A Gênese", cujo centenário se comemora em Janeiro corrente, de 1968. Este livro não foge ao roteiro invisível de Kardec. Embora encadeada no conjunto do chamado pentateuco kardequiano, "A Gênese" constitui leitura autônoma. Pouco mais de dez anos são passados desde que o mestre elaborou com os Espíritos o primeiro livro da série. O momento é oportuno para uma revisão do seu trabalho e uma reapresentação das ideias discutidas ao longo de quase duas mil páginas compactas. Teria o tempo e as observações subsequentes modificado alguma coisa nos conceitos, mesmo secundários? Nada. É um monumento monolítico de beleza e grandeza sem par. Assim, antes de entrar no objeto do livro propriamente, Kardec apresenta uma reexposição da doutrina contida nas obras anteriores e nos seus inúmeros escritos espalhados pela "Revue Spirite". O Espiritismo, ensina ele, "não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos, quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios". (A Gênese, pág. 19 da 13ª edição brasileira da FEB.)

            Aproveita, ainda, a oportunidade para rebater certas acusações assacadas contra o Espiritismo, especialmente aquelas que poderiam, de certa forma, impressionar a mente dos menos avisados. Acha que a doutrina da pluralidade das vidas, ou seja, a da reencarnação, "é uma das mais importantes leis reveladas pelo Espiritismo, pois que lhe demonstra a realidade e a necessidade para o progresso" (pág. 29). Em seguida, examina uma vez mais o problema de Deus, o do  bem e do mal, para somente a partir do capítulo IV atacar o objeto do seu livro que é o estudo do mundo material em que vivemos.

            Na realidade, o livro não cuida somente da formação da Terra, sua história, sua constituição atual e as perspectivas do seu destino; examina também a questão dos milagres, e conclui estudando o problema das predições.

            Quanto à gênese propriamente dita, não elimina de todo a concepção de Moisés, procurando explicá-la em termos da ciência da sua época. Examina as noções de tempo, de espaço, de matéria, bem como a astronomia em geral e, em particular, o nosso sistema e, neste, a Terra. Oferece considerações sobre a gênese orgânica e a espiritual. Nos capítulos 13 a 15 estuda e explica, em face da Doutrina Espírita, os chamados milagres, ensinando que, longe de serem derrogações das leis divinas, indicam a existência de outras leis mal conhecidas ou desconhecidas. Tudo investiga, examina, analisa e, conclui, oferecendo o seu depoimento.

            Finalmente, aprecia a difícil questão levantada pela profecia, apresentando, de início, uma "Teoria da Presciência", passando, em seguida, a estudar as profecias e predições contidas nos Evangelhos. O capítulo final é uma janela panorâmica aberta para o futuro. Parece que o mestre sentia a aproximação do fim de sua existência terrena e queria deixar, no seu livro último, uma palavra de esperança e de otimismo, mas também de advertência. Ensina que a Humanidade caminha irresistivelmente para a frente, porque os espíritos que a compõem vão renascendo melhorados de vida em vida. Acredita que as grandes transformações preditas para o futuro próximo não sejam acompanhadas necessariamente de cataclismos espetaculares nem de terríveis abalos cósmicos. Acha ele que "uma mudança tão radical como a que se está elaborando não pode realizar-se sem comoções. Há, inevitavelmente; luta de ideias. Desse conflito forçosamente se originarão passageiras perturbações, até que o terreno se ache aplanado e restabelecido o equilíbrio. É, pois, da luta das ideias que surgirão os graves acontecimentos preditos e não de cataclismos ou catástrofes puramente materiais". Observa, entretanto, que há um encadeamento, uma certa sintonia entre conflitos de ideias e fenômenos físicos. É o que declara ao proclamar o seguinte: "Se, pelo encadeamento e a solidariedade das causas e dos efeitos, os períodos de renovação moral da Humanidade coincidem, como tudo leva a crer, com as revoluções físicas do Globo, podem os referidos períodos ser acompanhados ou precedidos de fenômenos naturais, insólitos para os que com eles não se achem familiarizados, de meteoros que parecem estranhos, de recrudescência e intensificação dos flagelos destruidores, que não são nem causa, nem presságios sobrenaturais, mas uma consequência do movimento geral que se opera no mundo físico e no mundo moral."

            Entende, porém, lógico e de se esperar que a promoção da Terra na escala moral tenha de ser feita à custa do afastamento, para outros corpos celestes, dos Espíritos que, ficando aqui, contribuiriam para a perpetuação das angústias por que passam os que desejam o progresso e a paz espiritual.

            Aí está o pensamento do mestre, nos últimos lampejos da sua vida como Allan Kardec. Em suma, pode dizer-se que em "A Gênese" Kardec dá um balanço no impacto causado pelo Espiritismo nos seus 10 anos de existência, estuda o meio físico em que vive o homem encarnado, aprecia os milagres do ponto de vista espírita, examina a complexa questão das predições e conclui com uma advertência e um brado de esperança.

            As últimas palavras de sua última obra de fôlego contêm uma súmula de todo o objetivo de sua vida: "Os incrédulos - diz ele - rirão destas coisas e as qualificarão de quiméricas; mas, digam o que disserem, não fugirão à lei comum; cairão a seu turno, como os outros, e, então, que lhes acontecerá? Eles dizem: Nada! Viverão, no entanto, a despeito de si, próprios e se verão, um dia, forçados a abrir os olhos."

Extraído de artigo de Hermínio Miranda em 'Reformador' (FEB) de Janeiro de 1968 

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