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domingo, 3 de maio de 2015

Frederico Jr.

‘Frederico Pereira 
da Silva Júnior’

por Pedro Richard
Reformador (FEB) Agosto 1973

            O nome que encima estas linhas aqui traçadas encheu mais de um terço de século da vida espírita do nosso país.

            Ele só por si constituía um exército que assombrava as falanges inimigas da Luz e, por isso mesmo, era o alvo predileto das setas venenosas dos adversários de Jesus.

            Até da pouca benevolência de confrades foi Frederico Júnior vítima, máxime dos que muito exigem dos outros, mas que nada, ou quase nada produzem.

            Dizer dos seus feitos é tarefa árdua demais para mim. Seria preciso escrever um volumoso livro para relatar os episódios de sua vida espírita que, sem dúvida, foi muito mais acidentada e grandiosa do que a de Mme. d'Espérance, contada por ela própria no seu livro "No País das Sombras".

            Todavia, em resumidas linhas, tanto quanto comporta o espaço estreito de uma revista, vou contar os principais episódios passados com o nosso excelente confrade, episódios que a minha enfraquecida memoria ainda me pode ditar.

                                                                                  *

            Em 1878, desejoso de saber notícias de uma pessoa querida que houvera desencarnado tempos antes, Frederico obteve de seu padrinho de batismo, o nosso bom e velho companheiro Luiz Antônio dos Santos (hoje, no Espaço), que o levasse à Sociedade Deus, Cristo e Caridade, para assistir a uma sessão.

            Lá chegado, Frederico, que então contava apenas a idade de 21 anos, foi na mesma noite empolgado sonambulicamente por um Espírito; e desde então começou a trabalhar como médium. Vem daí, pois, a sua vida de médium, ininterrupta.

            Em 1880, quando a Deus, Cristo e Caridade embrenhou-se na orientação puramente científica e se cindiu em dois grupos, Frederico acompanhou o que, em boa hora, dela desligou-se e que foi constituir a Sociedade Espírita Fraternidade, com a orientação original, que era a evangélica.

            Nessa nova agremiação espírita, continuou o novel médium a estudar os Evangelhos pela Revelação dada ao Sr. Roustaing, estudo que fora interrompido em virtude da divergência de orientação que se deu na Deus, Cristo e Caridade.

            A Fraternidade, cujo arquivo não se sabe hoje onde para - o que, diga-se de  passagem, constitui uma grave e profunda lacuna para a história do Espiritismo no Brasil -, produziu coisas assombrosas, máxime na parte dos trabalhos de obsessão.

            Quando, em 1882, tive a ventura de entrar para a Sociedade Fraternidade, encontrei ali um grande e seleto grupo de médiuns, sendo Frederico reputado um dos melhores, já pela variedade de inestimáveis mediunidades que possuía, já pela grande e santa dedicação que tinha à Doutrina Espírita. E aí continuou ele a trabalhar sempre com assiduidade e boa vontade.

            Voltemos ao ano de 1880, para falarmos dos esforços empregados por um dos mais dedicados confrades no sentido de harmonizar os membros da Deus, Cristo e Caridade e congregá-los novamente em torno da sua primitiva orientação, que era, como disse linhas acima, a evangélica.

            Narremos, pois, o que se passou.

            No dia 6 de junho daquele ano, o nosso prestimoso confrade e amigo Dr. Antônio Luiz Sayão, no nobre intuito de reunir novamente as duas facções da Deus, Cristo e Caridade em torno de um mesmo ideal, convocou uma reunião desses irmãos em seu escritório, na Rua Luiz de Camões, num sobrado junto ao nº 5 antigo, e expôs os intuitos que o levavam a reunir ali os seus irmãos em crença.

            Sayão nada conseguiu de satisfatório.

            Não foi possível obter a conciliação que ele ardentemente desejava.

            Fundou, então, um grupo destinado ao estudo e à prática dos Evangelhos, denominado Grupo dos Humildes, conhecido mais tarde pela denominação de Grupo Ismael e também pela de Grupo Sayão, que realizou a sua primeira sessão no dia 15 de julho do mesmo ano, e onde Frederico, desde logo, trabalhou como médium.

            De então para cá e durante 34 anos, seguidamente, exerceu Frederico as suas funções mediúnicas nesse Grupo, sendo que o seu último trabalho, que é o canto do cisne, foi produzido em 11 de junho último.

            Por seu intermédio contam-se nesse Grupo centenas de curas de obsessões. Posso afirmar, sem receio de contestação, que, a não ser a obra dada ao Sr. Roustaing, a "Revelação da Revelação", por intermédio da Sra. Collignon, foi ali, naquele Grupo, que se produziram os trabalhos espíritas que, na ordem moral, de maior vulto se têm obtido mediunicamente no mundo inteiro e tudo isso devido a Frederico Júnior.

            É assim que, além das muitas e brilhantes comunicações publicadas nos livros intitulados "Trabalhos Espíritas" e "Elucidações Evangélicas", ambos publicados pelo Dr. L. Sayão, o Grupo obteve do meigo Espírito Bittencourt Sampaio, sempre por Frederico, os três monumentos denominados "Jesus perante a Cristandade", "De Jesus para as Crianças" e "Do Calvário ao Apocalipse".

            Nestas três epopeias, encontrou o sublime Espírito Bittencourt Sampaio em Frederico Júnior o instrumento maleável e propício para dar expansão às suas melodias celestiais, particularmente quando produziu a joia divinal que é o "De Jesus para as Crianças".

            Estes três livros, escrínios inestimáveis de belezas doutrinárias e literatura sem jaça, constituem a prova a mais irrecusável da existência e comunicabilidade dos Espíritos. São obras grandiosas de ensinamentos e combate, que estão reservadas para o futuro. Só a posteridade será capaz de julgá-las no seu justo e devido valor. E então se provará, com estes três monumentais documentos impressos, que foram ditados pela boca de um pobre iletrado que mal conhecia a gramática (documentos que encerram, nas suas luminosas páginas peças literárias de belezas raras), se provará, disse, a existência incontestável dos Espíritos e a sua comunicabilidade com os seus irmãos da Terra.

            Mas, meus caros amigos, que de lutas teve de sustentar este pobre homem, que pediu uma das provas mais rudes que se pode imaginar!

            Nascido e criado num meio de operários, chegou à idade adolescente convivendo com boêmios e lutando com os arrastamentos próprios de semelhante classe social. E, no entanto, era um bom. Ninguém tinha queixa dele. Todos que com ele conviviam lhe deviam gratidão por um serviço qualquer.

            Era um soldado de Jesus e, por isso mesmo, um perseguido.

            Contar as perseguições de que foi vítima, já vos disse, não me é possível. Contudo, vou relatar alguns fatos, os mais frisantes. Ei-los:

            Todas as vezes que os Espíritos nos anunciavam o recebimento de um livro,  crescia-lhe a perseguição de um modo atroz!

            A proporção que se desenvolvia, pelo exercício contínuo, a sua mediunidade, mais facilidade encontravam os maus Espíritos para nele exercerem a sua influência deletéria. Era uma luta sem tréguas e impiedosa!

            De dez anos para cá, nova faculdade mediúnica se desenvolveu em Frederico Júnior: a mediunidade estática.

            E de tal maneira se desenvolveu nele esta mediunidade, que era difícil se saber, em dadas ocasiões, quando era o homem que falava ou algum Espírito por ele. Apenas percebia-se quando ele estava mediunizado pelo seu olhar, que então se mostrava com brilho maior do que o habitual.

            Era preciso ter o hábito de conviver com ele para se perceber quando estava mediunizado.

            De uma feita, jantando comigo em um hotel, expendeu larga palestra. Estranhando eu as suas opiniões bizarras, não tinha ele, pouco depois, a menor lembrança do que tinha feito e dito momentos antes. Um dia, depois de uma semana de ausência de casa, recolheu-se cedo ao lar e, reunindo na sala de jantar a esposa e filhos, deles despediu-se em lágrimas, alegando que não mais podia suportar os atrozes sofrimentos que o vinham atormentando.

            Os inimigos do Espaço não o deixavam dormir, nem sossegar. Até no seu próprio quarto de dormir improvisavam bailes carnavalescos e batuques! Uma noite, foi ele avisado de que sua casa estava em chamas. Foi à cozinha e lá encontrou, efetivamente, uma mesa ardendo, sem que pudesse explicar donde tinha provindo o fogo.

            Era de um desprendimento e dedicação verdadeiramente evangélicos. Vou narrar um simples fato para dar uma pálida ideia de sua dedicação.

            Morava eu na Gávea - foi no ano 1912 - e lá tinha minha filha Isaura, gravemente enferma. Estava ela aos cuidados mediúnicos de Frederico Júnior. Era em junho. Uma noite fria e úmida, muito fria mesmo, havia melhorado a doente. Por volta das3 horas da madrugada, ouvi bater mansamente à porta. Abri-a e - quem era?! - deparei com o bom do Frederico, tiritando de frio e batendo o queixo. Sem mais preâmbulos nem outras palavras foi, desde logo, indagando do estado da doente. Contou-me, então, o que se havia passado:

            "Deitei-me cedo; pouco depois, vi junto a mim Isaura vestida de virgem e, sorrindo, disse-me: "Vim trazer-lhe as minhas despedidas." E a visão desapareceu. Não pude mais conciliar o sono; por isso, vim pressuroso saber notícias de Isaura."

            Morava, então, Frederico no Rio Comprido.

            Que sacrifício, Santo Deus! Que dedicação evangélica!

            Não podia parar em casa com o sentido nos seus doentes. Logo ao amanhecer, saía de casa para visitar os enfermos. E nisso estava o seu maior consolo e o seu bem-estar.

            Os seus últimos anos de vida humana foram de sofrimentos constantes e atrozes. Dele se poderá dizer: "Bem-aventurados os que sofrem por amor da justiça, pois serão consolados".

*

            Após dolorosa enfermidade, Frederico Júnior, sem uma queixa e achando que justo era o seu sofrimento, desencarnou. Deixou fotografado no éter um belo quadro que traduz bem a grandeza de seu Espírito e a pureza de sua crença. Quero me referir ao que se passou nos seus últimos momentos. Reunindo a família, ora ele próprio uma Ave Maria e, ao terminar a sublime prece, seus lábios emudecem; cerram-se-lhe as pálpebras e seu Espírito ala-se aos páramos celestes.

            É assim que desencarnam os filhos de Maria. Que quadro belo e venturoso! Ao meu bom e nobre companheiro de 32 anos; ao meu grande amigo, a quem tanto devo e cuja amizade nunca sofreu o menor estremecimento, eu digo: Adeus, meu bom e dedicado amigo; adeus, Frederico; até breve.


(Resumo de artigo publicado no "Reformador" de setembro de 1914, págs. 299/302)

sábado, 2 de maio de 2015

A Velha História da Traição de Judas

A Velha História
da Traição de Judas

Arthur da Silva Araújo
Reformador (FEB) Abril 1971

            É velho costume chamar-se “Judas” às pessoas que agem com falsidade,
traiçoeiramente, praticando atitudes incorretas. A histórica personagem tornou-se símbolo da ignomínia humana; e nós, como que agravando a situação, continuamos ofertando-lhe, pela força do hábito, pensamentos negativos e destruidores.

            A questão, por ser delicada, requeria comentários esclarecedores, os quais, por seu turno, reclamavam prévio estudo da personalidade de Judas. Fomos conduzido, assim, a consultar “Os Quatro Evangelhos”, de J. B. Roustaing, encontrando, no segundo volume, este valioso pronunciamento:

            “Entre os doze estava Judas, que traiu a Jesus. Era um Espírito elevado em inteligência, mas, pedindo permissão para auxiliar a Jesus, se encarregara de uma missão acima de suas forças, tomara um peso superior ao que lhe era possível suportar, e faliu”.

            E no terceiro volume há esta preciosa elucidação:

            “Judas, que era um Espírito desejoso de adiantar-se, mas orgulhoso, e por demais confiante nas suas forças, pedira, antes de encarnar, que lhe fosse concedido participar da obra do Cristo, esperando tirar dessa participação abundantes e preciosos frutos. Em vão seus Guias lhe fizeram ver os escolhos contra os quais iria chocar-se. Em vão lhe disseram ser ainda muito fraco para suportar tão grande peso, e lhe mostraram que, obumbradas suas resoluções e esperanças na carne, os sentimentos de inveja e de cobiça despertariam e o arrastariam inevitavelmente a uma queda, que tanto mais perigosa seria quanto mais obstinado ele perseverasse no seu propósito”.

            O tema é apaixonante e pode ser apreciado por variados ângulos, levantando-se hipóteses que permitam o nosso entendimento acerca do triste episódio.

*

            Primeira hipótese:

            Ter-se-ia Judas realmente conduzido de maneira venal? Ter-se-ia movimentado, no lamentável acontecimento, impulsionado apenas pelos imperativos do dinheiro? Teria beijado o Mestre em troca de vantagens financeiras?

            Não nos parece tenha sido essa a sua meta, porque era ele, na verdade, pessoa digna e proba (embora disso discordasse o apóstolo João), a ponto de ter sido o escolhido pelo Mestre para exercer as funções de tesoureiro do colégio apostólico. Cabia-lhe angariar fundos, fazer coletas e providenciar donativos, de modo a que o agrupamento dispusesse do numerário suficiente para atender a aflitos e necessitados que buscavam, além dos benefícios espirituais, alimentos e agasalhos.

            Tudo indicava que Jesus devesse ter escolhido Mateus para essa função, face à sua maior experiência no trato do dinheiro, como antigo cobrador de impostos. Surpreendentemente, porém, Judas foi o indicado para esse mister, para o que deve ter contribuído a retidão do seu caráter.

            Admitamos, entretanto - só para raciocinar -, que Judas se tivesse deixado envolver pelo polvo da corrupção. Teria ele, em consequência, sido comprado pelo valor, verdadeiramente ridículo, de trinta moedas de prata? Não teria sido mais lógico que fugisse com a bolsa das esmolas? Por que, então,satisfeito nos seus intentos, apelou para o suicídio?

            Segunda hipótese:

            Assegura-se que Judas, praticando a traição, estaria servindo de instrumento para que se confirmassem as escrituras. Ora, a aceitar-se tal versão, Judas teria sido escolhido por Satanás (?!?), especificamente, para a prática do grave delito. A Doutrina que nos consola e felicita, consagrando o livre arbítrio recusa a fatalidade. Como, pois, aceitar a. interferência de Satanás? A ser isso verdade, Judas não seria uma figura odiada por muitos, como acontece, merecendo ser trata do, ao inverso, como verdadeiro mártir do Cristianismo, fazendo jus ao nosso respeito e à nossa admiração.

            A admitir-se que Judas tivesse sido utilizado por Satanás, para confirmação das escrituras, estaríamos lançando por terra o próprio edifício doutrinário.

*

            Terceira hipótese:

            Judas era judeu e, como tal, mui justamente sonhava com as alegrias do seu povo. Admite-se tenha sido um autêntico patriota. Movido, portanto, por motivos libertadores, se teria ligado ao Nazareno na convicção de que Ele, sendo o Messias prometido, chegara exatamente para oferecer carta de alforria à sua raça oprimida.

            Com a continuação do convívio com Jesus, porém, fora se convencendo de que o Mestre não viera para solucionar o problema de Israel, mas, na verdade, para oferecer um programa de salvação para todos os povos, entrelaçando pretos e brancos, ricos e pobres, felizes e desgraçados. Não viera para aquinhoar este ou aquele povo ou raça, mas para entrar em ligação com todos, objetivando conduzi-los, através dos caminhos da compreensão e do amor, aos estágios mais altos da felicidade.

            Caberia a Judas, se quisesse, dar as costas ao Mestre, desligando-se do agrupamento apostólico. Por que traí-lo? Por que as trinta moedas? Por que o suicídio?

*

            Quarta hipótese:

            Outra razão a ser considerada é a que se relaciona com a perda da confiança em Jesus, face às suas frequentes afirmações de humildade.

            A declaração de que seria subjugado pelas forças dominantes e condenado à morte, poderia ter enchido Judas de apreensões, temeroso das fraquezas do Mestre e talvez preocupado quanto aos riscos que também viesse a correr.

            Admitamos - só para argumentar - que Judas tivesse pensado na conveniência de se afastar de Jesus, colocando-se, desse modo, em posição de maior segurança pessoal. Caso acontecesse a perda da fé, cabia-lhe transferir-se para as hostes adversárias, reunindo-se às altas figuras de Roma e da Palestina.

            Trair Jesus é hipótese absurda, notadamente quando esse ato teve como epílogo os gestos de arrependimento e de vergonha, refletidos no suicídio.

*

            Quinta hipótese:

            Recorda-se que Jesus, certa vez, em Betânia, na casa de Maria, irmã de Lázaro,
teve seus pés banhados por unguento de alto valor, e que Judas, também presente, recriminou o fato, com veemência - como bom tesoureiro -,' sugerindo se vendesse o perfume de modo a que, com o dinheiro arrecadado, melhor pudessem ser atendidos os pobres.

            Jesus, que sabia estar sendo tramada sua “morte” e, ainda, que seu corpo, de acordo com a tradição judaica, deveria ser aromatizado para descer ao sepulcro, replicou a Judas:

            - “Maria guardou esse perfume para a minha sepultura”.

            Traumatizado com a censura pública, Judas teria jurado vingança, planejando a
entrega do Mestre aos seus algozes. A tese é fraca, mas, ainda que a aceitássemos, como justificar o recebimento das moedas de prata e o gesto extremo do suicídio?

                                                                       *

            Verificamos, desse modo - sempre admitindo hipóteses -, que as da venalidade, da ligação com Satanás, do patriotismo, da perda da fé e da mágoa não se ajustam à realidade dos fatos.

            Uma outra, entretanto, pode ser considerada, evidentemente mais sensata, e que, no nosso humilde entender, melhor esclareceria o episódio. Prende-se à possível precipitação de Judas, dentro do apressado julgamento da conduta de Jesus.

            Como bem retratou Roustaing, Judas era “um Espírito elevado em inteligência”, que confiava demais nas suas forças” e, ainda, que esperava obter “abundantes e preciosos frutos” na participação da obra de Jesus. Pensava que o Mestre era muito doce, que suas palavras eram realmente formosas, que seus conceitos eram por demais comoventes, mas que sua obra vinha se processando de maneira muito lenta, quando eram exigidas medidas e providências enérgicas e capazes de assegurar rápida vitória.

            Judas, que “se encarregara de uma missão acima de suas forças, que tomara um peso superior ao que lhe era possível suportar”, como está em “Os Quatro Evangelhos”, ficara verdadeiramente estarrecido ao ouvir, dos lábios de Jesus, a anunciação de que “menor seria o maior” e de que o “que se humilhasse seria exaltado”.

            Tendo testemunhado muitos dos chamados “milagres”, e sabendo ser Jesus um enviado de Deus, passara a se convencer de que o Mestre possuía condições para fulminar qualquer de seus adversários, desde que recorresse à sua imensa força. Tomando esse ponto de partida e escudado no seu enorme orgulho, foi permitindo que em seu cérebro se alojasse a ideia de que Jesus, pelo simples exercício da vontade, destruiria as barreiras levantadas pelo sacerdócio judeu e pelos delegados de Herodes.

            Judas amava profundamente a Jesus e aceitava, em sua inteireza, a comovente mensagem de salvação que Ele nos veio trazer, mas, a par disso, sempre afoito, considerava que o Mestre vinha prejudicando a marcha, dos acontecimentos e retardando a vitória final ao insistir nas teclas da humildade e do perdão ilimitado.

            Não tinha dúvidas quanto à pureza dos sentimentos de Jesus, os quais sobrepairavam às maldades humanas, mas também sabia que essa conduta não era a mais indicada, uma vez que as circunstâncias estavam exigindo pulso forte, reclamando ação vigorosa, de modo a facilitar a disseminação dos ensinos pregados. Eram os sentimentos de “inveja e cobiça” que “o arrastariam inevitavelmente a uma queda”.

            Compreendia que o movimento cristão era muito lindo, mas que jamais chegaria a triunfar com a simples participação de pescadores humildes e de pessoas de poucas letras ou de reduzidas condições financeiras.

            Sua cabeça estalava e ia admitindo a possibilidade de uma junção estratégica com as forças dominantes, que detinham o prestígio social e o poder econômico, visando ao inimigo comum, representado pelos obstáculos do caminho.

            É bem provável que Judas tenha conversado com Jesus acerca das ideias que povoavam o seu cérebro, na busca aflitiva de uma fórmula capaz de harmonizar os interesses da comunidade cristã com os do grupo oposto, mediante aliança tática que se completaria com o consequente expurgo dos elementos que revelassem, mais tarde, oposição aos princípios esposados por Jesus. Sempre recorrendo à evasiva, certamente o Mestre ia deixando sem resposta as inaceitáveis sugestões de Judas, o que o levava a maior inquietação e desespero.

            Judas passou a armar, então, o tenebroso plano: sugeriria aos adversários a prisão de Jesus e Ele, então, dispondo de poderes divinos, liquidaria formal e categóricamente com seus algozes.

            O fruto, no entender de Judas, estava pronto para ser colhido, não se justificando as protelações.

*

            Judas acabou por tomar a terrível resolução, avistando-se com os altos dignitários do Sinédrio, a pretexto de lhes pedir um auxílio para a bolsa das esmolas, ocasião em que obteve a nefanda ajuda das trinta moedas. Ao curso dessa entrevista, com muita astúcia, ter-se-ia queixado de Jesus, insinuando a possibilidade de sua prisão, para tranquilidade de todos. Os sacerdotes e os escribas vibraram de alegria, acertando-se as minúcias do acontecimento que finalizaria com o insulto do Calvário.

            O Mestre conhecia tudo que se passava e não estava alheio aos pensamentos de Judas, permitindo, contudo, que eles se desenvolvessem, em evidente sinal de respeito ao livre arbítrio do discípulo irrequieto. Apesar disso, Ele amava a Judas, tanto que, naquele dia trevoso, quando os soldados foram detê-lo, Jesus o saudou com estas palavras repassadas de carinho:

            - “A que vieste, amigo?”

            Naquele momento difícil, Jesus não recorreu a palavras de acusação ou de queixa. Tratou Judas de “amigo”, porque reconhecia o amor que o discípulo lhe dedicava e o erro que estava cometendo. Sabia que Judas caminhava para um despenhadeiro, mas não lhe cabia impedir a experiência que havia livremente escolhido.

*-

            Quando os soldados romanos detiveram o Mestre, Judas, a distância, antegozando a vitória, teria pensado:

            “- Chegou a hora. Ele reagirá com sua força divina, fulminando os opressores.”

            Mas Jesus, ao contrário das previsões, deixou-se prender, pacificamente, como se fosse criatura comum. Traumatizado com o espetáculo, Judas pôs-se em pranto e, como que aturdido, olhava para aquelas cenas e não as assimilava, porque jamais concebera a derrota de Jesus perante os homens. Experimentava a dura e amarga realidade: Jesus fora preso e seria condenado à morte, cabendo-lhe toda culpa pelo acontecido. Era o único responsável.

            Com a alma estraçalhada, teria retornado ao Sinédrio, desesperado, para devolver as trinta moedas de prata que haviam sido o pretexto da entrevista, e, após, alucinado, entregou-se ao suicídio.

*
            O Espírito Humberto de Campos, em “Crônicas de Além-Túmulo” , oferecendo valioso depoimento de Judas, recorda a luta então existente: o Sinédrio desejando o reino do Céu e, Roma, o reino da Terra, com Jesus entre essas duas forças antagônicas, na sua pureza imaculada. Judas confessa ter planejado a revolta surda, mas acrescenta que tudo se desenrolara de maneira imprevista e com desfecho que não estava nas suas cogitações.

*

            Dois mil anos depois, continuam os homens recorrendo ao insulto, chamando-se de “Judas” ... Recordam a traição do apóstolo, examinando-a superficialmente, através da “letra que mata”, sem se mostrarem dispostos a procurar as causas determinantes da traição, que foram marcadas, é certo, com acentuado orgulho, mas, de igual sorte, com o sublimado afeto que o discípulo afoito dedicava ao meigo e doce Pastor de nossas almas.


A Obra de Kardec e Kardec diante da Obra


A Obra de Kardec
e Kardec diante da Obra

por Hermínio C Miranda
Reformador (FEB) Março 1972

            Sempre haverá muito que aprender na obra de Allan Kardec, não apenas aqueles que se iniciam no estudo da Doutrina Espírita, como também os que dela já têm conhecimento mais profundo. Isso porque os livros que divulgam ideias construtivas - e especialmente idéias novas - nunca se esgotam como fonte de onde fluem continuamente motivações para novos arranjos e, portanto, de progresso espiritual, sem abandonar a contextura filosófica sobre as quais se apoiam. Para usar linguagem e terminologia essencialmente espíritas, diríamos que o perispírito da doutrina permanece em toda a sutileza e segurança de sua estrutura, ao passo que o espírito da Doutrina segue à frente, em busca de uma expansão filosófica, sujeito que está ao constante embate com a tremenda massa de informação que hoje nos alcança, vinda de todos os setores da especulação humana. De fato, a Doutrina Espírita está exposta às mais rudes confrontações, por todos os seus três flancos ao mesmo tempo: o filosófico, o científico e o religioso.

            A cada novo pronunciamento significativo da filosofia, da ciência ou da especulação religiosa, a doutrina se entrega a um processo introspectivo de autoanálise para verificar como se saiu da escaramuça. Isso tem feito repetidamente e num ritmo cada vez mais vivo, durante mais de um século. E com enorme satisfação, podemos verificar que nossas posições se revelaram inexpugnáveis.

            Até mesmo ideias e conceitos em que a Doutrina se antecipou aos tempos começam a receber a estampa confirmatória das conquistas intelectuais, como, para citar apenas dois exemplos, a reencarnação e a pluralidade dos mundos habitados. Poderíamos citar ainda a existência do perispíríto, que vai cada dia mais tornando-se uma necessidade científica, para explicar fenômenos que a biologia clássica não consegue entender. Quando abrimos hoje revistas, jornais e livros sintonizados com as mais avançadas pesquisas e damos com o nome de importantes cientistas examinando a sério a doutrina palingenésica ou a existência de vida inteligente fora da Terra, somos tomados por um legitimo sentimento de segurança e de crescente respeito pelos postulados da doutrina que os espíritos vieram trazer-nos. Tamanha era a certeza de Kardec sobre tais aspectos que escreveu que o Espiritismo se modificaria nos pontos em que entrasse em conflito com os fatos científicos devidamente comprovados.

            Essa observação do Codificador, que poderia parecer a muitos a expressão de um receio ou até mesmo uma gazua para eventual saída honrosa, foi, ao contrário, uma declaração corajosa de quem pesou bem a importância do que estava dizendo e projetou sobre o futuro a sua própria responsabilidade. O tempo deu-lhe a resposta que ele antecipou: não, não há o que reformular, mas se algum dia houver, será em aspectos secundários da doutrina e jamais nas suas concepções estruturais básicas, como a existência de Deus, a sobrevivência do Espírito, a reencarnação e a comunicabilidade entre "vivos" e "mortos".

            O que acontece é que a doutrina codificada não responde a todas as nossas indagações e nem as de Kardec foram todas resolvidas nos seus mínimos pormenores e implicações. "O Livro dos Espíritos" é um repositório de princípios fundamentais de onde emergem inúmeras "tomadas" para outras tantas especulações, conquistas e realizações. Nele estão os germes de todas as grandes ideias que a humanidade sonhou pelos tempos afora, mas os Espíritos não realizam por nós o nosso trabalho. Em nenhum outro cometimento humano vê-se tão claramente os sinais de uma inteligente, consciente e preestabelecida coordenação de esforços entre as duas faces da vida - a encarnada e a desencarnada. Tudo parece - e assim o foi - meticulosamente planejado e escrupulosamente executado. A época era aquela mesma, como também o meio ambiente e os métodos empregados. Para a carne vieram os espíritos incumbidos das tarefas iniciais e das que se seguiriam, tudo no tempo e no lugar certos. Igualmente devem ter sido levadas em conta a fragilidade e as imperfeições meramente humanas, pois que também alternativas teriam sido planejadas com extremo cuidado. Há soluções opcionais para eventuais falhas, porque o trabalho era importante demais para ficar ao sabor das imperfeições humanas e apoiado apenas em dois ou três seres, por maiores que fossem. Ao próprio Kardec, o Espírito da Verdade informa que é livre de aceitar ou não o trabalho que lhe oferecem. O eminente professor é esclarecido, com toda a honestidade e sem rodeios, que a tarefa é gigantesca e, como ser humano, seria arrastado na lama da iniquidade, da calúnia, da mentira, da infâmia. Que todos os processos são bons para aqueles que se opõem à libertação do homem. Que ele, Kardec, poderia também falhar. Seu engajamento seria, pois, de sua livre escolha e que se recusasse a tarefa, outros havia em condições de levá-la a bom termo.

            O momento é dramático. É também a hora da verdade suprema, pois o plano de trabalho não poderia ficar comprometido por atitudes dúbias e meias-palavras. Aquilo que poderia parecer rudeza de tratamento é apenas ditado pela seriedade do trabalho que se se tinha a realizar no plano humano. Kardec aceitou a tarefa e arrostou com a bravura que lhe conhecemos a dureza das aflições que sobre ele desabaram, como estava previsto. Tudo lhe aconteceu, como anunciado; os amigos espirituais seriam incapazes de glamorizar a sua colaboração e minimizar as dificuldades apenas para induzi-lo a aceitar a incumbência.

            Por outro lado, se ele era, entre os homens, o chefe do movimento, pois alguém tinha que o liderar, compreendeu logo que não era o dono da doutrina e jamais desejou sê-lo. Quando lhe comunicam que foi escolhido para esse trabalho gigantesco, sente com toda a nitidez e humildade a grandiosidade da tarefa que lhe oferecem e declara que de simples adepto e estudioso a missionário e chefe vai uma distância considerável, diante da qual ele medita, não propriamente temeroso, mas preocupado, dado que era homem de profundo senso de responsabilidade. Do momento em que toma a incumbência, no entanto, segue em frente com uma disposição e uma coragem inquebrantáveis.

            Esse aspecto da sua atuação jamais deve ser esquecido - a consciência que tem da sua posição de coordenador do movimento e não de seu criador. Não deseja que a doutrina nascente seja ligada ao seu nome. Apaga-se deliberadamente e tenazmente para que a obra surja como planejada, isto é, unia doutrina formulada pelos Espíritos e transmitida aos homens pelos Espíritos, contida numa obra que fez questão de intitular "O Livro dos Espíritos". Por outro lado, não é intenção dos mensageiros espirituais - ao que parece - ditar um trabalho pronto e acabado, como um "flash" divino, de cima para baixo. Deixam a Kardec a iniciativa de elaborar as perguntas e conceber não a essência do trabalho, mas o plano geral da sua apresentação aos homens. A obra não deve ser um monólogo em que seres superiores pontificam eruditamente sobre os grandes problemas do ser e da vida; é um diálogo no qual o homem encarnado busca aprender com irmãos mais experimentados novas dimensões da verdade. É preciso, pois, que as questões e as dúvidas sejam levantadas do ponto de vista humano, para que o mundo espiritual as esclareça na linguagem simples da palestra, dentro do que hoje se chamaria o contexto da psicologia específica do ser encarnado. Por isso, Kardec não se julga o criador da Doutrina, mas é infinitamente mais do que um mero copista ou um simples colecionador de pensamentos alheios. Deseja apagar-se individualmente para que a obra sobreleve às contingências humanas; a Doutrina não deve ficar "ligada" ao seu nome pessoal como, por exemplo, a do super-homem a Nietszche, o islamismo a Maomé, o positivismo a Augusto Comte ou a teoria da relatividade a Einstein; é, no entanto, a despeito de si mesmo, mais do que simples colaborador, para alcançar o estágio de um coautor quanto ao plano expositivo e às obras subsequentes. Os Espíritos deixam-lhe a iniciativa da forma de apresentação. A princípio, nem ele mesmo percebe que já está elaborando "O Livro dos Espíritos"; parece-lhe estar apenas procurando respostas às suas próprias interrogações. Homem culto, objetivo, esclarecido e com enormes reservas às doutrinas religiosas e filosóficas da sua época, tem em mente inúmeras indagações para as quais ainda não encontrara resposta. Ao mesmo tempo em que vai registrando as observações dos Espíritos, vai descobrindo um mundo inteiramente novo e insuspeitado e tem o bom senso de não se deixar fascinar pelas suas descobertas.

            É, pois, ao sabor de sua controlada imaginação que organiza o esquema das suas perguntas e quando dá conta de si tem anotações metódicas, lúcidas, simples de entender e, no entanto, do mais profundo e transcendental sentido humano. Sem o saber, havia coligido um trabalho que, pela sua extraordinária importância, não poderia ficar egoisticamente preso à sua gaveta; era preciso publicá-lo e isso mesmo lhe dizem os Espíritos. Assim o fez e sabemos de sua surpresa diante do sucesso inesperado da obra. Daí em diante, isto é, a partir de "O Livro dos Espíritos", seus amigos assistem-no, como sempre o fizeram, mas deixam-no prosseguir com a sua própria metodologia e nisso também ele era mestre consumado, por séculos de experiência didática. As obras subsequentes da Codificação não surgem mais do diálogo direto com os Espíritos e sim das especulações e conclusões do próprio Kardec, sem jamais abandonar, não obstante, o gigantesco painel desenhado a quatro mãos em "O Livro dos Espíritos".

            Conversando uma vez, em nosso grupo, sobre o papel de certos espíritos na história, disse-nos um amigo espiritual que é muito importante para todos nós o trabalho daqueles a quem ele chamou Espíritos ordenadores. São os que vêm incumbidos de colocar em linguagem humana, acessível, as grandes ideias. Sem eles, muito do que se descobre, se pensa e se realiza ficaria perdido no caos e na ausência de perspectiva e hierarquia. São eles - Espíritos lúcidos, objetivos e essencialmente organizadores - que disciplinam as ideias, descobrindo lhes as conexões, implicações e consequências, colocando-as ordenadamente ao alcance da mente humana, de modo facilmente acessível e assimilável, sob a forma de novas sínteses do pensamento. São eles, portanto, que resumem um passado de conquistas e preparam um futuro de realizações. Sem eles, o conhecimento seria um amontoado caótico de ideias que se contradizem, porque invariavelmente vem joio com o trigo, na colheita, e ganga com ouro, na mineração. São eles os faiscadores que tudo tomam, examinam, rejeitam, classificam e colocam no lugar certo, no tempo certo, altruisticamente, para que quem venha depois possa aproveitar-se das estratificações do conhecimento e sair para novas sínteses, cada vez mais amplas, mais nobres, mais belas, ad infinitum.

            Allan Kardec é um desses espíritos, Não diremos que seja um privilegiado porque essa classificação implica ideia de prerrogativa mais ou menos indevida e as suas virtudes são conquistas legítimas do seu espírito, amadurecidas ao longo de muitos e muitos séculos no exercício constante de uma aguda capacidade de julgamento - é, pois, um direito genuinamente adquirido pelo esforço pessoal do espírito e não uma concessão arbitrária dos poderes superiores da vida. O trabalho que realizou pela Doutrina Espírita é de inestimável relevância. Para avaliar a sua importância basta que nos coloquemos, por alguns instantes, na posição em que ele estava nos albores do movimento. Era um homem de 50 anos de idade, professor e autor de livros didáticos. Sua atenção é solicitada para os fenômenos, mas ele não é de entregar-se impulsivamente aos seus primeiros entusiasmos. Quer ver primeiro, observar, meditar e concluir, antes de um envolvimento maior. Quando recebe a incumbência e percebe o vulto da tarefa que tem diante de si, nem se intimida, nem se exalta. É preciso, porém, formular um plano de trabalho. Por onde começar? Que conceitos selecionar? Que ideias têm precedência sobre outras? Serão todas as comunicações autênticas? Será que os Espíritos sabem de tudo? Poderão dizer tudo o que sabem?

            É tudo novo, tudo está por fazer e já lhe preveniram que o mundo vai desabar sobre ele. O cuidado tem de ser redobrado, para que o edifício da doutrina não tenha uma rachadura, uma fresta, um ponto fraco, uma imperfeição; do contrário, poderá ruir, sacrificando toda a obra. Os representantes das trevas estão atentos e dispostos a tudo. Os Espíritos o ajudam e o inspiram e o incentivam, embora sejam extremamente parcimoniosos em elogios e um tanto enérgicos nas advertências. Quando notam um erro de menor importância numa exposição de Kardec, não indicam o ponto fraco; limitam-se a recomendar-lhe que releia o texto, que ele próprio encontrará o engano. Do lado humano, encarnado, da vida, é um trabalho solitário. Não tem a quem recorrer para uma sugestão, um conselho, um debate. Os amigos espirituais somente estão à sua disposição por algum tempo, restrito, sob limitadas condições, durante as horas que consegue subtrair ao seu repouso, porque as outras são destinadas a ganhar a vida, na dura atividade de modesto guarda-livros.

            Sem dúvida alguma, trata-se de um trabalho de equipe, tarefa pioneira, reformadora, construtora de um novo patamar para a escalada do ser na direção de Deus. As velhas doutrinas religiosas não satisfazem mais, a filosofia anda desgovernada pelos caminhos da negação e a ciência desgarrada de tudo, aspirando ao trono que o dogmatismo religioso deixou vago. No meio de tudo isso, o homem que pensa e busca um sentido para a vida se atormenta e se angustia, porque não vê suporte onde escorar sua esperança. A nova doutrina vem trazer-lhe o embasamento que faltava, propor uma total reformulação dos conceitos dominantes. Ciência e religião não se eliminam, como tantos pensavam; ao contrário, se completam, coexistindo com a filosofia. O homem que raciocina também pode crer e o crente pode e deve exercer, em toda a extensão, o seu poder de análise e de crítica. Isso não é apenas tolerado, senão estimulado, pois entende Kardec que a fé só merece confiança quando passada pelos filtros da razão. Se não passar, é espúria e deve ser rejeitada.

            Concluído, assim, o trabalho que lhe competia junto aos Espíritos ainda lhe resta muito a fazer, e o tempo urge. Incumbe-lhe agora inserir a nova doutrina no contexto do pensamento de seu tempo - como se diria hoje. Terminou o recital a quatro mãos e começa o trabalho do solista, porque o mestre ainda está sozinho entre os homens, embora cercado do carinho e da amizade de seus companheiros espirituais. Atira-se, pois, ao trabalho. A luz do seu gabinete arde até altas horas da noite. É preciso estudar e expor aos homens os aspectos experimentais implícitos na Doutrina dos Espíritos. Desses aspectos, o mais importante, sem dúvida, é a prática da mediunidade, instrumento de comunicação entre os dois mundos. Sem um conhecimento metodizado da faculdade mediúnica, seria impossível estabelecer as bases experimentais da doutrina. Daí, o "O Livro dos Médiuns".

            Em seguida, é preciso dotar o Espiritismo de uma estrutura ética. Não é necessário criar uma nova moral; já existe a do Cristo. O trabalho é enorme e exige tudo de seu notável poder ordenador. É que o ensinamento de Jesus, com a passagem dos séculos e ao sopro de muitas paixões humanas, ficara soterrado em profunda camada de impurezas. Kardec decidiu reduzir ao mínimo os atritos e controvérsias, buscando nos Evangelhos apenas o ensinamento moral, sem se deter, portanto, na análise dos milagres, nem dos episódios da vida pública do Cristo, ou dos aspectos que foram utilizados para a elaboração dos dogmas. Dentro dessa ideia diretora, montou com muito zelo e amor "O Evangelho segundo o Espiritismo". O problema dos dogmas - pelo menos os principais - ficaria para "O Céu e o Inferno" e sobre as questões científicas ainda voltaria a escrever em "A Gênese".

            E assim concluía mais uma etapa da sua tarefa. O começo, onde andaria? Em que tempo e em que ponto cósmico? Era - e é – um espírito reformador, ordenador, preparador de novas veredas. A continuação, seus amigos espirituais deixaram-no entrevê-la ao anunciar-lhe que se aproximava o término da existência terrena, mas não dos seus encargos: voltaria encarnado noutro corpo, lhe disseram, para dar prosseguimento ao trabalho. Ainda precisavam dele e cada vez mais. Nada eram as alegrias que experimentava ao ver germinar as sementes que ajudara a semear; aquilo eram apenas os primeiros clarões de uma nova madrugada de luz. Quando voltasse, teria a alegria imensa de ver transformadas em árvores majestosas as modestas sementeiras das suas vigílias, regadas por dores muitas. Não seria mais o vulto solitário a conversar com os Espíritos e a escrever no silêncio das horas mortas - teria companheiros espalhados por toda a Terra, entregues ao mesmo ideal supremo de trabalhar sem descanso na seara do Cristo, cada qual na sua tarefa, conforme seus recursos, possibilidades e limitações, dado que o trabalho continua entregue a equipes, onde o personalismo não pode ter vez para que as paixões humanas não o invalidem.

            "De modo que - dizia Paulo - nem o que planta é alguém, nem o que rega, senão Deus que a faz crescer. E o que planta e o que rega são iguais; se bem que cada um receberá o seu salário segundo seu próprio trabalho, já que somos colaboradores de Deus e vós, campo de Deus, edificação de Deus" (I Coríntios, 3:7 a 9).

            Trabalhadores de Deus desejamos ser e o seremos toda vez que apagarmos o nosso nome na glória suprema do anonimato, para que o nosso trabalho seja de Deus, que faz germinar a semente e crescer a árvore, e não nosso, que apenas confiamos a semente ao solo. Somos portadores da mensagem, não seus criadores, porque nem homens nem espíritos criam; apenas descobrem aquilo que o Pai criou.

            São essas as dominantes do espírito de Kardec. Sua vitória é a vitória do equilíbrio e do bom senso, é a vitória do anonimato e da humildade, notável forma de humildade que não se anula, mas que luta e vence. Como figura humana, nem sequer aparece nos livros que relatam a saga humana. Para o historiador leigo, quem foi Kardec? Seu próprio nome civil, Hyppolite-Léon Denizard Rivail, ele o apagou para publicar seus livros com o nome antigo de um obscuro sacerdote druida.

            De modo que não é somente a obra realizada por Kardec que devemos estudar, é também sua atitude perante a obra, porque tudo neste espírito é uma lição de grandeza em quem não deseja ser grande. 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Página à Mocidade

Página à Mocidade

Emmanuel
por Chico Xavier

Reformador (FEB) Julho 1958

            Meu filho, guarda o facho resplendente da fé por tesouro íntimo, honrando o suor e as lágrimas, a vigília e o sofrimento de quantos passaram no mundo, antes de ti, para que pudesses receber semelhante depósito.

            Lembra-te dos que choraram esquecidos no silêncio e dos que sangraram de dor para que ostentasses a tua flama de esperança, e dispõe--te a defendê-la, ainda mesmo com sacrifício, para que a Terra de amanhã surja melhor.

            A disciplina é a guardiã de tua riqueza interior como o ideal é a chama que te revela o caminho.

            Nada amarga tanto ao coração que perder a confiança em si próprio, como alguém que se arroja às trevas depois de haver possuído a garantia da luz.

            Segue aprendendo, amando e servindo ...

            Compadece-te dos que se recolheram à vala do pessimismo proferindo maldições contra a vida, que é doação e bênção de Deus;  socorre os que se consideram vencidos à margem da estrada, ensinando-lhes que é possível levantar para o recomeço da luta, e respeita, nos cabelos brancos que te precedem, a branda claridade que a experiência acendeu para os lidadores da frente.

            Dignifica, sobretudo, a responsabilidade em ti mesmo, reconhecendo que o dever a cumprir é a Vontade do Senhor que situa, nas criaturas e circunstâncias mais próximas de nosso espírito) o serviço mais importante que nos compete realizar.

            Não olvides que todos os valores da luz têm adversários na sombra e que só o trabalho incessante no bem alimenta em nossa alma o gênio da vigilância, invisível sentinela de nossa segurança e vitória.

            Atravessa o dia da existência, no ingente esforço de fazer o melhor, e, construindo o bem de todos, que será sempre o nosso maior bem, sentirás na cintilação das estrelas, quando vier a noite, o enternecido beijo do Céu, preparando-te o despertar.



Exame de Fé

Exame de Fé

Irmão X 
por Chico Xavier

Reformador (FEB) Julho 1958

            Certo homem que passou a destacar-se dos outros, evidenciando largo entendimento de fraternidade e de fé, a par de grande compreensão, atribuía a Deus a propriedade de todos os bens da vida.

            Acabara de constituir o lar, iniciando a formação da sua família, e associava-se, com toda a alma, a empreendimentos religiosos, tanto quanto lhe era possível.

            Em semelhantes iniciativas, começou a ensinar a fidelidade ao Senhor Supremo, compondo discursos admiráveis em que comentava a excelência da confiança no Céu.            -

            - “Deus - dizia ele, convicto -, Deus é o Criador de Todo o Universo e, por isso mesmo, é o Dono de Tudo e de tudo somos simples usufrutuários em Seu Nome. Almas, constelações e mundos Lhe pertencem por toda a parte. Recebemos, por empréstimo santo de Sua Infinita Bondade, o berço em que nascemos, o lar que nos acolhe as afeições do mundo, o conforto e a alegria ..”

            A palavra dele inflamava imenso fervor nos ouvintes, que passavam a refletir com segurança sobre a grandeza do Amor Divino. E tão grande se fez a sua influência que o Senhor, sensibilizado com tamanhas demonstrações de fé, enviou à Terra alguns mensageiros para lhe examinarem a verdadeira posição.

            Os referidos instrutores começaram permitindo que a maledicência e a calúnia lhe amargassem a vida.

            O herói da lealdade padeceu golpes terríveis que lhe enodoaram a dignidade, mas atribuiu todos os percalços do caminho a manifestações indiretas da Celeste Bondade e acabou exclamando, sinceramente:

            - Meu nome pertence a Deus. Que Deus seja louvado!

            Os emissários que o seguiam, observando-lhe a firmeza, deixaram que a perseguição gratuita lhe envolvesse o roteiro; no entanto, o ódio injustificável como que lhe acendrou a confiança . Entre nuvens de sofrimento, o devoto concluiu que o ideal da perfeição é fruto da Magnanimidade Divina e afirmou, convencido:

            - O bem é obra do Senhor! Louvado seja o Senhor!

            Os aludidos educadores concordaram em que fosse ele experimentado pela incompreensão e o pupilo da fé se viu envolvido de aflição e ridículo, sentindo-se dilacerado e sozinho no seio do próprio lar. Contudo, reconhecendo que todo apreço e toda estima devem ser erigidos essencialmente ao Criador, asseverou, conformado:

            - Toda a glória deve ser dada ao Pai que está nos Céus!.. Louvado seja o Pai que está nos Céus!

            Os examinadores em lide decidiram que a enfermidade lhe visitasse o corpo, e o amigo da prece foi relegado ao leito em extrema penúria física; todavia, em meio da própria angústia, reparou que seu corpo era um depósito do Todo-Compassivo e disse, imperturbável:

            - Meu corpo é um empréstimo do Todo-Poderoso. Que o Todo-Poderoso seja louvado! ...

            Continuaram os enviados celestes no campo da experiência e o. homem de fé resistiu valoroso, superando amargura e desolação, tristeza e necessidade...

            Porque um dia recolhesse ele a presença da morte na pessoa de um dos filhos, acatando, submisso, a Vontade Celestial, os mensageiros da Esfera Superior endereçaram ao Pai Sublime, através de canais competentes, conciso relatório sobre a lealdade inflexível do crente valoroso que habitava na Terra ...

            Logo após, receberam ordem expressa da Casa do Senhor para que lhe entregassem grande quantidade de ouro, como suprema prova de obediência.

            O homem recebeu a dádiva generosa, sob a aparência de um negócio feliz, e entregou-se ao conforto da nova situação.

            Parecia anestesiado, quando orava, e ébrio de alegria em todos os movimentos.

            Decorrido algum tempo, os instrutores espirituais trouxeram-lhe um companheiro em dificuldade, que lhe implorou, humilhado e triste:

            - Meu amigo, tenho quatro filhos doentes e venho pedir-lhe, em nome de Deus, por empréstimo, algum dinheiro para solucionar meus problemas. Espero resgatar minha dívida em dois ou três meses...

            Ante o silêncio do interpelado, reiterou quase em pranto:         .

            - Socorra-me por amor ao nosso Pai de Bondade! ...

            Mas, com indisfarçável espanto, os professores divinos ouviram-no dizer, impassível e entediado:


            - Não posso, não posso!... Meu dinheiro é um patrimônio que custei muito a ganhar'.

O Decálogo

O Decálogo

Rodolfo Calligaris

Reformador (FEB)  Janeiro 1973

            O Decálogo ou os 10 mandamentos da lei de Deus acha-se registrado duas vezes no Velho Testamento: a primeira, em Êxodo, 20:2 a 17, e a segunda, com pequenas diferenças de redação, em Deuteronômio, 5:6 a 21.

            Quem o teria transmitido, para a edificação dos terrícolas?

            Durante muito tempo, enquanto se concebia Deus como uma entidade antropomórfica (com formas humanas), acreditava-se que fora ditado diretamente pelo Criador a Moisés, no monte Sinai

            A ideia que se faz atualmente da Divindade torna inadmissível tal suposição, prevalecendo a crença, muito mais verossímil, de que essa estupenda revelação nos foi trazida não pelo próprio Deus, que jamais foi visto por qualquer mortal (como a Bíblia nos instrui), mas sim por um Seu mensageiro (anjo, Espírito sublimado, ou qualquer outro nome que se lhe queira dar). Isto, no entanto, carece de importância.

            Anjo e Deus são termos usados com muita frequência no Velho Testamento com a mesma significação. Assim, embora não seja exato que "o Senhor falava a Moisés cara a cara, como um homem costuma falar a seu amigo" (Êxodo, 33:11), não padece a menor dúvida de que esse grande profeta (médium, na terminologia espírita) mantinha, mesmo, reiterados colóquios com o Mundo Espiritual, especialmente com os guias e protetores do povo judeu, do qual se fizera líder inconteste.

            Aliás, já nos primórdios do Cristianismo, os discípulos de Jesus não criam na  comunicação direta de Deus com Moisés, mas sim através das potestades espirituais.

            Haja vista o discurso de Estêvão perante o Sinédrio, em que, defendendo-se das acusações que lhe faziam, de haver blasfemado contra Moisés, e reafirmando sua veneração por ele, assim se exprime (Atos, cap. 7):

            "A este Moisés, ao qual desprezaram, dizendo: Quem te fez a ti príncipe, e  juiz?A este enviou Deus por príncipe e redentor, por mão do anjo que lhe apareceu na sarça... " (v. 35). "Este é o que esteve na assembleia do povo, no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai, do qual recebeu palavras de vida, para no-las transmitir" (v. 38).

            É certo, ainda, que, ao ser ditado a Moisés, o Decálogo constava de preceitos breves e incisivos, que puderam ser gravados em duas tábuas de pedra, facilmente transportáveis, sendo-lhe feitos, posteriormente, vários aditamentos, contendo promessas de recompensas aos que o pusessem em prática, assim como ameaças a quem deixasse de dar-lhe cumprimento.

            Esses dez mandamentos, baseados na lei natural, constituem um código de conduta e referem-se aos deveres da criatura para com o Criador, para consigo mesma e para com o próximo.

            São, pois, eternos, irrevogáveis, e alcançam a Humanidade inteira, sem acepção de raça, crença, etc.