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quarta-feira, 6 de julho de 2011

02/03 'Os Evangelhos segundo Ernst Renan'


‘Os Evangelhos
 segundo Ernest Renan’
Parte 2

por   Gilberto Campista Guarino
em Reformador (FEB) Agosto 1976
           
Renan inicia a obra por uma consideração de que os Evangelhos tem algo de legendário, muito embora lhes confira inestimável valor, “... porque  eles nos reconduzem ao meio século que se seguiu à morte de Jesus, assim como ao trato com as testemunhas oculares das suas ações”.
O Evangelho de Lucas, o Evangelho da Natividade, é, para Renan, inicialmente, o mais autêntico.
“O Evangelho de Lucas é uma obra de composição regular, embasada em documentos anteriores” (o que é de enorme relevância para Renan). Neste ponto, refere-se ele ao Capítulo I, vv. 1 a 4:
- “Muitas pessoas tendo empreendido escrever a história das coisas realizadas entre nós, de acordo com o que nos transmitiram aqueles que desde o começo as viram com seus próprios olhos e foram ministros da palavra, pareceu-me, excelentíssimo Teófilo, conveniente, depois de me ter informado exatamente de todas essas coisas desde o seu início, narrar vos toda a série delas, a fim de que conheçais a verdade acerca do que aquelas pessoas hão dito, o que tudo sabeis.”

A Bíblia de Jerusalém comenta, no rodapé da página 1367, que, em primeiro lugar, o vocabulário e o estilo desses primeiros versículos são semelhantes aos dos historiadores da época helenista. Ora, nós sabemos que Lucas, além de grande inspirado, era médico, um homem dotado de grande cultura.[1] A seguir, considera aquele adjetivo “... muitas” ((de muitas pessoas) como enfático, devendo ser entendido como “algumas”. Consideração extremamente ponderada, porque sabemos hoje que o Evangelista não se embasou numa multidão de comentários e de depoimentos, mas que (e a Bíblia de Jerusalém o considera) existe um nexo causal insofismável entre o trabalho de Lucas e o de Marcos, porque Marcos dedicou-se a narrar os fenômenos produzidos pelo Cristo, e Lucas ocupou-se com as parábolas e com o nascimento do Mestre.[2] Ora, tanto o nascimento de Jesus quanto os seus ensinamentos se acham eivados da mais vasta e complexa fenomenologia, científica e filosoficamente falando, o que forma uma unidade indivisível entre os dois evangelistas.
Mateus, muito embora os estudiosos o considerem sem vinculações diretas com Lucas, não pode ser globalmente entendido sem este último, porque – a considerar que os três Evangelhos encaram três realidades da múltipla grandeza do Cristo – nenhum deles pode ser tomado em conta isoladamente.[3]
A seguir, Renan – como se ainda fosse possível por em dúvida a identidade de autoria entre o Evangelho da Natividade e os Atos dos Apóstolos, afirma:
“O autor deste Evangelho (refere-se a Lucas) é com toda a certeza o mesmo do Atos dos Apóstolos” (O parênteses é nosso).
E prossegue, evidenciando o enorme apreço e valor que empresta a Paulo, justamente considerado pela cristandade como aquele que, investido de enormes conhecimentos de mediunidade, a par de invulgares considerações em torno do Antigo Testamento, levou o Cristianismo ao campo do mundo, pondo lhe em relevo toda a pujança, oculta aos olhos dos homens. Eis Renan, como dizíamos:
“Ora, o Autor dos Atos de fato parece um companheiro de São Paulo, e, a partir do Capítulo XVI, versículo 10, dos Atos, se apresenta como testemunha ocular, título, aliás, que serve como uma luva a Lucas”.
O raciocínio de Renan é coonestado pela Bíblia de Jerusalém, na página 1478, comentando o versículo 10, Capítulo XVI, dos Atos, que assim está grafado: “Assim que teve esta visão (refere-se a Paulo) procuramos imediatamente partir para a Macedônia...”
Comenta a Bíblia de Jerusalém:
- “ A redação passa bruscamente para a primeira pessoal do plural.” Logo, Lucas acompanhava Paulo.
E termina Renan, ainda quanto à identificação de autoria:
“Sei que mais de uma objeção pode ser oposta a este raciocínio; mas, ao menos uma coisa permanece fora do terreno da dúvida: o Autor do terceiro Evangelho e doa Atos é um homem pertencente à segunda geração apostólica, o que é suficiente para que alcancemos nosso objetivo.”
Curiosamente, Ernest Renan não se refere a Lucas, como autor, senão em caixa-alta: Autor. Não conseguiu camuflar sua profunda admiração pelo evangelista médico.
Finalizando, na introdução, considera a obra como de enorme unidade e perfeição.
Já quanto aos Evangelhos de Marcos e de Mateus, a atitude de Renan é, in limine, de desconfiança. Expressões como – “quanto aos Evangelhos ditos de Marcos e de Mateus...” deixam claro o tratamento dúbio que o escritor empresta às narrativas, especialmente se considerarmos o enfoque do trabalho de Lucas. Por exemplo, ao citar Pápias, o abade de Hierápolis, Renan, embora não endosse a sua tese de que haveria tão somente dois escritos sobre os Atos e as palavras do Cristo: um escrito de Marcos, interpretado por Pedro, e uma coleção de frases escritas por Mateus, em dialeto semítico -, não deixa de considerar o Evangelho de Mateus como caracterizado por períodos longos, ao passo que trata o escrito de Marcos como “acima de tudo anedótico”, bem mais exato a respeito de pequeninas ocorrências do que o de Mateus, objetivo a ponto de raiar pela secura, pobre discursivamente e muito mal estruturado”.
Enquanto os escritos que lera Pápias eram inteiramente distintos, os dois Evangelhos sinóticos apresentam formas paralelas e mesmo idênticas , o que, para Renan, deixa entrever que... “ou o redator definitivo do primeiro tinha o segundo sob os olhos, ou que o redator definitivo do segundo do mesmo modo tinha o primeiro”.
Com isso, usando o termo definitivo, com rara felicidade, Ernest Renan mostra que, como é óbvio, houve uma série de modificações e versões sobre o texto dos dois Evangelhos sinóticos, que a Igreja sempre considerou como autênticos, a mesma igreja que anatematizou Renan.
Após levar em conta uma outra conclusão, a que ambos os Evangelhos poderiam ser cópias do mesmo protótipo, vem a, definitivamente, optar pela teoria de que... “nem no que concerne a Mateus, nem no que tange a Marcos, estamos diante da redação original; ambos os Evangelhos são arranjos, cujas lacunas se pretendeu preencher ora com o texto de um, ora com o de outro”.
Mais adiante, dentro da mesma linha de pensamento, até mesmo um tanto ou quanto “trocista”, Renan passa a dizer, sempre considerando as interpolações “providenciadas” para os textos originais – o que, em sua opinião, ocorreu, inegavelmente -, que... “cada um dos “arranjadores” dos dois Evangelhos parecia querer possuir um exemplar completo, num só. Nessa lógica, no Evangelho segundo Mateus aparecem todas as anedotas (particularidades históricas) de Marcos, assim como neste último estão, atualmente, contidos muitos traços característicos das Logia (ditos, parábolas), encontradas em Mateus”.
O fato de estarem ambos intimamente relacionados com a tradição oral, tanto quanto à origem, como no que toca às invenções dos hermeneutas tendenciosos, parece incomodar Renan. Sua linha de raciocínio não sobrevive fora da pesquisa apoiada sobre documentos históricos: ele busca avidamente uma fonte escrita. Isso, se – por um lado – convém a um pesquisador, a um historiógrafo, não pode – se excessivamente – favorecer a um exegeta, a um historiólogo. Por isso, Renan peca por algumas vezes, e, na busca de uma base escrita, termina por se tornar em algo aproximado do dogma, embora não possa ser tomado como um apologista seu.
Todas as considerações em torno das narrativas de Mateus e de Marcos se acham pontilhadas de veneração votada a Lucas, com citações frequentes do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos. Diga-se, a propósito, que, embora essa adoração seja inegável, Renan não é daqueles apaixonados, e, em momento algum se pode dizer que ele escolhe pretextos para citar Lucas. Disso é um bom exemplo o comentário ainda em torno do problema da tradição oral:
“Os Evangelhos de Mateus e de Marcos apoiavam-se, aliás, e largamente, na tradição oral que os circundou. Mas, esta tradição é tão vasta e se acha tão afastada, em sua totalidade, dos Evangelhos, que os Atos dos Apóstolos e os mais antigos Patriarcas relembram um sem número de palavras de jesus, as quais parecem inteiramente autênticas, e que não se encontram nos Evangelhos que possuímos.”  
 Habilmente, Renan criticou, mais uma vez, a ortodoxia religiosa, que considerou apócrifos inúmeros livros de revelação eminentemente espiritual. Não que ele, Renan, os considerasse todos autênticos! Muito pelo contrário. Renan, por exemplo, não aceitou jamais o Apocalipse de João Evangelista; não aceitou o Quarto Evangelho, o essencialmente mediúnico e espiritual, no dizer de Clemente de Alexandria, opinião esta partilhada por Daniel-Rops; tampouco pode aceitar a Epístola dos Hebreus, uma verdadeira sequencia de comunicações que Emmanuel nos apresenta como um escrito que, por vezes, arrancava lágrimas a Paulo, e o qual ele fez questão de grafar valendo-se de seus próprios recursos, muito embora – como todas as Epístolas, consideradas por Emmanuel como de essência crística -, não lhe faltasse o concurso de Estevão, que ao Doutor permaneceria mais conchegado, transmitindo-lhe os pensamentos do Senhor. Assim, do mesmo modo, o Apocalipse, que vem a ser revelação do Cordeiro. Mas, se o seu desconhecimento da vida espiritual o impedia de enxergar mais adiante, seu método essencialmente positivo e até mesmo drástico, no que concerne a documentos, não lhe permitia outras leviandades:  o estudo de Renan apenas sofria uma constrição – aquela imposta pelo fato de ser ele, na palavra de Erasto, um ...”desses cegos inteligentes que explicam a seu modo aquilo que não podem ver”. Mas, Renan não foi, propriamente, cego guia de cegos; auxiliou  a preparar os homens para o advento das novas crenças. O que ele desejou dizer, em termos de largueza da tradição oral, foi que a palavra de Jesus – a quem ele observa com profundo respeito – não se contém numa determinada época história: ele é precedente e superveniente. Foi, aliás, Ernest Renan que afirmou, comovedoramente, que Jesus dividiu a história em duas partes: antes dele e depois dele.
Resumindo, eis como Renan compreende os dois Evangelhos, sempre deixando à parte o de Lucas:
“Em outras palavras, o sistema de vida de Jesus nos Evangelhos sinóticos repousa em dois documentos originais:
“Os discursos de Jesus colecionados pelo Apóstolo Mateus;
“O conjunto de particularidades históricas (anedotas) e de ensinamentos pessoais que Marcos escreveu, a partir das recordações de Pedro. Pode dizer-se que esses documentos  ainda existem misturados a ensinamentos de origem diversas, nos dois primeiros Evangelhos, os quais são – com toda a razão – chamados de ‘Evangelho segundo Mateus” e “Evangelho segundo Marcos”.
Para Renan, nesses dois escritos, existe uma base de Mateus e uma outra base de Marcos; tudo o mais surgiu a partir de e segundo esses pontos de apoio. Mateus apresenta um planejamento sistemático, porém com frases longas, repetitivas; Marcos é mal dirigido, mal sistematizado, embora possua força interior; Lucas ocupa lugar de destaque, é escrito em estilo fascinante que revela uma alma extremamente inteligente, culta e dedicada, um espírito acostumado a lidar com pensamentos, senhor de uma exposição segura e coerente, não cansativa e jamais contraditória. A mesma é a opinião dos elaboradores da Bíblia de Jerusalém: Marcos, repleto de aramaísmos e incorreto, porém com vivacidade que empresta à obra um cunho de popularidade. Mateus, também aramaizante, mas bem mais cuidado, menos pictórico, e mais correto. Lucas é de qualidade excelente, perfeito quando diz respeito a si mesmo, quando fala por si próprio, embora um tanto ou quanto impreciso quanto a suas fontes. [4]  Está maravilhosamente vazado no estilo bíblico dos setenta.
É Kardec quem comparece com o meio termo: os três Evangelhos se completam. Todos os três devem ser estudados.


[1] Na obra “Lucas, o médico escravo”, de Eurico Branco Ribeiro, edição da Livraria Martins, está bosquejada tese bem composta e documentada.
[2] Esclarece Emmanuel que o Evangelho de Lucas é aquele  que constava nos projetos de Paulo, Apóstolo, nos termos de uma “biografia de Jesus”, p´rojeto este que, se não surgido quando de sua visita visita à Excelsa Mãe Santíssima, foi avidado pelas sublimes narrativas daquela que parecera “um anjo vestido de mulher”, concernentes à noite do nascimento do Mestre. Posteriormente, regressando a Éfeso, “interessado na feitura do Evangelho decalcado nas recordações de Maria”, (Paulo e Estevão, pág. 436). viu-se atribulado a tal ponto pelas perseguições e ciladas dos inimigos, que partiu antes do tempo previsto; Inquirido por João (o filho de Zebedeu, o futuro evangelista) de suas intenções sobre o Evangelho... “consoante as recordações de Maria”, Paulo replica dizendo ser preciso partir, ao mesmo tempo que assegura enviar um companheiro para essa tarefa, caso não a possa realizar ele mesmo.
Noticia Emmanuel, mais adiante, que Lucas foi o indicado para esse trabalho. Eis, na meridiana explicação do mentor, a origem do Evangelho da Natividade.
[3] Consultem-se os apontamentos de Antônio Luiz Sayão, na grande obra “Elucidações Evangélicas”.
[4] Essa opinião, defendida pelos organizadores da Bíblia de Jerusalém, é, inicial e implicitamente não aceita por Renan. Mas, na lista de suas compreensíveis contradições, passará a ser por ele partilhada, como adiante veremos.

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