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terça-feira, 16 de outubro de 2012

Simbolismo




Simbolismos


            O homem, de todas as idades, tem, em geral, acentuada predileção pelos distintivos e até por amuletos, isto é, medalhinhas, etc. 

            Funda-se uma sociedade literária, recreativa, religiosa ou desportiva, e a preocupação primária de todos é a de saber quais as cores que hão de prevalecer na expressividade dos seus distintivos.

            No vocábulo grego sumbolon, cujo significado é sinal, marca distintiva, emblema, reunião de coisas, vai o nosso símbolo encontrar a sua origem. Os cristãos usaram-no como meio de se reconhecerem. Rolam os anos na ampulheta do Tempo, o Cristianismo perde aquela beleza simples de seus primórdios, surge a Igreja, e com ela a literatura eclesiástica se enriquece de simbolismos. Teríamos de ultrapassar, em muito, os limites de um simples artigo, se pretendêssemos, ainda mesmo que resumidamente, exumar das páginas da História tudo o que nelas está registado no tocante aos símbolos usados pelos povos, desde as mais recuadas eras.

            A escola neoplatônica de Alexandria, por exemplo, nos mostra, à saciedade, que as figuras da mitologia greco-romanas, tais como Saturno, Júpiter, Marte, Minerva e Vênus, simbolizavam, de maneira clara e inteligente, os atributos e as manifestações da divindade.         

            Um escritor patrício declarou ser o símbolo a carne do pensamento, e daí o dizermos que simbolizar é a ação de carnificar o pensamento humano. O espírita, para ser coerente com os seus princípios, não pode concordar que a Terceira Revelação se deixe seduzir pelo simbolismo, tão do agrado das várias correntes religiosas. Isso, de modo algum impede a que todos nós espiritistas admiremos as obras artísticas, simbolizadoras das coisas espirituais, porque "o artista verdadeiro - no dizer de Emmanuel - é sempre médium das belezas eternas e o seu trabalho, em todos os tempos, foi tanger as cordas mais vibráteis do sentimento humano, alçando-o da Terra para o Infinito".        

            O homem, no entanto, traz, de existências outras, pendores de que dificilmente se libertará, e um desses é, sem dúvida, o do simbolismo.

            De maneira que não deve ser motivo de admiração que, de quando em quando, aqui, ali ou acolá, essa questão volte a ser ventilada e até levada, pelos mais teimosos, como tese à discussão de congressos espiritistas.

            Manda a verdade que se diga, no entanto, ser minoritária a percentagem dos que ainda anseiam pelo uso dos símbolos por parte do Espiritismo.

            Não é o hábito que faz o monge, proclama velho adágio, não são os uniformes para corpos que caracterizam os noviços ou os já experimentados da nossa doutrina, mas, sim, o uniforme do espírito, que é o seu comportamento individual ou coletivo no lar, na sociedade, tudo em concordância plena com os princípios universalistas da moral evangélica.

            O Espiritismo que, além de ser ciência, é filosofia e religião, abastardar-se-ia na hora em que aceitasse algo que, de certo modo, ferisse a supremacia do espírito.

            É mais fácil, bem o sabemos, usar-se um distintivo de espírita do que sê-lo pelas atitudes morais, pelos sentimentos de fraternidade!

            Machado de Assis, em uma de suas crônicas domingueiras, insertas em Gazeta de Notícias, desta Capital, lá pelo ano de 1900, nos dá conta de um leilão, a que assistiu, de objetos empenhados e não resgatados, de cuja crônica extraímos este trecho:

            "Havia lá broches, relógios, pulseiras, anéis, botões, o repertório do costume. Havia também um livro de missa, elegante e escrupulosamente dito para missa, a fim de evitar confusão de sentido. Valha-me Deus! até nos leilões persegue-me a gramática. Era de tartaruga, guarnecido de prata. Quer dizer que, além do valor espiritual, tinha aquele que propriamente o levou ao prego, Foi uma mulher que recorreu a esse modo de obter dinheiro. Abriu mão da salvação da alma, para salvar o corpo, a menos que não tivesse decorado as orações, antes de vender o manual dela, Pobre desconhecida! Mas também (e é aqui que eu vejo o dedo de Deus), mas também quem é que lhe mandou comprar um livro de tartaruga com ornamentações de prata? Deus não pede tanto; bastava uma encadernação simples e forte, que durasse, e feia para não tentar a ninguém. Deus veria a beleza dela."

            Admitisse o Espiritismo o uso de símbolos e quejando e muitos confrades, talvez por falsa compreensão das coisas, julgassem que a manifestação mais positiva e cabal deles testemunharem a sua fé perante a sociedade seria a de ostentarem tais símbolos em ouro ou prata, cravejados de diamantes ou de outras pedras preciosas.

            E, chi lo sa, como dizem os italianos, amanhã iríamos encontrá-los entre os objetos levados a leilões de penhores! É provável que alguém contraponha que, se tal coisa ocorresse, seria, antes de mais nada, uma excelente oportunidade para que o Espiritismo mais conhecido se tornasse.

            E já que estamos lembrando fatos passados, não será fora de propósito desencavarmos este curioso episódio verificado aqui no Rio, em Fevereiro de 1896. Este episódio foi o da fundação de uma sociedade carnavalesca, denominada, "Nossa Senhora da Conceição", naturalmente porque seus idealizadores eram devotos fervorosos da Virgem. Na sua ignorância, jamais julgaram esses adoradores de Momo que tal lembrança pudesse ser tida como desrespeitosa à Senhora da Conceição. Seus propósitos, sem dúvida alguma, eram os de evidenciar que a tinham em tão alta conta, que a sua fé na doce Virgem Maria era tão robusta, que mesmo nos momentos de intensa e louca alegria, eles não na podiam esquecer.

            O fato, porém, é que a sociedade foi impedida de sair à rua com seus carros alegóricos, num dos quais estaria, com todas as honras, a imagem da Virgem!

            Já dizia o padre Antônio Vieira: - "a imagem do Cristo que está na igreja, é imagem morta, que não padece: as imagens do Cristo, que são os pobres, são imagens que padecem."

            Os espíritas precisam preocupar-se com as coisas que têm vida eterna, que os acompanharão em sua viagem para o Além, e deixarem essas ridicularias materiais que só servem para obumbrar o espírito. 

            Saia vitoriosa, um dia, a malfadada ideia dos símbolos espíritas e, logo após, seguir-se-á a equiparação de Kardec aos santos do florilégio católico; passará a ser uma espécie de Nosso Senhor do Espiritismo!

            Mais espiritualidade e menos mundanismo.

            Mais amor à simplicidade esplendente da doutrina kardeciana e menos espírito de imitação aos usos e práticas de religiões já prestes a entoarem o cântico do Requiescat in pace!

por Jorge Roberto
Reformador (FEB) Setembro 1948


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Allan Kardec e o Catolicismo




Allan Kardec

            Tendo na sessão de 11 de Setembro de 1888, do Congresso Espírita de Paris, declarado o Sr. Fauvety que considerava Allan Kardec o filósofo popular por excelência, pediu a palavra o Sr. Léon Denis, e pronunciou um longo discurso, donde extraímos os seguintes trechos:


             "Examinemos, se o quiserdes, as acusações, que se invocam contra Allan Kardec. Ele poupou muito, diz-se, ele deixou muito lugar em sua obra às ideias místicas e católicas; primeiramente digo, e vou prová-lo: nada há de católico nas obras de A. Kardec. O mestre poupou o Cristianismo e não o Catolicismo. São coisas bem diferentes. Fez obra de transição, a exemplo de todos os grandes iniciadores."

            "Não vos viemos dizer que devamos ficar confinados no círculo, por mais vasto que seja, do espiritismo kardeciano. Não; o próprio mestre vos convida a avançar nas vias novas, a alargar a sua obra."

            "Estendemos as mãos a todos os inovadores, a todos os de boa vontade, a todos os que tem no coração o amor da Humanidade."


Extraído de Reformador (FEB) de 15 de Outubro de 1890.
Publicado também em Agosto de 1946 no mesmo periódico.

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Grifo do Blog.

65. "Doutrina e Prática do Espiritismo"



65  ** *


            Destacada do seio da nebulosa e constituída em mundo, depois de ter, por um processo de desprendimento de parte da sua massa, idêntico ao de sua formação, dado nascimento à lua, a terra era em seu primitivo estado de condensação um globo incandescente. Em consequência da irradiação do calor e sob a ação da temperatura ambiente que, segundo cálculos científicos, é de 270 graus abaixo de zero nos espaços interplanetários, foi se resfriando pouco a pouco, a começar da superfície, que endureceu, enquanto o interior se conservava em estado fluídico.  

            Nessa época - importa não perder de vista esta observação - o globo terrestre não continha um átomo de mais nem de menos do que hoje. A diferença consistia em que, sob a alta temperatura derivada do seu estado incandescente, as substâncias que hoje se nos apresentam em formas líquidas e sólidas, mesmo as mais resistentes como os metais, os cristais, as pedras, etc., se achavam no estado de fusão, não sendo os aspectos, que ulteriormente revestiram, mais que o resultado da transformação, a que as levou a depressão térmica, e das múltiplas combinações dos seus elementos constitutivos.

            O primeiro efeito desse resfriamento foi, como o dissemos, a solidificação da superfície numa crosta resistente, ao começo delgada e, depois, cada vez mais espessa, constituindo a camada granítica que envolve o globo em toda a sua circunferência e forma, por assim dizer, o seu arcabouço.

            Sobre essa primitiva camada e nas cavidades, que a sua superfície irregular apresentava, foi que vieram a ser sucessivamente depositadas as camadas de terrenos formados posteriormente e dos quais se distingue pela ausência de toda estratificação e pela uniformidade que se observa em toda a sua espessura constituída em massa compacta e não resultante de superposições.

            Recipiente demasiado frágil ainda para resistir à pressão do excessivo calor desenvolvido pela matéria em fusão contida no eu interior, a camada granítica sofreu numerosas rupturas, pelas quais emergia e se espalhava pela superfície aquela massa incandescente.

            Ainda por efeito do resfriamento algumas das matérias difundidas no ar em estado de vapor passaram ao estado líquido e se precipitaram no solo, ocasionando chuvas e formando lagos de enxofre e de betume, verdadeiros rios de ferro, cobre, chumbo e outros metais que, infiltrando-se pelas fendas, vieram a constituir os veios e veeiros metálicos.

            Alternadas decomposições sofreu, sob a influencia desses agentes, a superfície granítica, originando-se misturas de que se formaram, em massas confusas, os terrenos primitivos, sem estratificações regulares, ao mesmo tempo que as águas, caindo em chuvas torrenciais sobre aquele solo ardente, se vaporizavam de novo, para tornarem a cair, e assim sucessivamente, até que a temperatura daquele brasido (Grande quantidade de brasas; braseiro)  colossal, por esse modo superficialmente extinto, lhes permitiu ficar no solo em estado liquido. Tal foi - observa Allan Kardec - o aspecto desse primeiro período, verdadeiro caos de todos os elementos confundidos, que procuravam a estabilidade onde nenhum ser podia existir, sendo por isso um dos seus caracteres distintivos em geologia a ausência de qualquer indício de vida vegetal e animal (1).

            (1) Pretendem, ao contrário, alguns naturalistas que mesmo no terreno primitivo existiriam rudimentos de vida organizada em seres de que todavia, não foram encontrados vestígios.

            No período de transição que se lhe seguiu (2), o mesmo fenômeno de rupturas continuou a se produzir na superfície granítica, ainda pouco resistente, formando-se protuberâncias ; mas já as águas, pouco profundas embora, cobriam quase toda a face do globo. O ar fora expurgado das matérias pesadas que, passando do estado gasoso ao de relativa condensação, por efeito do resfriamento, eram precipitadas no solo e arrastadas pelas águas.

            (2) Nem todos os zoólogos consideram esse período, preferindo simplesmente incluí-lo na época primária, mero pormenor de classificação, que não altera a ordem dos fenômenos.

            Uma substancia, entre outras, continuava, todavia, a impregnar abundantemente o ar, em razão do seu estado naturalmente gasoso: era o ácido carbônico. Foi então que, existindo já algumas camadas de terreno sedimentoso, depositadas pelas águas carregadas de limo e de matérias apropriadas à vida orgânica, surgiram os primeiros rudimentares seres do reino vegetal - musgos, líquens, cogumelos, fetos e plantas herbáceas - aos quais se sucederam os primeiros representantes, igualmente rudimentares, do reino animal, nascidos no seio das águas e dotados de uma organização cuja simplicidade os aproxima dos vegetais,
como os pólipos, os radiários  (similar a equinodermes e pólipos) ; os zoófitos, só mais tarde vindo crustáceos e peixes, cujas espécies desapareceram.

            Consecutivamente ao aparecimento daqueles primeiros exemplares do reino vegetal, e ao mesmo tempo que as plantas aquáticas se multiplicavam no seio dos pântanos, uma vegetação opulenta e gigantesca surgia, graças à ação do calor e da humidade, favorecida pela abundância do ácido carbônico espalhado na atmosfera e que, nocivo à respiração dos animais terrestres, é necessário às plantas, cuja função, absorvendo-o e purificando o ar, se destinava à prepara-lo para a nutrição de seres de mais delicada e complexa constituição.

            Com o deslocamento das águas, entretanto, os terrenos em que brotavam essas massas de vegetais foram repetidas vezes submergidos, cobertos de novos sedimentos terrosos, enquanto os lugares expostos se cobriam a seu turno de idêntica vegetação, havendo assim durante muitos séculos numerosas gerações de vegetais alternadamente renovados e sepultados sob a terra, formando camadas de considerável espessura.

            Mercê do calor, da humidade, da pressão exercida pelos depósitos terrosos posteriores e, indubitavelmente, de diversos agentes químicos, de gases, ácidos e sais produzidos pela combinação dos primitivos elementos, uma fermentação se produziu nessas matérias vegetais, transformando-as em hulha, ou carvão de pedra. Assim, em sua solerte providência, a natureza -melhor se dirá o seu Autor - armazenava no seio da terra, com uma previdente antecipação de muitos milhares de anos (1), o combustível de que, num adiantado grau de civilização, havia de necessitar o homem para as aplicações da mecânica às mais variadas industrias que o seu gênio inventaria.

            (1) A julgar por uma observação do naturalista Lyell, que na baía de Fundy (Nova Escócia) encontrou numa mina de carvão de pedra de 400 metros de espessura 68 níveis diferentes, com evidentes sinais de corresponderem a solos superpostos de florestas, cujas árvores ainda conservavam as raízes, e calculando, como em nota o faz Allan Kardec, um período de 1.000 anos para a formação de cada um desses solos, obtém-se a respeitável cifra de 68.000 anos pura a idade dessa mina de carvão.

            Prossigamos, porém, na sumária indicação dos principais fenômenos que assinalaram os imediatos períodos geológicos. Chegaremos assim á época secundária em que, com o desaparecimento da vegetação colossal e dos animais que caracterizaram a fase de transição a que nos vínhamos referindo, já seja porque se houvessem modificado as condições atmosféricas, ou porque repetidos cataclismos, de que se encontram vestígios nos terrenos que marcam o fim daquele período, tivessem destruído tudo o que na Terra então vivia (1), coincide o aparecimento de uma vegetação menos rápida e colossal, ao mesmo tempo que se multiplicavam os animais aquáticos, ou pelo menos anfíbios, a que adiante faremos referência, e uma prodigiosa quantidade de animais de conchas se desenvolvia no seio dos mares, em consequência da formação de substâncias calcárias. Nascem novos peixes, de organização mais aperfeiçoada e os primeiros cetáceos fazem a sua irrupção no cenário da vida terrestre.

             (1) Essa hipótese cataclísmica, formulada por Cuvier e que foi adotada por Allan Kardec, é contudo impugnada por modernos geólogos, que acham suficiente, para explicar as transformações operadas no aspecto físico e nas condições de vida do planeta, a ação prolongada, lenta e repetida que caracteriza a evolução, não admitindo essas revoluções, ou cataclismos, senão como fenômeno local e circunscrito e não generalizado.

            Durante esse período, cuja longa duração é atestada pelo número e espessura das camadas geológicas, a vida animal não somente adquiriu considerável desenvolvimento no seio das águas, mas começou a se ensaiar na face da Terra, graças à purificação do ar, tornado respirável aos seres destinados a povoá-la.

            O período terciário se assinala contudo nos seus primeiros tempos por uma, sensível pausa na produção vegetal e animal, sendo por toda parte evidentes os sinais de destruição quase geral dos seres, para o aparecimento de novas espécies, dotadas de mais perfeita organização, adaptada às condições do meio em que são chamadas a viver.

            Muda completamente o aspecto da superfície do globo. A crosta sólida adquirira suficiente espessura para impedir como nas anteriores rupturas, o extravasamento das matérias em fusão comprimidas no interior. Essa massa ígnea, porém, assim comprimida, veio a produzir uma espécie de explosão, determinando um duplo fenômeno: em alguns lugares a crosta granítica levantada, fendeu-se em crateras, por onde o fogo interior entrou a se escapar, e daí os vulcões, verdadeiras chaminés dessa imensa fornalha, ou melhor, válvulas de segurança que, pela exalação dos vapores e matérias ígneas, premunem desde então o globo da violência e extensão das convulsões anteriores; noutros Jogares a crosta sólida levantada a diferentes alturas formou as montanhas e cadeias de montanhas, descalvando umas, cobertas outras de vegetação, constituindo por toda parte o sistema ortográfico do globo.

            Com essas bruscas desigualdades operadas na superfície do solo, as águas, que até então a cobriam de modo mais ou menos uniforme em quase toda a sua extensão, foram repelidas para os lugares mais baixos, deixando a descoberto vastos continentes e cimos de montanhas isoladas, que formaram as ilhas.

            Não uma, todavia, mas sucessivas comoções assim se produziram - não nos permitindo contudo a economia de espaço, que nos impusemos, pormenoriza-las - com as quais facilmente se concebe que a vida orgânica teria sofrido um estacionamento, embora temporário. Logo que, porém, uma certa estabilidade se pronunciou e se desdobraram os vastos continentes, começaram também a se multiplicar os animais terrestres.

            Mas ainda para esses remotos povoadores da Terra não terminaria o período dos grandes cataclismos, senão que a seu turno tiveram que arrostar violentas convulsões, ao que se supõe, determinadas por uma brusca mudança operada na posição do eixo e dos polos do globo, de que resultou um deslocamento das águas, precipitadas dos seus leitos, as quais, invadindo tumultuariamente os continentes, não somente vitimaram considerável número de animais que, fugindo à inundação, foram colhidos nas cavernas (1) onde se haviam refugiado, só escapando os que se abrigaram nos lugares altos, mas, arrastando em seu curso terras e rochedos, formaram com esses novos depósitos os terrenos conhecidos sob o nome de diluvianos.

            (1) No México, na Carniola (Áustria) e em vários países da Europa existem numerosas cavernas, denominadas "de ossos" pela grande quantidade de ossadas de animais diversos que contêm, o que atesta a subtaneidade da catástrofe.

            Foi esse, no dizer de Allan Kardec, o verdadeiro dilúvio universal, que se não deve confundir com alguns dos fenômenos parciais da mesma natureza ocorridos posteriormente, a um dos quais é provável que se refira, a narrativa bíblica.

            Em consequência daquela mudança na inclinação do globo, a sua temperatura sofreu também sensível modificação, coincidindo aí o aparecimento dos primeiros gelos nos polos e a formação das geleiras nas montanhas, assim se assinalando o período "glaciário," que marca uma das derradeiras fases da terceira época geológica.

            O que indica que deveria ter sido súbita essa mudança é a existência, nas terras polares, de restos fósseis de animais, como os elefantes, que só vivem hoje sob os climas quentes; porque, como o observa ainda Allan Kardec, se fosse lentamente operada, aqueles animais teriam tido tempo de se retirar gradualmente para as regiões mais temperadas. Tudo prova, ao contrário, que deviam ter sido bruscamente surpreendidos por um grande frio e envolvidos pelos gelos.

            A partir de então é que, restabelecido o equilíbrio na superfície do globo e encerrado o ciclo das grandes comoções, parciais ou generalizadas - pouco importa a divergência de opiniões, que não destrói o fato - a vida vegetal e animal pode por toda parte se expandir tranquilamente.  

            Começava o período quaternário. E se a Terra, segundo os mais recentes indicados cálculos, necessitaria de 100 milhões de anos para, nas três precedentes épocas, primeiro se consolidar e pôr em ordem os seus elementos primitivamente confundidos; em seguida, reunir as condições apropriadas à existência dos primeiros monstruosos seres acentuadamente organizados; e por último tornar-se favorável à proliferação das mais variadas espécies, culminando nas formas superiores da animalidade, bastar lhe ia o prazo, comparativamente insignificante, de 100 a 300 mil anos, que corresponde ao período quaternário, para registrar os rápidos progressos que a mais perfeita de todas - a espécie humana - viria consumar em sua face.

            Voltaremos a deduzir desse fato, altamente significativo, as consequências filosóficas a que se presta. Por agora, depois de termos acompanhado, neste rápido e sumaríssimo esboço, a gênese e desenvolvimento do nosso habitat, sobretudo no que se refere a sua estrutura física, não será ocioso, senão conveniente ao objetivo que visamos, lançar um golpe de vista, igualmente sintético embora, sobre o aparecimento gradual e evolutivo dos seres destinados a entoar, neste minúsculo trecho do universo, a sinfonia majestosa da vida e do progresso.




Leopoldo Cirne



Leopoldo Cirne
Redação
Reformador (FEB) Setembro 1948


            Leopoldo Cirne exerceu o cargo de Presidente da Federação Espírita Brasileira durante o período de 1900 a 1914. Nasceu em 31 de Abril de 1870, na Paraíba do Norte, criando-se, porém, na cidade do Recife. Desencarnou nesta Capital, na manhã de 31 de Julho de 1941. Desde cedo nele se revelou acentuado pendor pelos estudos, e, favorecido por viva inteligência, avançava, com real proveito, em seu curso de Humanidades. Dificuldades financeiras obrigaram-no a abandonar os estudos e a ingressar no comércio, quando contava onze anos de idade. Os comerciários atualmente desfrutam regalias e liberdades que aos de seu tempo não eram concedidas. Mal despontava a aurora, até às caladas da noite, estava o empregado no serviço ativo. Só uma pequena parte do domingo podia o comerciário de então respirar mais livremente e dispor da sua vontade. Quis, porém, o destino que o nosso biografado, apesar de ter a alma cheia de belos sonhos, se visse na contingência de enfrentar, ainda menino, as lutas e a rude disciplina comercial, sacrificando, assim, seus mais caros ideais de formação intelectual!

            Ignoramos se em aqui chegando, pelo ano de 1891, trazia já sua crença firmada na Terceira Revelação. O certo, porém, é que, em pleno desabrochar da sua juventude, pois contava mais ou menos vinte e dois anos de idade, e já ao lado do inolvidável Bezerra de Menezes trabalhava tão sincera e entusiasticamente a prol do Espiritismo, que desde logo granjeou a confiança de seus confrades que lhe sufragaram o nome para Vice-Presidente da Federação Espírita Brasileira.

            Leopoldo Cirne foi espírita tanto no lar como na sociedade, tanto no sofrimento como nos momentos de ventura. Durante todo seu jornadear terreno, seja no trato dos interesses materiais, seja no campo das atividades espiritualistas, ninguém logrou vê-lo irritado, mal humorado, impaciente. Jamais imprimiu à sua voz uma tonalidade ríspida. Era carinhoso, afável no falar. Quantas criaturas, ao ouvi-lo, modificavam seu modo errado de ver e de sentir as coisas.

            Despontava o dia 11 de Abril de 1900 e a família espírita brasileira, os pobres, os pequeninos, os ignorados desta Terra de Santa Cruz, recebiam a notícia de que o Espírito de Adolfo Bezerra de Menezes, o grande Presidente da Federação Espírita Brasileira, partira para as regiões sublimes do Além!

            Voltara à pátria querida, após longa peregrinação terrena em que dera as mais exuberantes provas de fé, de amor, de humildade e de resignação. Sua vida foi um holocausto incessante em favo, do Espiritismo em nossa pátria, tanto que o denominaram "Allan Kardec" brasileiro!

            Foi, pois, a uma personalidade dessas que coube a Leopoldo Cirne substituir na suprema direção da Casa de Ismael. E a sua atuação nesse alto posto foi tão marcante que, por cerca de onze anos, o exerceu com verdadeiro amor evangélico e dentro daquele espírito de sincera humildade de que o Cristo nos deu edificante exemplo. Em começo dissemos que se vira ele obrigado a interromper seu curso de Humanidades; todavia, com esforço próprio conseguiu Leopoldo Cirne ser um dos mais puros vernaculistas, deixando-nos artigos e obras que até hoje merecem a nossa admiração. A sua perseverante força de vontade e de confiança na misericórdia do Alto, deve a Federação Espírita Brasileira a sua sede na Avenida Passos, inaugurada no dia 10 de Dezembro de 1911.

            Esta sua corajosa iniciativa seria o suficiente para credencia-lo à imorredoura gratidão dos espíritas brasileiros. A imprensa desta Capital inseriu em suas colunas lisonjeiras apreciações a respeito desse acontecimento. Destacaremos, aqui, alguns tópicos extraídos de quatro periódicos:

da A Noite, edição do dia 8:

            Depois de vinte e oito anos de trabalho, a Federação Espírita Brasileira ergue o seu majestoso templo, que se inaugura à Avenida Passos, domingo.
            O Espiritismo tem sido divulgado como crença religiosa e como ciência, ou conjuntamente. Neste último caso é que ele caminha agora assombrosamente.

da A Imprensa do dia 9:

            Depois de vinte e oito anos de existência, trabalhada dia a dia com os sacrifícios peculiares à natureza de uma agremiação inspirada em nobilíssimos intuitos, num meio social todo feito de desconfianças e de incertezas morais, como é o nosso, pelas suas condições originárias mesmo de país novo, em que a raça se agita em todos os fenômenos de sua formação, o acontecimento de amanhã se reveste de uma significação lisonjeira, assinalando ao nítido os sintomas felizes do adiantamento da sociedade patrícia aos das demais de toda a Humanidade. Vai ser inaugurado o novo edifício da Federação Espírita Brasileira, que é um elegante e sólido palacete, especialmente construído na Avenida Passos.

do Correio da Manhã, também do mesmo dia:

            Inaugura-se amanhã, na Avenida Passos, a nova sede social dessa associação.
            Em que pese à incredulidade de muitos que não levam em conta as teorias de Allan Kardec, não se pode negar os reais serviços que esta Federação, em 28 anos de existência, tem prestado à população desta Capital.

de O Paiz, edição do dia 10:

            A Federação Espírita Brasileira inaugura hoje o novo edifício da sua sede, à Avenida Passos nºs 28 e 30.
            Não é uma inauguração vulgar, de um edifício que interessa apenas à associação a que pertence; ela resume, na pedra e na argamassa do amplo edifício erigido naquela avenida, uma obra generosa de fé e de assistência, que se tem estendido beneficente sobre uma grande parte da população desta terra: A nova sede da Federação Espírita Brasileira tem, considerada no seu ponto de vista particular, o valor, já hoje raro, de exprimir uma dedicação extraordinária dos homens agremiados naquele centro de atividades convencidas, dedicação praticada em uma quase penumbra, sem alarde, sem benemerências conclamadas, sem nomes postos em foco, com a modéstia afetiva dos crentes sinceros e dos generosos por dever; em cada pedra, em cada bocado de argamassa da sua construção, há um pouco de coração e de consciência, dominados por um alto sentimento e um sugestivo dever.

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            Como em 1926 a Federação Espírita Brasileira não apoiasse o movimento que se processava no intuito de fundar-se a Constituinte Espírita Brasileira, e como fosse público haver Leopoldo Cirne deixado a presidência da Casa de Ismael e que não se solidarizava com vários membros da sua Diretoria, julgaram vários confrades ser o momento azado de seduzir Leopoldo Cirne com uma representação de largas projeções no cenário político, e a ser exercida através da projetada Constituinte Espírita Brasileira.

            Era, porém, tal a inteireza de seu caráter, a firmeza de suas convicções e, mais ainda, o esclarecido pensamento de que todos deveriam prestigiar a Federação Espírita Brasileira, que não vacilou em dirigir a uma agremiação de vizinho Estado, que o convidara para representá-Ia na Assembleia da fundação dessa Constituinte, em 31 de Março de 1926, um longo e judicioso memorial, do qual destacamos os seguintes trechos:

            Ser-me-ia muito agradável corresponder à benévola deferência, aceitando o honroso mandato, se a isso se não opusessem motivos de consciência, que entendem com o que se me afigura serem os altos interesses da doutrina em causa. Porque, fazendo embora justiça aos promotores da planejada Constituinte, que se hão de certamente acreditar fundados em excelentes razões para a iniciativa que tomaram, devo, todavia, confessar que não simpatizo de modo algum com esse movimento que, sob as enganadoras aparências de unificação e fortalecimento pela coesão, da família espírita brasileira, outro resultado não trará senão acentuar divergências latentes e favorecer o espírito de competição e de discórdia, dando-lhe uma pública e, de todo ponto, inconveniente repercussão, como já se pode observar nas contendas que começam de surgir pelas colunas dos jornais estranhos à nossa comunhão.

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            E se alguma iniciativa deve ser tomada - que o deve certamente - no sentido de fortalecer-se o laço de solidariedade entre a família espírita brasileira, por todos os meios de aproximação de seus componentes, para uma ação mais eficaz nas coisas da doutrina e mais amplas realizações que as que se têm até agora consumado, essa iniciativa só pode e só deve caber à Federação Espírita Brasileira, eixo central da nossa organização doutrinária e militante. Todo movimento partido de fora com iguais intuitos aos de seu programa, constituindo um paralelismo cismático e anarquizador, só há de conduzir à dispersão e à desordem, por mais que lhe queiram atribuir foros de organização. E que se deve pensar dos que, para organizar, isto é, para estabelecer métodos e normas disciplinares, começam por infringir os preceitos da obediência e disciplina, sem as quais não se pode manter coesa a coletividade?

*

            Leopoldo Cirne sempre voltado para a literatura espiritualista, não desdenhava a literatura profana, desde que esta terçasse armas por um ideal elevado. Seu amor e interesse pela cultura eram tão grandes, que a ele se deve o apoio que a Federação sempre prestou à causa do Esperanto, desde 1909. E era com enlevo e correta dição que recitava de cor trechos patéticos de Castro Alves em prol da liberdade dos negros, de Guerra Junqueiro e outros. De Joaquim Nabuco, que ouvira em comícios no Recife, conservava muitas recordações; e a poesia mui brasileira e sentimental de Casemiro de Abreu era credora de seu apreço. Renan e Victor Hugo tinham no altar de sua estima um nicho especial. Contristava-o, no entanto, o aspecto de desolação que o mundo oferecia, e ainda oferece a todos nós, avassalado como está pela progênie de Caim, após tantos séculos de pregação evangélica.

            Talvez Leopoldo Cirne estivesse convencido daquele conceito proferido por Henry de Chatelier: Depuis l'origine du monde la moralité moyenne des hommes n'a guère variée, mas o seu profundo ressentimento cristão revoltava-se contra certas tendências materialistas dominando a mentalidade de alguns povos e procurando estabelecer o primado do egoísmo e da brutalidade.

            Leopoldo Cirne, como é de ver; foi marido exemplar, de extremo carinho para com a sua companheira e esposa muito querida, que hoje resignadamente sofre a sua separação objetiva. Ele considerava o lar, aquele home, sweet home da célebre canção inglesa, no qual a sua existência, embora sem os cuidados da paternidade, se desenrolou dentro dos modestos limites de seus recursos pecuniários, sem o fel da inveja, nem os acúleos da ambição.

            E foi com os olhos postos nessa companheira, que tão bem soube compreendê-lo, amá-Io e encorajá-lo na sua laboriosa vida farta de espinhos, e balbuciando uma doce e comovedora prece, que o espírito de Leopoldo Cirne, abruptamente, partiu para essa pátria que tanto amava!







domingo, 14 de outubro de 2012

Mãos Enferrujadas



Mãos
Enferrujadas



            Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou nos conhecidos a impressão de que subiria incontinente ao Céu. Vivera arredado do mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca.

            Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela; e o lenço, admiravelmente dobrado, caía, irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às maneiras distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso, cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.

            Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava os padres católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os espiritistas à conta de loucos. Aceitava Jesus a, seu modo, não segundo o próprio Jesus.

            As facilidades econômicas transitórias adiavam lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo da vida.

            Estudava, estudava, estudava...

            E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro. Em vista disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem sem escalas com destino à Corte Celeste.

            Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles: distribuía esmolas vultosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar, afastava-se do mundo para não pecar. Não seria Joaquim - perguntavam amigos íntimos - o tipo do religioso perfeito? Distante de todas as complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, impossível não conquistasse o paraíso.

            A realidade, contudo, que o defrontava agora, não correspondia à expectativa geral.

            Sucupira desencarnado ingressara numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em serviço digno. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado à velha cozinheira analfabeta.

            Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido. Conseguia andar, ver, ouvir, pensar; no entanto, desventurado Joaquim! as mãos e os braços mantinham-se inertes. Semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de braços, porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.

            Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos a tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.

            O benfeitor que detinha ali funções de juiz, reunida a assembleia de espíritos penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam aos círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar os casos mais angustiosos e urgentes.

            Devotados companheiros do bem selecionaram a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Sucupira, a exibir os braços petrificados.

            Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto ao relatório geral e circunstanciado da existência finda, obtemperou o julgador.

            - Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.

            Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:

            - Sua maravilhosa acuidade mental demonstra que estudou muitíssimo.

            Fez pequeno intervalo e entrou a arguir:

            - Joaquim, você era casado?

            - Sim.

            - Zelava a residência?

            - Minha mulher cuidava de tudo.

            - Foi pai?

            - Sim.

            Cuidava dos filhos em pequeninos?

            - Tínhamos suficiente número de criadas e amas.

            - E quando jovens?

            - Eram naturalmente entregues aos professores.

            - Exerceu alguma profissão útil?

            - Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.

            - Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?

            - Sempre fugi, receoso, das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.

            O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:

            - Você adotou alguma religião?

            - Sim, eu era cristão - esclareceu Sucupira.

            - Ajudava aos católicos?

            - Não. Detestava os sacerdotes.

            - Cooperava com as igrejas reformadas?

            - De modo algum. São excessivamente intolerantes.

            - Acompanhava os espiritistas?

            - Não. Temia-lhes a presença.

            - Amparou doentes, em nome do Cristo?

            - A Terra tem numerosos enfermeiros.

            - Auxiliou criancinhas abandonadas?

            - Há creches por toda parte.

            - Escreveu alguma página consoladora?

            - Para quê? o mundo está cheio de livros e escritores. 

            - Estimava o martelo ou o pincel?

            - Absolutamente.

            - Socorreu animais desprotegidos?

            - Não.

            - Agradava-lhe cavar a terra?

            - Nunca.

            - Plantou árvores benfeitoras?

            - Também não.

            - Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?

            Sucupira fez um gesto de desdém e Informou:

            - Jamais pensei nisto.

            O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta. Ao fim do interrogatório, opinou sem delongas:

            - Seu caso explica-se. Você tem as mãos enferrujadas.

            Ante a careta do interlocutor amargurado, esclareceu:

            É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.

            Joaquim, confundido, desejava mais amplas elucidações.

            O juiz, porém, sem tempo de ouvi-Io, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.

            Rogério, carioca desencarnado, tipo 1945, recebeu-o de semblante amável e feliz e, após escutar-lhe compridas lamentações, convidou, pacientemente: 

            - Vamos, Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.

            - Fila? - interrogou o infeliz, boquiaberto.

            - Sim - acrescentou o alegre ajudante - na fila da reencarnação.

            E, puxando o paralítico pelos ombros, concluía sorrindo:

            - O que você precisa, Joaquim, é de movimento .

Irmão X por Chico Xavier
Reformador (FEB) Dezembro 1947


sábado, 13 de outubro de 2012

Os Mortos não sabem de nada?





Os mortos
não sabem nada?

            Um protestante, amigo nosso, põe-nos diante dos olhos o seguinte trecho bíblico:

            "Porque os que estão vivos sabem que hão de morrer, porém os mortos não sabem mais nada, nem dali por diante êles têm alguma recompensa; porque a sua memória ficou entregue ao esquecimento." (Ecl., 9:5).

            O que ai afirma Salomão não resiste sequer a uma análise superficial. Senão, vejamos. Que é que lhe resta então ao Espírito? Se não sabe mais nada, nem tem alguma recompensa, porque a sua memória ficou entregue ao esquecimento, que é, portanto, que lhe acontecerá? Ressurgirá? Não pode ser, pois não terá alguma recompensa, e os protestantes creem que a ressurreição será a sua recompensa. Ora, se não ressurgir, como, no entender ainda dos protestantes, vai o justo para o "céu" e o ímpio para as "penas eternas"? Bem razão tinha o eminente filólogo e ilustre protestante Prof. Otoniel Mota quando disse que "evitava tratar de coisas secundárias e obscuras, que a Bíblia deixa na penumbra e que podem escandalizar mais do que edificar". O versículo acima é um dos muitos que há na Bíblia, capazes de induzir a erro os crentes aferrados à sua infalibilidade.

            Nosso amigo acha que tal passagem é uma prova de que os "mortos" não nos podem confortar em nada, por isso que o espiritista erra quando pensa que recebe uma mensagem "do outro mundo".

            Ao contrário do absurdo, acima exposto, que consiste em acreditar fique a alma inconsciente após a morte, sem alcançar recompensa, sem receber o prêmio ou o castigo dos atos bons ou maus aqui praticados, ensina-nos o Espiritismo que o Espírito, quando se desliga do corpo, pode, na verdade, achar-se confuso, perturbado, a principio, conforme o seu desenvolvimento ou a causa da morte. Terá, porém, plena consciência do que foi na Terra. Receberá a paga ou a condenação do bem ou do mal que praticou. Sentir-se-á num verdadeiro paraíso se a sua consciência estiver tranquila pela isenção de culpa. Julgar-se-á num verdadeiro inferno se o remorso lhe morder e queimar a mesma consciência pelos crimes e erros cometidos.

            A lei de Deus é, apesar de dogmas em oposição, progredir sempre. Ninguém se perderá, pois "Deus quer que todos os homens se salvem, e que cheguem a ter conhecimento da verdade." (Paulo, Tim. I. 2:4). E quando Deus quer quem poderá não querer?

            "A Deus tudo é possível." (Mat ., 19: 26). Ao Deus Amor, revelado pelo Cristo em todos os seus ensinos e parábolas, dado a ver na própria vida do humilde Nazareno, ao Deus Caridade não é impossível salvar a todos. Aí temos a doutrina reencarnacionista, pela qual compreendemos perfeitamente o extremadíssimo, o infinito amor de Deus às suas criaturas, que terão, de acordo com o próprio merecimento, de acordo com o uso que fizerem dos seus talentos, tempo suficiente para, nas pegadas do Mestre, atingirem o desenvolvimento espiritual, a salvação eterna. Não será a morte do Cristo que nos salvará, mas a sua vida, isto é, todos nos salvaremos seguindo passo a passo a sua doutrina de humildade, de tolerância, de renúncia, de fé, de amor e de caridade.

            O fato de renascer de novo para entrar no reino de Deus é a maior e a mais sublime bênção do Criador à criatura, pois lhe permite pagar até "o último centíl", sob as vistas daquele Pastor bendito capaz de deixar as 99 ovelhas no monte para ir buscar aqueloutra que se extraviou.

            As verdades divinas são a nós reveladas de conformidade com a nossa condição, o nosso adiantamento moral, o nosso grau de evolução espiritual. O Espírito Santo, a saber, os Espíritos Superiores, mensageiros abnegados de Jesus, encarregados de trazer aos homens, de quando em quando, a luz que não raro lhes falta para encaminharem a vida na prática do bem, o Espírito Santo não cessa através dos tempos de dizer-nos aquelas muitas coisas que o Cristo tinha ainda que nos dizer, mas nós não as podíamos suportar. E assim ainda será, até que Jesus tenha junto de si todas as "outras ovelhas", até que haja um só rebanho e um só pastor, pois tal é a Sua vontade e a vontade do Pai.

            O que o Espiritismo pede aos seus crentes e aos seus descrentes é que o estudem e examinem, estudando e examinando tudo e escolhendo o que for bom, no preceito de Paulo. E ainda com o grande apóstolo dos gentios, na sua advertência aos romanos (12:1), ele nos roga - roga-vos, a todos, o Espírito de Verdade, "pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como uma hóstia viva, santa, agradável a Deus, que é o culto racional que lhe deveis."

            O Espiritismo não admite a fé cega. Não dogmatiza, porque sabe que infalível só Deus o é. Aceita a Bíblia no que ela tem de justo e de bom, sem tomar tudo ao pé da letra, "pois a letra mata e o espírito é que vivifica".

            Julga o nosso amigo que aquele trechinho do Eclesiastes é um golpe certeiro no Espiritismo. Mas engana-se redondamente. O Livro dos livros não é infalível. Não acredita? Pois, para melhor evidenciá-lo com armas que não são nossas, damos a palavra a um grande e culto teólogo, o Rev. Charles Reynalds Brown, na sua obra Os Pontos Principais da Crença Cristã, da qual o nosso ilustre confrade Dr. Romeu do Amaral Camargo cita, em seu esplêndido livro O Protestantismo e o Espiritismo à luz do Evangelho, às páginas 101 e 102, o seguinte trecho:

            "Pode haver valor, verdade, autoridade, grande; esplendida e útil, sem infalibilidade (grifos do Dr. Romeu). Os católicos entendem que, se a Igreja não for infalível, não pode ensinar ao povo. Muitos protestantes rezam pela mesma cartilha, entendendo que, se a Bíblia não for infalível, não pode ensinar ao povo. E ambos estão errados: só Deus é infalível, e nem a Igreja nem a Bíblia é Deus. Mas tanto a Igreja como a Bíblia podem ensinar com autoridade e proveito se as conclusões morais tiradas da revelação feita por Deus, através da experiência religiosa de um povo escolhido, forem válidas. Dizem que é perigoso permitir que os homens façam estas discriminações nas Escrituras decidindo que esta passagem é a verdade absoluta de Deus, e que uma outra é devida à circunscrição puramente humana do escritor. Mas os homens nunca estiveram livres deste perigo. Homens como nós, que só tinham a direção divina que a todos é facultada, têm decidido muitas questões vitais. Por exemplo, tiveram de escolher os livros que formam a Bíblia e rejeitar outros. Levantaram-se graves questões. A Epístola de Barnabé foi tida por Clemente de Alexandria e por Orígenes, como inspirada. Barnabé é mencionado com Paulo nos Atos como apóstolo, e é descrito como "um homem bom e cheio do Espírito Santo". O manuscrito mais antigo que temos da Bíblia, o Sinaiticus, descoberto por Tischendorf, em 1859, num convento perto do Monte Sinai, contém a epístola de Barnabé. Mas, mesmo assim, por motivos que julgaram suficientes, os homens rejeitaram esta epístola, enquanto que outros livros, de menos inspiração, foram retidos no cânon.

            "A maior defesa da autoridade da Biblia encontra-se na experiência humana. Os homens a têm em grande conta por causa da obra que tem feito nos campos da vida cristã. Não é de importância que a Bíblia seja verbalmente ínspirada nem tecnicamente infalível; mas é de importância que os homens descubram nela e por meio dela o Pai Eterno.

            "Aponta-nos (a Bíblia) os caminhos falsos cujo fim é a morte, mas fala com uma autoridade superior à infalibilidade teológica. Está cheia do Espírito Santo que é o espírito de verdade, e seu poder não depende das teorias de inspiração que os homens inventam, mas de sua própria vida imortal, sua sublime elevação, sua capacidade de trazer homens a Deus e à paz. A Bíblia contém a palavra de Deus, mas não se pode dizer que todas as suas palavras e sílabas são a palavra de Deus."

            E, para finalizar, mais este (op. cit., página 118):

            "A comunicação da verdade aos homens não cessou com o último livro da Bíblia.

            "A revelação não é só uma possibilidade eterna, é uma necessidade eterna: não se limita a raça alguma, a tempo algum, a condições algumas, nem a fase alguma da fé. A promessa não foi feita a nenhum século nem a qualquer grupo de homens, não foi de uma revelação instantânea, porém, de um desenvolvimento gradual, progressivo: - "Ele vos guiará para toda a verdade". Temos grandes problemas que os livros ainda não resolveram. Para muitos entre nós, a Igreja não é mais do que um sacerdote, do que um mestre, do que um dominador. Para que a Igreja seja uma força neste século, claro é que tem de ser diferente e maior do que agora o é. Não confiamos nos planos sábios até aqui descobertos, mas na direção do Espírito prometido à Igreja que se dedica à vontade de Deus. O dia de Pentecostes não foi uma maravilha isolada, que se operou no início de uma nova dispensação para atrair a atenção. Foi uma amostra do modo pelo qual as “forças do mundo invisível" podem ser "invocadas" para ajudar as nossas próprias forças morais no estabelecimento do reino de Deus."

            Medite sobre isso o nosso amigo, sem receio de anátemas, atento tão só à voz da sua própria consciência e da sua própria razão. E há de ver então que a letra mata...

            Lavras - Minas.       R. C.

Reformador Abril 1946