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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

'Arthur Conan Doyle'


Arthur Conan Doyle

por Indalício Mendes
Reformador (FEB) Novembro 1978

            Fascinante, por muitos aspectos, a personalidade de Sir Arthur Conan Doyle, o famoso romancista, criador de Sherlock Holmes, há de sempre justificar comentários e considerações elevadas. Ele foi, sem exagero, um grande homem - pelo caráter, pelo talento, pela imaginação e pelo físico, enfim, um grande homem integral.

            Nascido aos 22 de maio de 1859, em Picardy Place, Edimburgo, capital da Escócia, de descendência nobre, Arthur Conan Doyle desencarnou precisamente a 7 de julho de 1930. Embora os foros de nobreza, sua família não era abastada, tanto que ele teve de enfrentar enormes dificuldades para estudar e formar-se em Medicina. Seu pai chamou-se Charles AItamont Doyle, e sua mãe, Mary Foley. Ambos católicos severos, sendo que alguns membros da família se extremavam num fanatismo tremendo. Mais adiante teremos ocasião de demonstrar a atitude firme e digna de Conan Doyle em face do pétreo sectarismo de seus parentes. Foi-lhe dado o nome de Arthur em homenagem a um tio materno - Arthur Conan Doyle, crítico de arte do "Art Journal", célebre pela segurança, profundidade e rijeza de seus comentários.

*

            Sua mãe foi uma mulher verdadeiramente excepcional, quer pela pureza do caráter, como pela franqueza das atitudes e também pelo respeito que devotava ao ser humano. Conan Doyle foi "o ídolo do seu coração". Ambos se amavam enternecidamente e se compreendiam melhor, talvez em virtude da afinidade moral entre eles existente.

            Não pretendemos descer a pormenores a respeito da educação recebida por Conan Doyle.

            Será suficiente esclarecer que Mary Doyle deu de si o melhor que pode para plasmar a vigorosa personalidade de seu ilustre filho. De como ele correspondeu aos esforços maternos, di-lo a História. Essa mulher admirável transmitiu-lhe estas máximas: "Sem temor diante dos fortes e humilde diante dos fracos." Detestava as atitudes de esnobismo, as superfluidades comuns aos descendentes de nobres, mas cultivava com religioso respeito as tradições da família. Ela ensinou Conan Doyle, desde menino, a demonstrar sempre "cavalheirismo para com todas as mulheres, de alta ou de baixa condição". Podemos dizer que Arthur foi o retrato moral de sua extraordinária genitora. Dela herdou todas as virtudes, assim como a energia, o amor ao trabalho, o destemor nos momentos difíceis ou perigosos, a coragem de dizer o que sentia, fosse qual fosse a situação; a facilidade em se colocar na defesa dos fracos, bem como o respeito indeclinável a seus pontos de vista, enquanto seus argumentos não fossem abalados. 

*

            Nascido, como dissemos, em ambiente rigorosamente católico, Conan Doyle foi aluno de padres jesuítas, em Stonyhurst, Lancashire, para onde foi depois de se haver preparado no colégio de Hodder House. Ali, teve ocasião de pôr à prova a sua personalidade em formação, sustentando opiniões divergentes das dos padres, mesmo quando isto lhe custasse punições severas. E não se abatia depois dos castigos, olhando de frente aqueles que o puniam por não lhe obterem a passiva anuência. Intimamente, porém, seus professores o admiravam, respeitando-lhe o talento. O famoso escritor inglês Thomas Babington Macaulay merecera a sua predileção. Conan Doyle se deleitava com suas obras e um dia compreendeu que Macaulay, embora de forma cavalheiresca, não acreditava muito no Papa. Sua condição de católico e admirador de Macaulay lhe impôs o dever de descobrir de que lado estava a razão, até que um dia ouviu um padre irlandês afirmar em público que todo aquele que não era católico iria para o inferno. Aí, nesse pormenor aparentemente insignificante, estava o ponto inicial da sua futura atitude de abandonar a religião tradicional da família. Conan Doyle ainda não havia pensado nessa situação delicada, que, segundo o padre, conferia um privilégio especial aos católicos. Estava certo, porém, de que a afirmativa do sacerdote continha um erro essencial. Lembrou-se, então, de que sua mãe, a um tempo severa e romântica, considerava banais as asseverações fradescas desse quilate, dizendo-lhe:

            - Usa sempre roupas internas de flanela, querido filho, e jamais acredites no castigo eterno.

            Semelhante frase, dita por uma senhora austera, católica e altamente equilibrada, denotava que sua inteligência esclarecida não se amoldara a conceitos sectários e irracionais, porque ela também não renunciava às suas opiniões, uma vez convencida de que estava certa.

            Mais tarde, Conan Doyle entrou em contato com velho amigo da família, o Dr. Bryan Charles Waller, sábio, bondoso, agnóstico em matéria de religião e igualmente positivo em seus argumentos.

*

            O Dr. Bryan Charles Waller exerceu, durante muitos anos, forte influência na vida intelectual de Conan Doyle, despertando-lhe o espírito para problemas profundos, que, afinal, lhe permitiram desvencilhar-se de vacilações oriundas do colégio de jesuítas, onde estudara. Entretanto, Walter Scott e Macaulay foram os autores que mais participação tiveram nos gostos e preferências de Conan Doyle, chegando mesmo a determinar sua inclinação literária. Mais tarde, Conan Doyle viria a declarar que Edgar AIlan Poe, tanto quanto aqueles, acentuara a tendência que tomaria dentro da literatura. O primeiro conto de Poe - "O Escaravelho Dourado" - foi lido por ele com grande sofreguidão.

Defesa da vida interior

            Em 1878, Arthur Conan Doyle recebeu uma carta do Dr. Waller, na qual havia este trecho: "Esta vida interior viril é o que a Teologia quer destruir, fazendo-nos crer que somos vis, pecaminosos e degradados, o que é uma falsidade pestilenta e corta cerce o melhor que há dentro de nós, pois, se se tira o respeito que o homem deve a si mesmo, faz-se muito para transformá-lo num magarefe e num malvado." E acrescentou, incisivamente: "Fazer é uma palavra melhor do que crer, e ação é uma ordem mais segura que fé." Pode-se perceber, portanto, o vigoroso instinto anticlerical do Dr. Waller, que, assim, ia demolindo os já frágeis pontos de contato de Conan Doyle com o Catolicismo.

            Nesse ano, Arthur, aproveitando as férias escolares, empregou-se como aprendiz de médico num dispensário dos mais pobres bairros de Sheffield. A princípio, nada ganhava, trabalhando por casa e comida. Isto já representava alguma coisa, porque aliviava os encargos da sua valorosa mãe. Essa experiência durou apenas três semanas, porque ele não possuía suficiente prática ou não podia, então, atender às exigências do Dr. Richardson. A verdade era também que os clientes, vendo Conan Doyle tão jovem, não confiavam muito nas suas aptidões para a Medicina. Mais tarde ele comentaria o fato, ao escrever para casa: "Esta gente de Sheffield preferiria ser envenenada por um homem com barba do que ser salva por um homem imberbe."

Trabalho vão

            Sem nenhuma ocupação, Conan Doyle tinha ainda de esperar meses para iniciar o curso de outono da Universidade de Edimburgo. Que fazer durante esse tempo? Resolveu seguir para Londres, para tentar trabalho, e por meio da imprensa médica ofereceu seus serviços. Hospedou-se em casa de seu tio Henry, em Clifton Gardens, onde foi recebido com satisfação. Enquanto não arranjava nada, estudava pela manhã, e à tarde passeava pelas ruas. Mas as coisas não podiam continuar assim. Sem esperança de se empregar em terra, Conan Doyle decidiu entrar para a Marinha, como ajudante de cirurgião. Nesse ínterim, recebeu uma carta do Dr. Elliot, do povoado de Ruyton, em Shropshire, informando que aceitava seus serviços. Esse Dr. Elliot, porém, não tinha um caráter muito firme e se enraivecia com facilidade. Um dia, zangou-se porque Conan Doyle ponderou que a pena de morte devia ser suprimida. "Não tolero que semelhante opinião seja dita em minha casa, entende, senhor?" - esbravejou ele, dirigindo-se a Conan Doyle. Sem se alterar, este lhe respondeu na mesma hora: "Senhor, costumo expender minhas opiniões onde e quando queira."  

            Não tardou, assim, que Arthur voltasse ao colégio, em fins de outubro. Trabalhara de graça para o Dr. Elliot, mesmo porque não havia sido combinada nenhuma remuneração pelos meses de trabalho que ali tivera. Mas, intimamente, confiava em que o Dr. Elliot lhe desse alguma coisa. Não veio nada. Então, Conan Doyle perguntou-lhe se lhe poderia pagar a viagem de volta e teve esta resposta, que define o perfil do Dr. Elliot: - "Meu amigo, a lei é assim. Se um assistente tem ordenado combinado, é pessoa reconhecida e com direito a reclamar que suas despesas sejam pagas. Caso contrário, transforma-se num cidadão que viaja para instruir-se. Por conseguinte, nada tem a receber..."

            Convencido de que não dava resultado ser ajudante de médico, pelos calotes que sofria, Conan Doyle voltou a Edimburgo, onde, por força das circunstâncias, foi ser assistente de um Dr. Reginald Tatcliffe Hoare, de Clifton House, em Birmingham, que, como médico dos pobres, ganhava muito dinheiro.

            Nessa época escreveu mais três contos: "O mistério do Vale de Sasassa", "A granja encantada de Goresthorpe" e "O conto do Americano".

            Estava pensando em ser médico de um navio sul-americano, quando seu amigo Claude Augustus Currie, estando impossibilitado de viajar, lhe ofereceu seu camarote e sua função. Iria como cirurgião nominal, ganhando ao todo cinquenta libras, e estaria durante sete meses percorrendo o Oceano Ártico.

Na baleeira "Hope"

            Em fevereiro de 1880, lá se foi ele na baleeira "Hope", deixando o porto de Peterhead no fim desse mês. Improvisaram uma luta de boxe e ele derrotou o mordomo do navio, logo na primeira noite, ganhando prestígio a bordo. O encontro de manadas de focas foi também motivo de alegria para Conan Doyle, que, assim, se refazia das muitas decepções que havia tido em terra. Em setembro de 1881, deixou o navio e regressou a Edimburgo, com a sua estatura completamente desenvolvida.

Diplomado

            Nesse mesmo ano de 1881, Arthur Conan Doyle recebeu diploma de médico e durante algum tempo voltou a ser assistente do Dr. Hoare. Vários fatos ocorreram, ameaçando a sua tranquilidade profissional, até que conseguiu realizar seu desejo de fazer nova viagem marítima. Lá se foi ele no navio "Mayumba", a caminho da costa ocidental da África. Sua mãe o animava. Um ou dois anos de viagem lhe permitiriam arranjar dinheiro suficiente para instalar um consultório por conta própria. Em outubro desse ano, porém, o navio foi acossado por tremenda tempestade, depois de Tuskar Light. E todos viram um médico gigante permanecer destemerosamente metade da noite sobre o tombadilho lavado pelas águas. Foi essa uma de suas últimas noites de satisfação a bordo, nessa viagem acidentada à Costa do Ouro. Em janeiro de 1882, o "Mayumba" atracava de novo em Liverpool. Sentou-se Arthur numa sala onde exalava insuportável fétido de madeiras e metais queimados, e escreveu à sua sempre lembrada mãe uma carta, de onde destacamos estas linhas: "Escrevo-lhe para dizer que cheguei são e salvo, depois de haver apanhado a febre africana e quase ter sido devorado por um tubarão. Como cena final, o "Mayumba" se incendiou entre a ilha da Madeira e a Inglaterra. Não penso voltar à África. O que ganho é menos do que poderia ganhar com a minha pena ao mesmo tempo, e o clima é atroz. Espero que não se decepcione por eu haver abandonado o navio, mas isto não é suficiente. Eu seria capaz de fazer qualquer coisa para não decepcioná-la ou causar-lhe desgosto. Podemos conversar a esse respeito." Conversaram e tudo se acomodou. Nessa ocasião, chegou uma carta da tia Anette, chamando-o a Londres, a fim de falar-lhe de suas probabilidades para o futuro.

Choque inevitável

            Foi essa a primeira vez que Arthur Conan Doyle defrontou a primeira crise real de sua existência. Seus parentes católicos poderiam influir muito na sua vida futura. Mas ele, fiel à sua maneira de sentir, respondeu à tia Anette, dizendo que era agnóstico e que, diante disto, seria falta de honestidade de sua parte discutir o assunto com eles. Sua mãe, que daria tudo para ver o filho triunfante, deixou que ele fizesse o que pensava e guardou silêncio.

            Não tardou que chegasse a resposta da tia Anette, insistindo para que ele, mesmo assim, fosse a Londres.

            E para lá partiu o jovem e voluntarioso Arthur Conan Doyle.

*

            Arthur Conan Doyle chegou à casa dos tios disposto a manter sua opinião, mas desejoso de evitar uma ruptura. Passeou os olhos pela sala de jantar da casa de Cambridge Terrace. Lá estava a grande mesa, em volta da qual já haviam sentado homens preeminentes, como Walter Scott, Disraeli, Thackeray, Coleridge, Wordsworth, Rossetti, Lever e muitos outros, todos eles amigos de seu tio John e que representavam o mundo literário que tanto atraía o jovem Arthur. Intimamente, não desejava crer que seus parentes se aborrecessem tanto por simples questão religiosa. Mas era justamente neste ponto que ele se enganava. "Para seus tios, já envelhecidos, superiores e sem descendência, a única coisa que importava no mundo era a Igreja Católica. Seus antepassados tudo haviam dado por ela e para ela. Os bens materiais eram efêmeros; só a fé era real. No entanto, esse jovem Arthur, para quem eles haviam sido tão bondosos, estava pondo a própria alma em perigo, por causa de um perverso capricho."

            Iniciado O "conselho de família", Conan Doyle foi franco: - Se eu exercesse minha profissão como médico católico, teria que receber dinheiro e declarar que acredito em algo em que realmente não creio. Vocês todos teriam o direito de me considerar o maior canalha do mundo, se o fizesse. Vocês não procederiam assim, não é certo?

            O tio Dick, que ele conhecera tão sereno, estava furioso, e retrucou: Mas nós estamos falando da Igreja Católica. E isso é diferente.

            - Eu sei. Mas em que sentido é diferente, tio Dick?

            - Porque aquilo em que acreditamos é verdadeiro.

            A fria simplicidade desta observação chocou-se com o ânimo de Conan Doyle, quando seu tio acrescentou:

            - Se somente possuísses fé...

            O rapaz, com a firmeza que lhe era habitual, contestou:

            - Sim, é isso o que todos me dizem. Falam de ter fé como se fosse possível obtê-la por um ato voluntário. Poderiam pedir--me também que tenha cabelos negros em vez de castanhos. A razão é a mais alta faculdade que a criatura humana possui. Temos de fazer uso dela.

            Esta resposta de Conan Doyle não abalou os tios. E o de nome James indagou:
            - Que te diz a razão?

            - Diz-me que todos os males da religião, dezenas de religiões destroçando-se umas às outras, provêm de serem aceitas coisas que não podem ser provadas. Dizem-me que esse Cristianismo de vocês contém muitas coisas nobres e magníficas, misturadas com uma quantidade de absurdos e futilidades sem-nome. Dizem-me ...

            Estava concluída a entrevista.

            Ao deixar aquela casa, Arthur Conan Doyle sabia que uma porta se havia fechado para ele definitivamente. Ainda que os céus desabassem, jamais recorreria a esses tios - pensou com os seus botões. Um sobrinho a quem tantas vezes haviam agasalhado passou a ser um estranho. Alguém poderia dizer que ele pusera fora a grande oportunidade de sua vida. Mas Arthur Conan Doyle possuía excelente formação moral, tinha um caráter rijo, modelado por uma mãe excepcional. Por isto, reafirmou suas opiniões religiosas e jurou que jamais aceitaria algo que não pudesse comprovar.

Tentando a sorte

            Decidido a vencer, Conan Doyle pôs-se a procurar colocações a bordo, sem resultado. Recebeu, nessa época, um telegrama de seu amigo Dr. Budd, que lhe oferecia um lugar em seu consultório, pois tinha muito serviço, prometendo a Conan Doyle trezentas libras no primeiro ano de trabalho, desde que ele se encarregasse de todas as visitas, de toda a cirurgia, de todos os partos. Esse Budd, porém, era um charlatão espetaculoso, embora médico capaz, e possuidor, realmente, de grande clientela. Numa palavra, um cabotino.

            O que se passou, dai por diante, foi penoso para Conan Doyle, que ganhava apenas uma ou duas libras por semana. Enquanto Budd prosperava, ele marcava passo. Seus credores aumentavam, porque Budd não lhe pagava o que havia prometido. De boa-fé, Conan Doyle defendia o amigo, quando sua mãe dizia que Budd não era relação que servisse para ele, criticando duramente o caráter desse médico.

Indiscretos

            Um dia, quando Conan Doyle estava ausente, Budd e a mulher remexeram-lhe os móveis e encontraram as cartas em que a mãe de Arthur se externava com franqueza a respeito desse falso amigo. Traiçoeiro, Budd nada disse, esperando que chegasse o mês de junho, quando, da maneira mais suave, declarou a Conan Doyle que este arruinara a sua clientela desde o começo. E explicou: "Essa gente da roça tem a cabeça dura. Veem uma porta com dois nomes de médico e se atrapalham. Querem o Dr. Budd, mas receiam ser enganados pelo Dr. Doyle. Ficam nervosos e vão embora."

            Conan Doyle, que nada sabia do que havia sucedido, foi para o pátio e retirou com um martelo a placa que tinha o seu nome na porta principal. Budd aproveitou o ensejo para alegar que ele estava agindo precipitadamente e de mau humor. E lá se foi ele para Portsmouth, onde abriu um consultório, também sem êxito. Os primeiros tempos de clínica eram bastante difíceis. Como o Dr. Budd lhe havia prometido pagar-lhe uma libra por mês, para que ele desfizesse o acordo estabelecido, ele contava com essa libra para ir ajudando as despesas menores. Dois contos seus, "Ossos" e "A ribanceira de Bluemansdyke", publicados pelo editor de "London Society", lhe renderam sete libras, e quinze xelins lhe foram pagos como adiantamento por outros trabalhos. Conan Doyle chamara seu irmão Innes, de dez anos, para ajuda-lo como servente.

Comédia

            Estava tudo indo assim, Conan Doyle às voltas com o aluguel da casa que ocupava e com outras despesas que não podia solver, quando o Dr. Budd lhe escreveu, dizendo haver encontrado, no quarto que ele ocupara, pedaços de certa carta rasgada. Juntara esses pedaços, depois que Arthur fora para Portsmouth, e verificara tratar-se de carta da mãe de Conan Doyle, que continha pesados insultos a ele, Dr. Budd, chamando-lhe "pouco escrupuloso" e "tapeador em falência". Ora, isso era uma falsidade, pois a verdadeira carta se achava em poder de Conan Doyle. Mas, com esse estratagema, Budd livrou-se da obrigação assumida de lhe dar uma libra mensal...

Melhoria

            Parece que, rompidos os laços que o ligavam a Budd, as coisas começaram a melhorar e os primeiros clientes foram chegando. Seu consultório tinha respeitabilidade e asseio. O tempo correra e um belo dia o correio entrega a Conan Doyle uma carta da firma Smith, Elder & Co., datada de 15 de julho de 1883, que saudava A. C. Doyle, e lhe fazia entrega de um cheque de vinte e nove guinéus em pagamento de uma colaboração que o escritor enviara ao "Cornhill Magazine", sob o título "A Observação de Habakuk Jephson", que ainda não havia sido publicada.

            Conan Doyle vibrou de satisfação. Conseguira finalmente entrar na fortaleza ínexpugnável que era o "Cornhill Magazine".

            Entretanto...

*

            A alegria de Conan Doyle por ver aceito o seu trabalho "A Observação de Habakuk Jephson", pelo "Cornhill Magazine", cujo editor havia sido anteriormente Thackeray e estava então prestigiado pelo famoso novelista Robert Louis Stevenson, autor de "A Ilha do Tesouro", "Dr. Jeckyll e o Sr. Hyde" e outros, não foi tão completa como seria de desejar. É bem verdade que o "Cornhill Magazine" só publicava trabalhos de real valor e seu editor, o eminente James Payn, era muito exigente a esse respeito. Acontece, porém, que omitiram o nome de Conan Doyle e "Habakuk" apareceu sem a sua assinatura, tendo um crítico atribuído sua autoria a Stevenson, comparando-o a Edgar Allan Poe.  É fácil imaginar o estado de espírito de Conan Doyle, ao ver um trabalho seu ser tão elogiado e atribuído a outros escritores. Foi preciso que ele se contivesse muito para deixar de dizer a todo o mundo ser seu "A Observação de Habakuk Jephson". Lutando como estava, não pode suprimir a colaboração para revistas más, modestas e baratas, como "London Society", "AlI the Year Round" ou "Boy's Own Paper".

            Até 1884, exerceu sem grandes modificações a sua profissão de médico, sem abandonar, entretanto, a literatura. Ainda arranjava tempo para orientar seu irmão Innes na redação de um "diário".

Conan Doyle salva o tio

            Desde aquela entrevista em Cambridge Terrace que Conan Doyle sofria de amargura e não havia feito as pazes com os tios. Esteve uma ou duas vezes com o tio Dick, salvando-lhe a vida de um ataque de apoplexia. Este, depois, lhe enviou uma carta de apresentação para o bispo de Portsmouth, ajuntando que "não existia médico católico na cidade". Ao ler isto, Conan Doyle ficou irritado. E a carta dizia mais: "Volta ao aprisco; aceita a fé e não passarás fome." Num gesto brusco, largou a carta ao fogo. Não era homem de enfraquecer por qualquer coisa. Aquela carta, pelo contrário, lhe dava novas forças para enfrentar a situação delicada em que vinha vivendo.

Simplicidade

            Doutra feita, sua mãe, a quem ele adorava, perguntou-lhe por que não usava em seus papéis o escudo de nobreza da família, o escudo dos Foleys, que era o orgulho dela. Conan Doyle esclareceu que "os escudos de família em uma folha de papel pareceria um pouco ostentoso". As vezes não dava resposta às cartas que recebia, por falta de dinheiro para o porte. Lutando sem desânimo, Conan Doyle começou, por fim, a derrubar as primeiras barreiras. Sua clientela foi aumentando, fato que comprovou ao ser saudado por seus conhecidos.

Exímio no futebol

            Suas façanhas no críquete e no futebol contribuíam também para isso. Jogava com muita técnica e não menor energia, tornando-se popular no esporte. Fez-se sócio da Sociedade Literária e Científica, dividindo suas horas de lazer entre a literatura e o esporte. Chegou até a ganhar bela caixa de charutos finos em virtude da sua perícia no boliche. De quando em quando, para alegrar-se, recebia a visita de alguma de suas irmãs.

Êxito de "Habakuk"

            Médico da Companhia de Seguros de Vida Gressham, Conan Doyle viu sua renda aumentar. Teve ocasião de fazer a dura experiência que o contato com a dor e a morte impõe aos médicos. Quanto mais se dedicava à Medicina, mais se aprofundava nas letras. "Depois do aparecimento de "A Observação de Habakuk Jephson" - diz seu biógrafo Carr -, em janeiro de 1884, durante algum tempo não teve Conan Doyle oportunidade de ver publicado outro trabalho no "Cornhill Magazine". Esse conto, feito com muita imaginação, baseava-se num abandonado barco misterioso, de nome "Mary Celeste". Teve repercussão muito além dos elogios dos críticos. Ao longe, em Gibraltar, foi lido por um tal Sr. Solly Flood, intercessor de S. M., que ficou petrificado, e, por intermédio da "Central News Agency", enviou um telegrama que percorreu a Inglaterra inteira.

            Esse Flood escreveu também um longo relatório a seu Governo e aos jornais, salientando a ameaça que, para as relações internacionais, representavam as pessoas como esse doutor Jephson, as quais fingiam revelar fatos que oficialmente poderiam ser provados como falsos. Antes que a situação ficasse esclarecida, os jornais se divertiram bastante com os temores desse Sr. Flood. Para o doutor Conan Doyle essa ocorrência foi o princípio de uma revelação. Poderia escrever ficções que muitas pessoas tomariam por ser a verdade mesma.

            Assim, o ano de 1884 começava para ele com uma febre por escrever, mas o "Cornhill Magazine" lhe devolvia todos os trabalhos que ele enviava para publicar. Mas o grande escritor do futuro se alegrou ao receber convite para participar de um almoço que aquela revista oferecia a seus colaboradores, no Barco, em Greenwich. Foi nesse almoço que Conan Doyle conheceu Payn, diretor do "Cornhill Magazine".

Injustiça

            Ao ser divulgado um concurso literário do "Tit-Bits", Conan Doyle para lá mandou um artigo. Mas ficou indignado ao ver que o prêmio havia sido concedido a um trabalho em todos os aspectos inferior ao seu. O que o irritava é que não havia justiça. Resolveu que os obrigaria a ser justos!

            Fez ele, então, uma proposta-desafio, que o editor da citada revista deixou sem resposta, dada a impossibilidade de desmenti-lo. Indiretamente Conan Doyle vencera...

*

Primeiro casamento

            Em junho de 1885, Conan Doyle, depois de defender tese, recebeu o título de M. D., doutor em Medicina (Medical Doctor), e em agosto casou-se com a suave Louise Hawkins, "Touie". Sempre lutando para que seus trabalhos literários fossem aceitos e buscando firmar-se na carreira médica, ele chegou ao Ano Novo de 1887.

Atraído pelo psiquismo

            Estava então inteiramente preocupado com um novo e delicado assunto: o psiquismo. Havendo renunciado ao Catolicismo, que não satisfazia ao seu espírito evoluído, permaneceu materialista, tal como o historiador Gibbon, a quem tanto admirava. Mas o seu materialismo era mais de superfície, tanto que escreveu: "É verdade que se tem de subentender um Criador, se se concebe o mundo como um imenso maquinismo de relógio balançando sobre o vácuo."

Contato com o Espiritismo

            Ao iniciar-se o ano de 1887, Conan Doyle foi visitar um de seus doentes, o General Drayson, que lhe falou de alguma coisa chamada "Espiritismo". Esse general era astrônomo e matemático notável. Disse a Conan Doyle de suas conversações com um irmão já desencarnado, razão pela qual se convertera ao Espiritismo. Conan Doyle ouvia, mas nada dizia. O general lhe assegurou que a existência além da morte era um fato provável. Prudente, Conan Doyle respondeu com algumas palavras que o não comprometiam. Desde, porém, que havia a possibilidade de prova, seu espírito ficou interessado em conhecer melhor isso a que denominavam "Espiritismo". Em um caderno de notas intitulado "Livros que devo ler", ele anotou certa quantidade de obras sobre o assunto, que, ao cabo de um ano, chegaram ao número de setenta e quatro. Depois de se dedicar ao estudo desses livros, Conan Doyle meditou muito sobre tudo quanto despertara sua atenção e dentro em pouco tempo conhecia profundamente os problemas oferecidos pelo Espiritismo. Duma feita, citou apaixonadamente o Alcorão: "Podes crer que o céu e a terra e o que há entre eles há sido feito por pilhéria?" Em outra ocasião, mencionou Hellenbach: "Há um ceticismo que sobrepassa em imbecilidade a obtusidade de um camponês." Seria ele um
cético dessa espécie? Não, em absoluto. Já havia lido e comentado, escrevendo suas notas, "Os Milagres e o Espiritismo Moderno", de Wallace, e o "Magnetismo Animal", de Binet e Feré.

Experiências práticas

            Chamando seu amigo Ball, arquiteto de Portsmouth, resolveu fazer sessões espíritas, que começaram em 24 de janeiro de 1887 e, com pequenos intervalos, se prolongaram até princípios de julho. Fez um relatório pormenorizado dessas reuniões, no qual se pode perceber a sua compreensão e o seu profundo interesse pelos fenômenos mediúnicos. Seis sessões foram realizadas com um médium experimentado, de nome Horstead. Numa dessas reuniões, esse médium disse estar vendo o Espírito de um velho de cabelos grisalhos, testa alta, lábios delgados e de fisionomia enérgica, que olhava fixamente para Conan Doyle.

Mensagem confirmada

            Novamente, durante a sessão, esse velho se fez notado e um membro da sessão recebeu dele uma mensagem alusiva a Conan Doyle, a qual dizia: "Esse cavalheiro é médico. Não deve ler o livro de Leigh Hunt." Ora, Conan Doyle confessou depois que estava vacilante sobre se deveria ou não comprar o livro "Os dramaturgos cômicos da Restauração", e que o não adquirira devido à sua linguagem libidinosa. Jamais havia revelado esse fato a quem quer que seja, nem pensava nele nessa ocasião. "Portanto, esclarece, não foi um caso de telepatia."

Impaciência

            Depois da surpresa dessa noite, Conan Doyle, atormentado pela dúvida e a indecisão, o que se pode notar pela leitura de seu "diário", esforçava-se bastante por adquirir conhecimentos cada vez mais profundos a respeito dos assuntos psíquicos. Não era homem para aceitar as coisas facilmente, antes de provas que lhe dessem cabal satisfação. Resolveu, assim, continuar investigando e lendo, porque, depois de tantas leituras e severas investigações, ainda não havia chegado a uma conclusão definitiva. Pensou lá com seus botões: "Talvez eu não tenha investigado bem, com a atenção necessária." E resolveu ser ainda mais exigente.

*

            Passemos por cima de outros fatos da dinâmica vida de Arthur Conan Doyle, pois é nosso objetivo relatar preferentemente as suas principais atividades no Espiritismo. Muita coisa acontecera com ele, depois daquela primeira sessão espírita realizada em 24 de janeiro de 1887, além do seu crescente êxito literário. Em fins de janeiro de 1889, nasceu-lhe a filha Mary Louise; sua mãe, renunciando ao Catolicismo-Romano, ingressara na Igreja Anglicana. A famosa personagem de seus romances policiais, Sherlock Holmes, granjeara imensa popularidade, fato que desconcertava Conan Doyle, que desejava do público maiores atenções para as suas novelas históricas. Tanto assim que, posteriormente, "matou" Sherlock Holmes. Mas essa criação do seu pensamento foi tão prodigiosa, tão genial, que ele se viu forçado a provocar-lhe a "ressurreição", cedendo ao clamor de milhares de leitores, no Reino Unido, na Europa, nos Estados Unidos, no mundo!

Conan Doyle encontra Crookes

            Encontrava-se o célebre escritor, em 1901, no vestíbulo de Whitehall Rooms, conversando com alguns amigos, quando do grupo se acercou o notável físico William Crookes, portador de numerosos títulos científicos e famoso também pela extraordinária coragem demonstrada, ao enfrentar os misoneístas da época, na defesa da realidade dos fenômenos espíritas, por ele investigados demorada e exaustivamente (ver "Fatos Espíritas", edição da Federação Espírita Brasileira, Rio).

Negadores desconcertados

            Depois de ligeira parada, Crookes continuou seu caminho. Então alguém disse estar surpreso ante o fato de um homem de sua importância, de sua posição no mundo da Ciência, acreditar em Espíritos.

            Conan Doyle atalhou, imediatamente:

            - Acredito que, por detrás das crenças de Crookes, haja alguma coisa merecedora de...

            - Não graceje! - exclamaram alguns amigos.

            - Não estou gracejando. Venho estudando cuidadosamente, há muito tempo, as investigações de Crookes, Oliver Lodge e Frederic Myers. Parece que há nesse assunto muita coisa digna de...

            - Fé? - interrompeu um deles, com ar de mofa.

            - Pelo menos - concluiu Conan Doyle, seriamente - de consideração, já que não de uma fé verdadeira.

            Ao proferir essas palavras, sacudiu a cabeça, de um modo que lhe era muito característico, e se dirigiu a outros amigos que solicitavam sua presença.

            Justamente no momento em que ele se afastava, disseram-lhe:

            - Até você, Arthur? Será que Saul também se encontra entre os profetas?..



Arthur Conan Doyle
Parte 2 e final
por  Indalício Mendes
in Reformador (FEB) Dezembro 1978

            Em 1902, o Rei Eduardo VII, da Inglaterra, considerando os grandes serviços prestados por Conan Doyle, a propósito da guerra dos "boers", cogitava de conceder-lhe o título, nobiliárquico de "Sir". Fiel a seus rígidos princípios, Conan Doyle não se mostrava disposto a aceitar a honraria. Se havia sido útil a seu país, esclarecendo fatos, restabelecendo a verdade, fazendo crítica construtiva, até mesmo a autoridades inglesas; se havia sido útil, enfim, cumprira apenas seu dever. Nada mais. "Não aceitaria o que considerava condescendência, nem aceitaria vulgares migalhas de uma mesa qualquer" - escreveu um de seus biógrafos.

            E asseverava Conan Doyle:

            - "Todo o meu trabalho em favor do Estado se macularia se eu aceitasse uma dessas "recompensas". Pode parecer orgulho, pode parecer loucura, mas eu não posso aceitá-la. O título de maior valor que possuo é o de "doutor", que devo aos sacrifícios de minha mãe e à sua determinação. Não quero trocar esse título por quaisquer outros."

            Apesar de enérgica resistência, Conan Doyle teve que aceitar os pontos de vista de sua mãe, que assim argumentara:

            - Arthur: se queres conservar teus princípios, cometerás uma descortesia com o rei. Embora contrariado, concordou Arthur Conan Doyle que seu nome figurasse na Lista de Honra dos que seriam contemplados com o título de "Sir".

            No "Dia da Coroação", festejado alegremente na Grã-Bretanha e em todas as suas colônias, Conan Doyle teve assento reservado junto ao de Oliver Lodge, autor de "Raymond" e um dos grandes campeões do Espiritismo na Inglaterra, que receberia também nessa data o referido título. Quase esquecendo o fim de sua presença naquele local, começaram ambos a discutir assuntos do Espiritismo. Foi uma conversação animada, durante a qual pontos importantes foram debatidos com profundo interesse.

Curioso episódio

            No ano de 1906, a 17 de fevereiro, o capitão Innes Doyle, seu irmão, que não o via desde que fizeram juntos a excursão aos Estados Unidos da América, em 1894, foi visitá-lo. A certa altura, enquanto Arthur Conan Doyle escrevia uma carta, ponderou Innes:

            - "Sabes, Arthur? Seria bastante estranho se a tua verdadeira carreira, em vez de estar na literatura, estivesse na política."

            O novelista, sem erguer a cabeça, respondeu de imediato, quase automaticamente:

             "- Minha carreira não será nenhuma dessas. Será a religião."

            "- A religião?! - tomou Innes, visivelmente surpreendido."

            Foi quando Conan Doyle caiu em si, olhando para o irmão com tal expressão de espanto no rosto, que ambos começaram a rir. Não sabia ele como semelhante resposta lhe saíra dos lábios, e confessou considerá-la idiota.

            "- A verdade é que minha futura carreira nada terá com a religião."

            Nesse momento, ignorava Conan Doyle para onde os fatos o levariam. As palavras irromperam-Ihe involuntariamente da boca, como se algum Espírito dela se utilizasse para lhe dar aviso muito antecipado da mudança que sua orientação iria sofrer nesse sentido.

            Desde que iniciara os estudos psíquicos, em Southsea, que Conan Doyle nutria grande afeto pelo Espiritismo, porque, na sua opinião, nele poderiam ficar incluídos todos os credos religiosos. Religião sem dogmas, sem liturgia nem intolerâncias, o Espiritismo inspirara-lhe simpatia muito profunda, porque coincidia com o seu espírito altamente humano, extraordinariamente reto e liberal.

            Embora não houvesse dado maior importância ao fato ocorrido durante a visita de Innes, a realidade estava evidente: fora, sem dúvida, uma entidade invisível que se utilizara de seus lábios e da excelente oportunidade para dizer o que ele próprio não admitia: sua futura carreira seria a religião, em vez da literatura ou da política.

            Ninguém combateu com maior ardor do que ele a fraude e a mistificação. Embora ainda fossem fortes as suas dúvidas, não desistiu das investigações. Não podia compreender o recebimento de mensagens banais em sessões espíritas. Mas o entendeu logo que se familiarizou com a Doutrina. Admirava o Espiritismo por sua elevação moral, porque não é religião sectária, não condena as criaturas humanas ao castigo eterno, não as ameaça de perder a alma por causa de simples pormenores doutrinários, nem possui a intolerância que tanto o irritara quando menino, predispondo-o contra todos os credos dominantes na Europa, como o Catolicismo e o Protestantismo. Com muito maior razão, depois de homem, repeliria estreitos e sombrios preconceitos religiosos. Justamente por motivo de sua experiência no Catolicismo, exigia provas concludentes no Espiritismo, apesar do afeto profundo que devotava à Terceira Revelação.

O livro de Myers

            "A personalidade humana e sua sobrevivência à morte do corpo", de Frederic Myers, publicado após o decesso do autor, em 1901, impressionou-o bastante. Daí a decisão de Conan Doyle, de fazer suas próprias experiências, com mesas e médiuns, sob severo controle e com todas as precauções contra a fraude e a mistificação, pois a campanha que se fazia, então, contra o Espiritismo, era tremenda, principalmente por aqueles que o negavam aprioristicamente e se recusavam a participar de longas e cansativas experiências para poderem chegar a honestas conclusões.

            Seu progresso era lento, mas seguro.

            A enfermidade de sua primeira esposa Touie, entretanto, não lhe permitia dispensar maior tempo às investigações. A 4 de julho de 1906, ela desencarnou, vítima da tuberculose, apesar da carinhosa assistência de Conan Doyle, que lhe proporcionara viagens de cura, os melhores tratamentos conhecidos na época e o máximo conforto. 

            Em seguida, sobreveio o célebre "caso Edalji", que lhe valeu, após intenso trabalho, grande vitória, pois pode provar irrefutavelmente a inocência do acusado.

Evidências de mediunidade

            Somos dos que admitem que todas as criaturas humanas são dotadas de mediunidade latente. Algumas se desenvolvem naturalmente ou mediante exercícios
adequados, com a assistência do Invisível. Outras nada sentem e por isto se julgam desprovidas desse dom. Tal era o caso de Arthur Conan Doyle. No entanto, ele demonstrou no decurso de sua vida um poder de intuição magnífico, inclusive através de suas novelas policiais e históricas.

            Aquele episódio com o seu irmão Innes, as profecias de seu conto "Perigo!", publicado em 1913, antecipando práticas até então desconhecidas, que foram utilizadas na Guerra Mundial iniciada em 1914, além de outros fatos, reforçam a nossa suposição de ter sido Conan Doyle um médium intuitivo. Predisse a técnica da primeira conflagração mundial, relatando com fidelidade a guerra submarina, os torpedeamentos de navios neutros, os ataques aéreos, etc.

            Contou em 1913 o que aconteceria de 1914 a 1918! 

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            Em setembro de 1907, consorciou-se pela segunda vez. Sua nova esposa chamava-se Jean Leckie. Em 1909, nasceu-lhe o primogênito desse matrimônio, Denis Percy Stewart Conan Doyle. Em 1910, o segundo, Adrian Malcolm Conan Doyle. Em 1914, visitou de novo os Estados Unidos, agora com sua esposa Jean, e foi ao Canadá, regressando à Inglaterra nos primeiros dias de julho. A 23 desse mês, o Império austro-húngaro enviava o ultimato à Sérvia, dando início à Grande Guerra.

Cresce Conan Doyle diante da dor

            Conan Doyle prestava valiosos serviços a seu país, na frente interna, pois a idade não mais lhe permitia o serviço militar. O primeiro golpe fatal desferido pela guerra em sua família atingiu o cunhado, Malcolm Leckie. O bondoso gigante de Edimburgo tinha, porém, grandes reservas de força moral. Suportava corajosamente os contratempos, mas sofria, vendo o sofrimento das mães que reclamavam os filhos, das esposas que indagavam pela sorte dos maridos, das noivas que choravam pelos noivos...

            Conan Doyle era forte, mas não era insensível. Conan Doyle, espírito percuciente, estudou a guerra pelo lado de dentro, isto é, procurou penetrar o mundo íntimo das criaturas que, de um momento para outro, se viam despojadas da felicidade. Aquelas que se punham em contato com o Espiritismo, pareciam mais resignadas, porque compreendiam melhor as coisas.

Onde estão nossos mortos?

            Jamais o mundo havia passado por tamanha provação. Tal qual está no Evangelho, ouviam-se choros e ranger de dentes. Começaram a chegar a seus ouvidos as perguntas dolorosas: "Onde estão nossos mortos? onde estão nossos mortos?"

            "Uma desventurada mãe, que havia perdido o filho, procura explicar, meio dementada pela dor: "Ele estava ali... ali... Então, explodiu uma granada. Nada restou dele, nada que pudesse ser sepultado... " - escreveu Conan Doyle, emocionado.

Que faria você?

            Em fins de agosto, a “Gazeta Psíquica Internacional" fez em suas páginas estas perguntas a vários homens e mulheres eminentes: "Que faria você para consolar os que estão dominados pela dor? Como procederia para ajudá-los?" Houve mais de cinquenta respostas. A de Conan Doyle foi a mais curta: "Parece-me que nada posso dizer que valha à pena. Só o tempo pode mitigar a dor." Suas palavras foram divulgadas no número de outubro de 1915. Não é que ele não compreendesse o sofrimento dos aflitos. Justamente porque o compreendia, não desejava dar esperanças infundadas...

Prova definitiva

            Llly Loder-Symonds, amiga dos Doyle, era médium e escrevia automaticamente. Conan Doyle comentara: "Tinha-se a impressão de que alguma força se apoderava de seu braço e ela escrevia coisas que pareciam vir de entre os mortos. Todavia, devemos sempre olhar com suspeita a escritura automática, pois é tão fácil alguém enganar-se a si mesmo... Como podemos saber se o médium está ou não dramatizando certas facetas de sua personalidade?" Essa dúvida demonstrava que, ainda aí, Conan Doyle não havia adquirido a convicção sólida que lhe veio depois.

            Lily Loder-Symonds havia perdido três irmãos na guerra, além de um amigo, na pessoa de Malcolm Leckie. Começou a receber mensagens desses quatro jovens e algumas delas foram confirmadas posteriormente. Comentou Conan Doyle:

            - "As mensagens estavam cheias de pormenores militares que a moça ignorava. Um de seus irmãos informou haver conhecido um belga, e, como deu seu nome, pudemos averiguar que assim acontecera efetivamente. Outros resultados, no entanto, foram falsos ou não puderam ser comprovados."

            Conan Doyle ficou impressionado com essas comunicações, mas não prosseguiu. Depois, sucedeu alguma coisa. Ele recebera uma mensagem de Malcolm Leckie, que mencionava fatos de caráter muito pessoal, somente deles conhecidos.

            Durante trinta anos, aproximadamente, Conan Doyle havia buscado uma prova objetiva das comunicações dos Espíritos. Encontrara-a, finalmente, nessa mensagem de Malcolm, que lhe deixou profunda impressão.

            Então, pôde afirmar:

            - Por fim, deixei de duvidar.

            Dois anos mais tarde, em 1918, Conan Doyle publicou "A Nova Revelação" (livro editado pela Federação Espírita Brasileira, Rio) e lá escreveu o seguinte sobre a comunicação de Malcolm Leckie e outros fatos:

            "Em face de um mundo que agonizava, ouvindo narrar diariamente como morria a flor da nossa raça, nos primeiros albores da sua juventude, observando, à volta de nós, as esposas e as mães sem fazerem ideia clara do destino que teriam tido os seres a quem amavam, de pronto se me afigurou que o assunto, com que desde tanto tempo eu brincava, não se resumia apenas no estudo de uma força que escapa aos preceitos da ciência, que nele havia alguma coisa verdadeiramente tremenda: o desabar de muralhas entre dois mundos, uma mensagem inegável vinda diretamente do Além, um brado de esperança e de encaminhamento para o gênero humano, na hora da sua mais viva aflição. O lado objetivo da questão deixou de me interessar. Convencido, afinal, da sua veracidade, não havia mais porque prosseguir. Seu lado religioso apresentava importância infinitamente maior. A campainhada do telefone é coisa em si mesma pueril, mas pode dar-se que seja a chamada para uma comunicação de vital interesse. Afigurou-me que todos esses fenômenos, grandes e pequenos, eram campainhadas de telefones que, sem significação em si mesmas, bradavam aos homens: "Levantai-vos! Alerta! Atendei! Estes sinais são para vós outros! Eles vos previnem da mensagem que Deus vos quer enviar!" O que tem valor real é a mensagem, não os sinais."

Em inspeção

            Em 1916, o Ministério do Exterior da Inglaterra enviou Conan Doyle a uma viagem oficial de inspeção, além do Canal da Mancha. Homem ativo, semelhante convite lhe causou grande contentamento. Tivera a incumbência de visitar a frente italiana e escrever algo para estimular os peninsulares na luta contra a Áustria. Aí, quase foi morto por uma granada, mas gracejou: "Não me venham dizer que os austríacos não sabem atirar!" Sentia-se leve e bem disposto, porque se achava em ambiente de grande atividade, compatível com o seu temperamento, e também porque estava colhendo dados para apregoar uma grande verdade ao mundo.

Piave... Piave...

            Sofrendo muito de insônia, Conan Doyle, certa vez, ouviu incessantemente a palavra "Piave", atordoando sua cabeça: "Piave... Piave... Piave...". Lembrava-se de ter ouvido muito vagamente o nome desse rio que ficava atrás das linhas italianas. Não havia, porém, razão para que essa palavra martelasse seus ouvidos, pois nenhum caso particular o ligava a ela. Dada a insistência, resolveu anotar o nome e mostrou-o a alguns amigos. Conan Doyle lembrou-se dessa palavra, quando foi divulgada a notícia da grande vitória italiana na batalha às margens do referido rio. Tivera, pois, aviso do famoso acontecimento com bastante antecedência.

            Nova possibilidade de revelação intuitiva a reforçar a hipótese de sua mediunidade é o que essa ocorrência parece demonstrar.

            Arthur Conan Doyle resumia sua crença neste heptálogo:

1) A paternidade de Deus;
2) A fraternidade do homem;
3) A sobrevivência da alma;
4) A comunicação entre os vivos e os mortos;
5) A responsabilidade pessoal;
6) Uma justiça divina premiando a cada um
 segundo seu merecimento e seus esforços;
7) Uma progressão eterna.

            "A revelação - disse ele em "A Mensagem Vital" - anula a ideia dum inferno grotesco e dum céu fantástico, por conceber uma elevação progressiva na escala da vida, sem mudanças monstruosas que num instante nos transformem em anjos ou demônios."

Conferências

            Em 1917, Arthur Conan Doyle começou a fazer conferências espíritas, expondo e analisando os fenômenos psíquicos. Nunca mais parou, desde então, essa propaganda importante do Espiritismo-Religião. O que ele fez, os esforços que despendeu, os ataques sofridos, a fortaleza de ânimo revelada e a firmeza com que se sobrepôs aos inimigos do Espiritismo, que também se tornaram, com isso, seus inimigos, puseram em relevo a elevação moral desse homem extraordinário, que não foi apenas um romancista de episódios policiais, mas um escritor de grande erudição, servido por uma inteligência viva e penetrante.

            Tamanho é o prestígio de que ainda hoje goza o seu nome que todas as suas obras, ou quase todas, foram há pouco tempo publicadas em nosso país, não só as de aventuras, nas quais Sherlock Holmes, o precursor da polícia técnica, é o herói, como as de História, onde Conan Doyle põe em relevo grande cultura e peculiar "maneira de dizer".

Cooperação

            Doía-lhe ver a Humanidade devastada pela primeira conflagração bélica mundial. Em abril de 1917 os Estados Unidos entraram na guerra. Logo depois, a Revolução Bolchevista aumentou as preocupações da Europa. A frente russa, em julho, se desmorona perante o inimigo. Conan Doyle não parava. Fazia conferências espíritas, chamando a atenção do povo para a grandeza do Espiritismo, que constituía a prova cabal de que a morte não significa o aniquilamento da alma; e, como bom patriota, agia, colaborando com o Primeiro-Ministro inglês.

Kingsley

            Preparava-se Conan Doyle para iniciar uma palestra espírita, em Nottingham, quando recebeu um telegrama, informando achar-se moribundo seu filho Kingsley. Homem forte, controlou-se. Apenas seus olhos se umedeceram. Admitindo que Kingsley desejaria que ele não suspendesse a conferência, iniciou-a em seguida. Sua palavra não denunciou um só instante a emoção que o dominava. Duas semanas depois, era assinado o armistício... Mais tarde, numa fotografia de Conan Doyle, podia-se ver, ao seu lado, o Espírito de seu filho Kingsley, de uma nitidez admirável.



            Em 1919, aos sessenta anos, Conan Doyle poderia aposentar-se de todas as atividades, porque sua vida, até ali, já fora bastante fecunda em numerosos sentidos. Ele, porém, não era homem de ficar entregue à ociosidade e continuava empenhado, mais do que nunca, na propaganda do Espiritismo.

Par do Reino

            Começou-se a falar em sua ascensão a Par do Reino Unido da Grã-Bretanha, que é a maior distinção a que um homem pode aspirar no império britânico. Era o reconhecimento, mais do que isto, a ratificação oficial do seu grande valor moral e intelectual.

            Acontece, porém, que havia uma condição para que ele fosse Par do Reino: renunciar ao Espiritismo! Arthur Conan Doyle não tinha, no entanto, o temperamento dos acomodadores. Sabia que a sua fidelidade ao Espiritismo lhe faria perder a grande oportunidade, além de muitos amigos presos a preconceitos sectários. Mas, para ele, nada tinha tanto valor quanto a verdade e a verdade era o Espiritismo, que trouxera uma mensagem nova de conhecimento, paz e amor para a Humanidade que sofre!

            Alguns anos antes, conta um de seus biógrafos, Douglas Sladen escrevera o seguinte a seu respeito: "Trata-se de um homem a que se recorreria no caso de crise. Há poucos em Londres que não conheçam essa enorme figura, essa cabeça redonda com pômulos salientes e intrépidos olhos azuis, esse rosto franco e de bom humor. É um conferencista muito popular, agradável e entretido em assuntos leves, mas profundo e convincente nos momentos de crise. De todos os escritores de nossa época, é Arthur Conan Doyle quem mais merece ser chamado um grande homem."

            Um escritor norte-americano, no jornal "Free Press", de Detroit, se referia à visita de Conan Doyle aos Estados Unidos, em 1894, e dissera: "sábio conselheiro nas resoluções de importância e um refúgio seguro para os amigos que necessitam de seus bons ofícios."

            Depois de sua atitude, recusando a distinção de Par do Reino em troca do repúdio ao Espiritismo, esses homens manteriam a mesma opinião a respeito dele ou mudariam de atitude, para não perderem o prestígio e as vantagens decorrentes do apoio à intolerância? Preferimos não avançar mais, pois provavelmente optariam pela última dessas hipóteses.

Compreensão

            Conan Doyle não se revoltou contra aqueles que o criticaram e atacaram por causa disso. Achava que eles não tinham culpa, pois não haviam sido alcançados pela revelação que lhe iluminara o espírito, não fizeram as pesquisas e as experiências a que ele se dedicara exaustivamente. "Tinham, pois, o direito de ter opiniões contrárias, como ele, Conan Doyle, se julgava também com o direito de sustentar as opiniões que defendia, se bem que o assunto, ele o sabia, não era questão de opiniões, nem de teorias, nem de decisões" -  acrescenta o seu biógrafo.

            Tolerante, superiormente compreensivo, disse à esposa:

            - Estejamos preparados para o que disserem. Isso tem muita importância? - perguntou ele.

            - Nada tem importância, Arthur, se você crê que deve proceder desse modo.

            - É a única atitude que posso tomar. Toda a minha vida veio culminar nisto - o Espiritismo. É o mais grandioso fato que existe no mundo.

            Sua decisão estava tomada. Que desabasse o mundo sobre ele. Arthur Conan Doyle continuaria de pé, como continuou.

            Certa feita, quando se encontrava na Austrália, Conan Doyle teve de suportar venenosas considerações de um tal reverendo J. Blacket, a respeito do Espiritismo. Homem leal e decente, incapaz de argumentos capciosos e falsidade, ele se desgostava quando encontrava adversários que não tinham os mesmos escrúpulos. O reverendo, entre muitas das sandices habituais lançadas contra a Terceira Revelação, repisava o tema de que o Espiritismo é obra do demônio e os espíritas com este têm pacto firmado. Encarando seriamente a questão, Conan Doyle escreveu: "Digamos que o melhor exemplo é o do Cristo; quando os fariseus lhe fizeram essa imputação, ele respondeu: Conhece-los-eis, pois, pelos seus frutos. Não posso compreender a mentalidade de quem pensa que é coisa do demônio o querer provar a existência da vida além-túmulo, para poder assim refutar os materialistas. Se isso é obra do demônio, então parece que ele se reformou."

            Sua concepção filosófica, tal como a espírita, afirmava que "não é crível que Deus ajude a um grupo da Humanidade contra outro. O ensinamento é que a fé e as crenças têm pouca importância ao lado do comportamento e do caráter. São estes últimos que determinam o lugar que a alma ocupará no Além. Todos os credos religiosos, cristãos e não cristãos, têm seus santos e seus pecadores; se um homem é bondoso e humilde, não há por que temer pelo destino de sua alma, seja ou não membro de uma igreja organizada na Terra".

Mediunidade admitida

            Muita gente tem perguntado se Arthur Conan Doyle era médium. Acreditamos que sim. Ele mesmo, aliás, respondendo a leitores que se interessavam por mais contos sobre Sherlock Holmes, respondeu várias vezes:

            - "Só posso escrever o que me chega do Além."

Advertência

            Em 1929, Conan Doyle completou 70 anos. Achava-se em Bignell Wood. Sentia-se capaz ainda de ir à Escandinávia, cumprindo sua missão de conferencista. Pretendia depois visitar Roma, Atenas, Constantinopla. Recordava o que escrevera ao fim de sua viagem à África do Sul: "Voltarei mais forte de saúde, com as minhas crenças ainda mais sólidas, com mais desejo que nunca de combater pela maior de todas as causas: a regeneração por meio da religião, por meio do Espiritismo, que é direto e prático e, além disso, é o antídoto único contra o materialismo científico."

            Visitou Haia e Copenhague, chegou à Noruega e Suécia. Em Estocolmo, principalmente, fizeram-lhe calorosa acolhida e as ruas se encheram de gente para saudá-lo. Ocupou o microfone de uma das rádio emissoras locais, onde sua voz surgiu lenta, clara e vibrante.

            Tinha o objetivo de regressar a Londres para falar no Albert Hall, nas comemorações do Dia do Armístícío, pela manhã, e no Queen's Hall, à noite. A neve começara a cair. Então, repentinamente, o bondoso gigante de Edimburgo vacilou e caiu! Era a advertência de que sua vida corria perigo.

            Transportaram-no de trem para o nº 16 do Buckingham Palace Mansions. Seus médicos o avisaram de que seria um suicídio se ele teimasse em usar da palavra, conforme prometera. Mas, como fizera em toda a sua vida, Conan Doyle não quis ceder, nem mesmo diante da "angina pectoris". Cumpriria sua palavra, não só por se haver comprometido a fazê-lo, como porque se tratava da Cerimônia do Armistício em honra dos que - como seus filhos Kingsley e Innes - haviam partido para a guerra ao som da canção "Guardemos nossas
Preocupações".

Missão cumprida

            Falou em Albert Hall pela manhã desse domingo, mas não sem dificuldade e com as pernas trôpegas. A noite, no Queen's Hall, fez o mesmo. E depois, quando a multidão que não pudera entrar, pois o local estava superlotado, pediu que ele falasse de novo, Conan Doyle insistiu em se dirigir a um balcão, sem chapéu, debaixo da neve que caía. Parecia que a sua força de vontade havia superado os males do corpo.

            E cumprira sua missão. Estava satisfeito.

Desencarnação

            Na véspera do Natal, desceu para a sala de jantar em Windlesham. Estava de bom humor, embora só houvesse chupado algumas uvas. O Dr. John Lamond, pastor presbiteriano, que havia algum tempo era seu companheiro de Espiritismo e que tantas vezes o ouvira imitar o professor Challenger, via Conan Doyle rir-se ao contar uma visita que fizera a Barry, em Stanway Court.

            Na primavera de 1930, parecia que sua saúde melhorara. Tudo se passara bem. Chega o verão. Ele continuava trabalhando, continuava escrevendo, ocupando-se com a grande correspondência. Quando passava do seu gabinete para o dormitório, caiu pesadamente ao chão. Ao mordomo que acudira, aflito, para ajudá-lo, ele disse calmamente:

            "- Não tem importância. Leve-me devagar. Que ninguém saiba disso, ouviu?"

            Não queria alarmar sua esposa Jean.
           
            Aplicaram-lhe oxigênio. De seu quarto, Conan Doyle viu o amanhecer de um dia esplendoroso. Embora se sentisse muito fraco, quis levantar-se e sentar-se numa poltrona. Falava com dificuldade, mas ainda assim teve estas palavras para a esposa desvelada:

            "- Devia-se cunhar uma medalha para você, com uma inscrição assim: Para a melhor das enfermeiras."

            Eram quase oito e meia. Jean e Adrian ladeavam-no, segurando-lhe as mãos com ternura. Mais além se encontravam Denis, Lena Jean e Mumpty.

            Às oito e meia, Jean e Adrian sentiram nas mãos uma pressão relativamente forte. Conan Doyle se reanimou um instante e, embora sem fala, olhou um por um. Depois, com a maior serenidade se reclinou e fechou os olhos para sempre.

            Era 7 de julho, quando desencarnava Arthur Conan Doyle, em Crowborough (Sussex) . Havia partido da Terra um dos espíritos mais nobres e valorosos que a Humanidade tem conhecido. A ele se referiu assim um de seus biógrafos, honesto e fiel, apesar de ser contrário ao Espiritismo:

            "Pela causa da religião espírita, Conan Doyle deu seu coração, sua fortuna e, por último, sua vida. E num sentido espírita, referindo-nos à influência que ele deixou atrás de si, podemos acrescentar apenas isto:

            - Não escrevamos seu epitáfio: ele não morreu."

"História do Espiritismo"

            Antes de concluirmos este escorço biográfico, sumamente lacunoso, pela impossibilidade de reproduzirmos tudo quanto pudemos colher a respeito desse notável escritor e admirável espírita, desejamos mencionar sua grande obra "História do Espiritismo", aparecida pela primeira vez na Inglaterra, em 1926 (1º volume) e 1927 (2º volume). Dela há várias edições, entre as quais uma em castelhano, publicada em Buenos Aires, e, mais recentemente, uma em nosso idioma, aparecida em 1960 (Editora "O Pensamento", São Paulo, SP).

Aspecto religioso do Espiritismo

            Tem o título acima um dos capítulos desse livro importante. Vamos reproduzir alguns de seus trechos:

            "O Espiritismo forma um conjunto de ideias e ensinamentos compatíveis com todas as religiões. Seus princípios fundamentais são a continuidade da personalidade humana e o poder de comunicações depois da morte, fatos básicos que têm uma importância primordial no Bramanismo, Maometismo, Parsismo e Cristianismo. Além disso, o Espiritismo se avantaja a essas religiões porque se dirige a todo o mundo. Só existe uma escola com a qual é absolutamente irreconciliável: a escola do materialismo, que tem esgotado o mundo e é causa radical de todos os nossos infortúnios. A compreensão e aceitação do Espiritismo são fatores essenciais para a salvação da Humanidade; do contrário, cada vez cairá ela mais baixo dentro do campo utilitário e egoísta do Universo."

            "Perguntar-se-á por que as antigas religiões não salvam o mundo de sua degradação espiritual. Responderemos: todas intentaram fazê-lo, mas todas têm fracassado. As Igrejas que as representam degeneraram e se tornaram mundanas e materiais. Perderam todo o contato com a vida do espírito e se contentaram com o referir-se aos tempos antigos e entregar-se a umas orações e a um culto externo à base de tão arrevesadas e incríveis teologias, que a inteligência honrada sente náuseas só em pensar nelas. Ninguém há se mostrado tão céptico e incrédulo acerca das manifestações do Espiritismo como o clero, não obstante ostentar uma crença que só se funda em fatos análogos aos nossos, ocorridos outrora; sua absoluta negativa em aceitar agora esses fatos dá a medida da sinceridade de suas convicções."

            "Temos procurado demonstrar a existência dos sinais materiais que os governantes invisíveis da Terra enviam para satisfazer a procura de provas materiais exigidas pela mente da Humanidade atual. Temos demonstrado, mesmo assim, que a esses sinais acompanham mensagens espirituais semelhantes às que receberam as grandes figuras religiosas do mundo primitivo, renovando a fogueira de crenças que hoje está quase convertida em cinzas. Os homens haviam perdido o contato com as vastas forças que os rodeiam, e o Espiritismo, que é o maior movimento registrado desde há dois mil anos, vem salvar-nos dessa situação, dissipar as nuvens que os envolvem e mostrar-lhes novos horizontes. Já brilha o sol da verdade no horizonte. Dentro em pouco o vale também estará iluminado."

Bibliografia  
"The Lífe or Sir Arthur Conan Doyle", de John Dickson Carr, tradução de José Donoso Yanez.
"EI Espiritismo - Su historía, sus doctrinas, sus hechos", de Arthur Conan Doyle.
"A Nova Revelação", de Arthur Conan Doyle, edição da FEB", contendo "A Mensagem Vital".
"Conan Doyle - O Homem que eu Conheci", por Harvey Metcalfe, "apud" Revista "Estudos Psíquicos", de Lisboa.
"Conan Doyle", editorial da Revista "Constancia", de Buenos Aires.
"Sir Arthur Conan Doyle" - Número especial de "La Revue Spirite”, de setembro-outubro 1959, editorial e artigos de Conan Doyle, Hubert Forestier e Annie Brierre.
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domingo, 3 de novembro de 2013

05. Máximas extraídas dos Ensinos dos Espíritos


05. Máximas extraídas
dos Ensinos dos Espíritos.
           

            A importância que o homem liga aos bens temporais está na razão inversa da sua fé na vida espiritual. É a dúvida quanto ao futuro que o leva a procurar suas alegrias neste mundo, satisfazendo às suas paixões, ainda que à custa de seu próximo.          

            Allan Kardec
Pág. 51 e seguintes.
‘O Espiritismo na sua Expressão mais Simples’
1ª Ed FEB 2006

Tradução de Evandro Noleto Bezerra

XXIa. et XXIb. Apreciando a Paulo



XXI a
‘Apreciando a Paulo’
      comentários em torno
    das Epístolas de S. Paulo
   por Ernani Cabral

Tipografia Kardec - 1958

«Admoesto-te pois, antes de tudo, que se façam deprecações,
orações, intercessões, e ações de graças por todos os homens;
.....................................................................................................
“Porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador,
Que quer que todos os homens se salvem,
e venham ao conhecimento da verdade.
Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus
e os homens, Jesus-Cristo homem.”
(Paulo – 1ª Epístola a Timóteo, 2: 1, 3 e 4)

            São Paulo recomenda que se façam orações por todos os homens, pois reconhece que todos somos irmãos. Ele não tinha a concepção exclusivista, limitada ou parcial de certos religiosos, que olham só para os de sua seita.

            Aliás, Jesus - o modelo da Humanidade, o Mediador, como diz Paulo, isto é, “o médium de Deus” - sempre deu esse exemplo. - Quando curava ou quando ensinava, não escolhia pessoas nem as distinguia por suas crenças ou por suas raças. Tanto advertiu a samaritana como sarou a mulher cananeia; tinha palavras de consolo para com todos, fazia o bem indistintamente, e mesmo na cruz teve misericórdia para com um ladrão.

            “Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento.” (Mateus, 9:13)

            E como Dimas foi tocado pelo arrependimento, mesmo na hora da morte, ele teve compaixão do “bom ladrão” e lhe declarou:

            “Hoje estarás comigo no paraíso.” (Lucas, 23:43)

            Eis uma passagem bíblica muito explorada pelos que negam a reencarnação, apesar de o Divino Mestre ter enunciado esta lei em João, 3:3 e em Mateus, 11:13 e 14.

            Realmente, Jesus prometeu o paraíso àquele pecador arrependido, mesmo antes que ele produzisse “os frutos do arrependimento” a que se refere em Lucas, 3:8.

            Sabemos que há regiões espirituais paradisíacas. Desencarnando na cruz, o Espírito de Dimas foi levado para uma destas, conforme a palavra do Cordeiro de Deus. Não podemos julgar “o bom ladrão”, pois não sabemos quais os motivos que o induziram ao mal e nem tampouco se houve em seu caso um erro da justiça humana, que é falível. Temos certeza somente de que Dimas, ao contrário de Gesta, “o mau ladrão”, mostrou-se humilde perante o Nazareno, crendo nele e suplicando: “Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.” (Lucas, 23:42.)

            E Jesus, que sempre apreciou a humildade, como se vê em Mateus, 18:4, e em outros textos bíblicos, prometeu-lhe aquela graça. Note-se que a graça não é arbitrária, mas sempre determinada por motivos que a justificam ou que impelem a misericórdia divina .

            Contudo, prometendo a Dimas o paraíso, Jesus não afirmou que ele estaria isento da reencarnação.

            Um Espírito pode desencarnar e merecer logo uma região espiritual superior. Mas isto não quer dizer que esteja livre da reencarnação e de pagar, se for o caso, e quando se tornar oportuno, “até o último ceitil”.

            Dirão que isto é um “nunca acabar” de lutas e de sofrimentos. Mas a lei divina é perfeita e ela não tem pressa. Há em nossa frente a eternidade, e a evolução do Espírito dura mesmo muitos séculos ou milênios, porque, como disse o apóstolo Paulo, “Deus quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade.”

            Como poderão todos os homens vir ao conhecimento da verdade, como disse São Paulo, nesta Primeira Epístola a Timóteo, se alguns nascem e morrem no estado de selvajaria? Como conciliar essa lição de Paulo de Tarso com a doutrina cristã, senão admitindo a lei da reencarnação?

            Mas os teólogos fecham os olhos a esse e a outros versículos bíblicos (Lucas, 3:6; João, 12:32 e Isaías, 52:10) para admitir uma só existência do Espírito na Terra, o que importa em proclamar a falta de equidade divina para com as suas criaturas e a vida de seres privilegiados. Por que uns são inteligentes e outros curtos de ideia, mesmo estudando? Por que essa diversidade econômica na Terra? Por que alguns contraem moléstias horríveis, que lhes servem de flagelo a vida toda, e outros não? Por que crianças nascem em lupanares e outras em berços reais? Para onde irá um idiota depois da morte? Para o céu? Se tal se desse, não seria melhor que a Humanidade toda fosse idiota, para ser salva, totalmente? Não seria mais misericordioso do que sujeitar alguns homens às penas eternas do inferno, que nossos irmãos católicos e protestantes dizem existir, tomando a Bíblia ao pé da letra?

            O certo é que, não aceitando a reencarnação, que Jesus enunciou com tanta clareza em seus Evangelhos, o teólogo cairá em ilogismos tais que farão o homem duvidar da Justiça de Deus, ou achar que está cercado de tantos mistérios, que só lhe servirão para gerar o pavor, a dúvida ou a fé cega, se quiser crer. Mas acabará, no íntimo, achando que Satanás é mais poderoso, pois tem ao seu lado a maioria... Ou então, possuindo um Espírito forte, sorrirá dessas coisas como de histórias para crianças. É o estado mental de muitos que não querem saber de religião, porque acham que isto só serve para ocasionar discussões sem resultado prático, enquanto flui a luta pela vida, com a preocupação pelas coisas materiais, é de maior proveito.

            Infelizmente, as religiões dogmáticas, que negam a lei da reencarnação como processo evolutivo do Espírito, jogaram a maioria dos homens nos braços da dúvida ou da indiferença. Eles não se querem dar ao trabalho de raciocinar sobre sua destinação espiritual, vão à missa de vez em quando, por descargo de consciência, mas declaram-se sem tempo para tratar desses assuntos. Deixam que os padres ou os pastores pensem por eles, porque estudaram tais coisas ... Mas, quando têm uma decepção na vida, tornam-se revoltados contra Deus e contra os homens, porque não podem compreender tanta injustiça na Terra, e alguns morrem com um vazio no coração, por culpa das religiões que lhes não souberam incutir, com lógica, a noção da justiça divina.

            A evolução do Espírito não se processa de maneira simplista ou arbitrária. Só atingem a perfeição os que a conseguem por esforço próprio ou consciente, através de vidas sucessivas na Terra e em outros mundos. Jesus mesmo confessou: “Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco” (João, 10:16) e disse também: “Na casa de meu Pai há muitas moradas.” (João, 14:2)

            Os idiotas são Espíritos de grandes pecadores em outras vidas, que agora se redimem através do sofrimento que purifica, já que não são inteiramente inconscientes.

            A perturbação dos desequilibrados mentais, maior ou menor, conforme o caso, prende-se a culpas velhas ou atuais, como sinal de expiação.




XXI b
‘Apreciando a Paulo’
      comentários em torno
    das Epístolas de S. Paulo
   por Ernani Cabral

Tipografia Kardec - 1958

            Tudo tem uma explicação lógica, dentro do Espiritismo.

            Falando deste modo, não aludimos ao aspecto material do fato, pois bem sabemos que, sob o ponto de vista médico, a loucura ou qualquer outra psicose é um estado patológico, motivada por favores, diversos, como a sífilis, as lesões cerebrais, etc., havendo também as que não acusam causas determinantes de ordem material, pelo menos na aparência, mas que seriam provocadas por fobias, neuroses ou por qualquer outro distúrbio psíquico. Mas queremos referir-nos ao Espírito que anima o físico de um louco qualquer ou de um imbecil; este foi ligado pela justiça divina a um corpo doente, por motivos hereditários ou por outros quaisquer, a fim de que a lei se cumprisse. E quando não há causa material determinante, então a moléstia será exclusivamente da alma, como na maioria das esquizofrenias, mas, de qualquer maneira, o fato se prende ao cumprimento da lei, que é justa. Tanto isto é certo que, nem sempre, a hereditariedade se manifesta, mas somente no corpo cujo Espírito merece tal influência. Há filhos de leprosos que não se tornam portadores do mal de Hansen, enquanto que outros o são. Por quê? A resposta somente pode ser dada admitindo-se a lei da reencarnação, cujo mecanismo se processa, como tudo que vem de Deus, com absoluta perfeição, com inteira justiça, atendendo-se ao Espírito, de preferência, pois que a matéria vive em função da alma, é mera roupagem desta, substituída nas vidas sucessivas, e tanto mais sadia será quanto o for o Espírito que a anima. Os romanos já diziam: mens sana in corporo sano, o que é uma verdade.

            Ao fazermos aquela afirmativa sobre os filhos dos hansenianos, não desconhecíamos a teoria que declara não ser a lepra moléstia hereditária, e que os descendentes de leprosos, quando afastados dos pais, logo após o nascimento, não contraem a morfeia.

            Mas a prática nos preventórios vem demonstrando que nem sempre é assim. A maioria dos filhos de tais doentes, quando afastada de seus genitores, logo após o nascimento, não contrai o terrível mal, bem o sabemos. Algumas crianças porém, às vezes com poucos anos e outras já púberes, criadas nos preventórios desde os primeiros dias de vida, aparecem atacadas do mal de Hansen, de um momento para outro, inexplicavelmente, e logo são levadas para os leprosários, onde às vezes não têm cura!

            Mas, por que tanto sofrimento apenas para algumas criaturas? Qual a religião que explica isto com lógica, senão o Espiritismo, que reconhece a justiça divina operando através da lei da reencarnação, dando “a cada um segundo as suas obras”?

            Todavia, dirão, que proveito tirará o Espírito de uma criança dessas, se não se lembra de seu passado, se não poderá reconhecer a justiça de Deus?

            Voltando ao plano invisível, é dado ao Espírito, geralmente, a lembrança de suas vidas pregressas. Então, ele compreenderá porque sofreu tanto. Se se recordasse, já neste mundo, da causa de seus males, isto viria agravar ainda mais os seus sofrimentos atuais, com a recordação de um passado delituoso.

            Portanto, o esquecimento, longe de ser um mal, é uma bênção. Mesmo porque o Espiritismo lhe explicará ainda aqui, se quiser compreender através de tais ensinamentos, que tudo tem sua razão de ser, restando ao nosso irmão leproso resignar-se ante seu destino, pois que tem a eternidade na frente, e algum dia será muito feliz. Além disto, tal moléstia, hoje em dia, em muitos casos, tem cura.

            Não fomos criados para o sofrimento, mas para a felicidade eterna. O sofrimento é transitório, enquanto existirem as imperfeições, e é o remédio de Deus para a purificação do Espírito. Algum dia bendiremos os padecimentos, quando atingirmos a perfeição e quando tivermos séculos sem fim de felicidade à nossa frente. Então compreenderemos que Deus é bom, como disse Jesus (Mateus, 19:17). Mas Ele quer que alcancemos a felicidade, merecidamente, isto é, por nossos próprios esforços em busca da perfeição, certos de que nosso sofrimento, algum dia, terá fim.

            Aquele que crê deve confiar no Senhor e convencer-se de que o Pai Celestial a ninguém desampara. Ele quer, como disse Paulo, “que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade.”       

            A vida eterna já é um consolo para quem nela acredita. Ao demais, os grandes sofrimentos, quase sempre, são sinal do fim das provações neste mundo, e só são dados aos Espíritos fortes. Mas é preciso ter fé, resignação e confiança em Deus, para suportar a cruz, indispensável ao progresso espiritual e à felicidade futura.

            Lembremo-nos da lição do Cristo de Deus:

            “Se alguém quiser vir por mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me.” (Marcos, 8:34)

            No final dos versículos ora comentados, da Primeira Epístola a Timóteo, Paulo afirmou:

            “Há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus-Cristo homem.”

            Esta passagem é a confirmação da inexistência do dogma da Santíssima Trindade, cujos comentários fizemos no XVI artigo desta série.

            Paulo, na Epístola aos Filipenses (2:6), disse ainda com clareza que Jesus “não teve por usurpação ser igual a Deus”. Ele é o Mediador entre Deus e os homens, como ora reitera, o protetor e o governador de nosso planeta, conforme bem diz a “Revelação da Revelação» de J. B. Roustaing. Ninguém irá ao Pai senão por seu intermédio, isto é, senão através de seus ensinamentos, que são “espírito e vida” e cuja síntese é o amor.

            Mas Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios, baseando-se sempre na Boa Nova do Cristo, desdobrou-a com a clareza e com a sinceridade, que defluem de seu Espírito de escol, para que ela se tornasse sempre viva, sempre oportuna, sempre presente à nossa indignidade e às nossas imperfeições, que clamarão eternamente por aquele roteiro de luz, a fim de que possamos ser desviados das trevas do erro e da ignorância, compreendendo a justiça de Deus, através do conhecimento da verdade, fonte da libertação eterna.








sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Finados


Finados
Editorial
Reformador (FEB) Novembro 1978


            Desde as mais remotas civilizações, o homem se dobra reverente ante o mistério dos sepulcros, para cultuar os seus mortos. Em face dos esquifes fechados, deixa escorrer o pranto sentido das suas saudades, enquanto guarda no coração o difuso pavor dos enigmas do desconhecido. Nem sempre, porém, é o amor que inspira o preito aos que partiram. Não foi, decerto, a piedade que levou Artemísia a erguer a Mausolo, rei da Cária, monumento tão faustoso que se tornou uma das maravilhas do mundo antigo. Nem foi a devoção sincera e humilde que pagou a Miguel Ângelo para projetar e construir os admiráveis túmulos dos Médicis. Mas a Grande Pirâmide de Gizé, mandada erigir por Quéops, filho de Snefru, com seus cento e quarenta e seis metros de altura, fala, no silêncio da sua linguagem de pedra, da solene certeza da vida eterna.

            Meio às mais contrastantes demonstrações de carinho e de vaidade, os cemitérios do mundo inteiro guardam desde as mais singelas covas rasas, das multidões de anônimos, até as suntuosas tumbas dos abastados e dos vencedores. Entretanto, nem os vilões nem os heróis, nem os criminosos nem os santos, habitam essas brancas cidades consagradas à morte. As sepulturas não conseguem reter o Espírito imortal que, liberto das constrições do corpo físico, ressurge, na glória das suas vestes perispiríticas, para novo ciclo de existência, em dimensão maior, mais vivo do que nunca, com os seus sentidos mais aguçados e com muito maior capacidade de pensar e de agir, de gozar e de sofrer.

            Perante o triunfo da vida, que se afirma vitoriosa para além da decomposição das vísceras abandonadas, soa sem sentido a lamentação das carpideiras e restam inúteis as cerimônias do luto exterior, convencional e vazio. Átropos, a Parca fatal, não tem, na verdade, o poder de cortar o fio da vida humana, porque o falecimento do corpo carnal é tão-só o rompimento do casulo da alma, puído e imprestável, substituível por outro, novo, embora igualmente temporário. De encarnação em encarnação, e de desencarnação em desencarnação, o Espírito vai realizando as suas experiências evolucionárias, na sua longa trajetória para a angelitude, meta de perfeição e de felicidade que todos consciente ou inconscientemente buscam. Por isso, não é raro de ver-se, aqui e ali, quem cultue a si mesmo, na imagem e na lembrança de um venerado antepassado ou de outro morto ilustre.

            Abrindo janelas novas ao entendimento humano e soprando com vigor milenares cinzas de ignorância, o Espiritismo trouxe aos homens da Terra não somente a mensagem consoladora da imortalidade, mas a da comunicação permanente entre os habitantes dos diversos planos da vida planetária. Com isso, ampliaram-se e melhoram incessantemente as oportunidades e as condições para esse tipo de intercâmbio, cada vez mais franco e decisivo, em benefício de toda a Humanidade.

            Agora, são os próprios mortos redivivos que vêm dizer e repetir aos vivos da carne, aos seus irmãos ainda encarnados, que realmente ninguém morre, que a morte é simples transferência de plano, provocada pelo falecimento de um corpo físico provisório e substituível, e que, além e acima dos cadáveres e dos sepulcros, a vida palpita, radiosa e sublime, invencível e sem fim...

            Finados! - quem são eles? Não existem. Não há finados, porque tudo o que realmente existe é vida, e vida em abundância, no Espírito de Deus que, como afirmam sabiamente as Escrituras, não é Deus de mortos, mas de vivos!

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Do Blog: No marcador 'Finados' , na listagem de 'Temas' à sua direita, você encontrará mais 17 artigos sobre o mesmo assunto.


"O Estranho destino de Conan Doyle ..."


‘Estranho destino
de Conan Doyle
levou-o às fronteiras do Invisível’
P. Esser
Reformador (FEB) Novembro de 1958

I

O Personagem Sherlock Holmes

            Uma nova edição de sua obra acaba de aumentar o número dos admiradores de Conan Doyle. A fim de mais aproximar o Autor do seu público, a biografia do pai de Sherlock Holmes acaba também de ser publicada. A tradução inteligente e cuidada de André Algarron - o diretor dessa coleção - torna apaixonante a leitura do trabalho: é Sir Artur quem se ergue vivo diante de nós.

            No primeiro capítulo aparece ele criancinha, quando uma admirável mãe, porém maníaca de heraldismo, o faz brasonar os escudos dos diversos ramos de sua família, comunicando-lhe o longínquo parentesco com Walter Scott... “Ivanhoé” era, aliás, o livro de cabeceira desse rapazinho extraordinariamente dotado para as contendas com seus camaradas, e das quais voltava coberto de lama e, muitas vezes, vencedor.

Aluno dos Jesuítas

            A personalidade do menino devia afirmar-se no célebre colégio dos Jesuítas de Stonyhurst, onde reinava uma disciplina férrea e onde os satisfatórios resultados escolares eram recompensados por ceias com música... Se os bons padres usavam largamente da régua de borracha que duplicava o volume das mãos, davam também em abundância, nos dias de grande festa, o Porto e o “cherry”. Natação, “cricket”,  futebol, “hockey” e patinação no gelo tornaram--se os preferidos do jovem Artur, que aprendeu também “com os bons padres” a tornar-se um britânico exemplar. Mas foi igualmente um bom aluno.

            Isto permitiu-lhe, depois dos exames finais de brilhantes estudos, passar um ano no estrangeiro, no mais célebre colégio de jesuítas da Europa, em Teldikirch, na Áustria. Foi um ano de esporte nas montanhas de Arlberg, em companhia dos filhos das melhores famílias da dupla monarquia.

            Mas era necessário escolher uma carreira. Artur optou pela Medicina. Foram anos de estudos penosos, porque ele consagrava a metade de seu tempo a funções mais ou menos lucrativas de assistente médico. Isto, a fim de aliviar a família. Os estudos, aliás, não fizeram com que ele abandonasse o esporte. Revelou-se, com efeito, um “boxeur” de primeira categoria e um valente jogador de futebol.

            Depois de uma poderosa tentativa de sociedade com um médico que fizera de sua profissão uma indústria, Artur Conan Doyle instalou-se em Portsmouth, subúrbio de Southsea. Alguns dias mais tarde, escrevia à sua mãe: “Ainda não apareceram doentes! Mas o número de pessoas que param e lEem a minha placa é considerável!” E os primeiros clientes penetraram no gabinete do novo esculápio. Sua mãe mandou--lhe o irmão mais moço, Innes, de dez anos de idade, que, vestido como um elegante porteiro de hotel, abria a porta. “Comendo pão, escreve um biógrafo, carne de conserva e “bacon” cozido num bico de gás numa peça do fundo, eles viveram regiamente com um “shilling” por dia.” E pouco a pouco os doentes foram tomando o caminho da casa do jovem doutor.

Aparecimento de Sherlock Holmes

            A 6 de Agosto de 1885 Artur Conan Doyle desposava Louise Hawkins, aquela a que ele chamaria ternamente “Tonie” e que devia permanecer, até a morte dela, a sua confidente, apesar da tormenta sentimental que devia assinalar uma outra etapa de sua existência. Uma outra data seria capital na existência do jovem médico de Portsmouth: o aparecimento, no “Anuário de Noel de Beeton”, para 1887, de sua primeira novela, “A Study in Scarlet” (Estudo em Vermelho), trabalho no qual Sherlock Holmes fazia sua entrada na literatura inglesa. Fora escrito entre os toques de campainha dos clientes...

            Antes mesmo que o “Estudo em Vermelho” fosse publicado, Conan Doyle havia iniciado e quase terminado seu primeiro romance histórico, esse “Micah Clarke” que tanto deveria cooperar para a sua glória. O trabalho iria viajar por diversas casas editoras antes de ser finalmente aceito. O êxito devia ser considerável e o Autor, sem mais esperar, reuniu-se a essa “Companhia Branca”, onde seus instintos pessoais de honra cavalheiresca tiveram livre curso.

            Mas o horizonte de Southsea se tinha tornado bastante estreito para aquele a quem o mundo de letras britânico voltava as vistas. Num dia de Dezembro de 1890, Conan Doyle abandonava sua clientela e partia para Viena com sua mulher. O pretexto da viagem era ir estudar a medicina do olho para poder instalar-se a seguir em Londres como oftalmologista. Catorze meses mais tarde, o novo oculista punha-se à disposição da clientela londrina. Isto se passava na mês de Março de 1891. Como nem um só cliente se apresentou à sua porta, ele disse um definitivo adeus à Medicina, no mês de Junho. A partir de então iria consagrar-se exclusivamente à arte de escrever.

            No outono, sua conta de banco aumentara consideravelmente e, dessa vez, ele se tornara um homem livre.

            A personagem Sherlock Holmes fizera a glória de Conan Doyle. Mas este já estava farto desse detetive e escreveu à sua mãe dizendo que pensava separar-se dele. Recebeu uma resposta horrorizada da velha dama, que nutria grande ternura por Holmes: - “Você não o matará - protestou. - Você não pode matá-lo! Não deve fazê-lo.” Holmes foi salvo provisoriamente. Ai dele! A 6 de Abril de 1893, Conan Doyle, mais farto ainda, escrevia novamente à sua mãe participando que se livrara definitivamente de sua personagem, confiando esse cuidado ao professor Moriarty... Devia receber uma chuva de cartas de injúrias por esse crime e, em Londres, os jovens iam ao seu escritório com um crepe negro nos chapéus, em sinal de luto por Sherlock Holmes.

II

A derradeira viagem da vida de um grande Escritor


            Essa tempestade não emocionou Conan Doyle, que devia, aliás, mais tarde, ser levado a ressuscitar seu herói a fim de satisfazer ao desejo de um editor.

            Desde a infância, sempre desejara ver uma guerra de perto. Achava-se no Egito com sua mulher, em 1895, quando Kitchener recebeu a ordem de reocupar o Sudão. Incontinenti, solicitou e obteve a autorização para representar a “Westminster Gazette” como correspondente benévolo temporário. Subiu até ao “front” em dorso de camelo, mas a ofensiva havia sido retardada de dois meses e foi obrigado a regressar à Inglaterra.

            No momento dramático da Guerra dos Boers, Conan Doyle pensou em alistar-se. Foi impedido pela intervenção materna. No entanto, dirigiu-se aos ministros, aos serviços do Exército. Todos lhe responderam que era velho demais para ser soldado e que não se dava patente a um civil. Já que o não queriam para combatente, conseguiu partir como médico num corpo sanitário privado, do Hospital Langman. Este devia estabelecer-se perto de Bloemfontein, a antiga capital do Estado Livre de Orange, no momento preciso em que ali se alastrava uma terrível epidemia. Mas seu nome não podia ser revelado! Quando foi suspensa a censura, um jornalista londrino, que era correspondente de guerra, escreveu: “O Dr. Conan Doyle trabalhava como um cavalo, até que foi obrigado a galgar o cume de uma Kopie a fim de respirar um pouco de ar puro, de tal modo estava saturado de relentos da tifóide. Ele pertence à raça dos homens que fazem da Inglaterra uma grande nação.”

            Mas Conan Doyle ainda encontrava tempo de tomar notas para um artigo famoso e também profético, intitulado: “Algumas lições militares da guerra.” Quando esse artigo foi publicado pelo “Cornhill Magazine”, a missão do hospital chegava a seu termo. E a guerra também. Depois de haver fumado seu cachimbo na poltrona do Presidente Kruger e tagarelado com os boers “que, escreveu ele, não são tipos ruins, mas de uma ignorância que ultrapassa o imaginável”, Conan Doyle retornou à Inglaterra.

Um espírita convencido

            Quando começou a Grande Guerra, Conan Doyle quis servir como médico, mas o ministro recusou seu oferecimento. Continuaria, pois, a escrever e, a pedido do Governo, fazia artigos e redigia conferências. Ia ao “front” onde era convidado por grandes chefes militares e foi até visto no “front” italiano onde, uma vez, estourou uma granada ao seu lado. Mergulhado na ação, sentia uma nova mocidade.

            Sempre profeta, diz-lhe Lóide George, em Abril de 1917, quando acabava de rebentar a revolução russa: “A revolução durará diversos anos e terminará por um Napoleão.”

            Em 1919, o Governo estava prestes a fazer dele um de seus pares. Mas para isto era preciso que Conan Doyle abjurasse o Espiritismo, ao qual se ligara depois de haver abandonado o Catolicismo. Isto sucedera em princípios de 1887, quando o General Dayson lhe falou pela primeira vez em Espiritismo. Desde então lera muito, fizera experiências por conta própria. E finalmente se convenceu de que “forças” existiam, supranormais. E, em Junho de 1918, saíra a sua profissão de fé: “A Nova Revelação” (*), livro ao qual havia dado o melhor de si mesmo.

            (*) Obra publicada, em tradução portuguesa, pela Federação Espírita Brasileira.

            Havendo terminado seus seis volumes sobre a História da Guerra, para a qual não aceitou retribuição alguma, consagrou, desde então, todo o seu tempo, toda a sua energia e todo o seu talento à causa do Espiritismo. Foi por amor a essa causa que recusou tornar-se Lorde.

            Durante onze anos levou através do mundo o combate que escolhera. Por toda a parte, consideráveis multidões assistiam às suas conferências, durante as quais desenvolvia os artigos de seu credo: a sobrevivência, a comunhão com os mortos e o progresso eterno.

            A derradeira viagem de sua vida foi para ir do seu retiro até Londres, a fim de pedir ao Ministro do Interior que sustasse a lei que preparava com o fito de ordenar perseguições contra os médiuns espíritas.

            Os médicos o tinham dissuadido de fazer essa viagem. Como receavam, estava acima de suas forças.

            Quando Sir Artur Conan Doyle tornou a seu lar, não mais abandonou o quarto. Às oito horas da manhã de 7 de Julho de 1930, sentado na sua grande poltrona, exalava o último suspiro, após ter apertado mais uma vez, numa suprema despedida, a mão que não cessava de segurar, a mão de Jean - Jean Leckie, o grande amor de sua vida, que ele desposou depois do desaparecimento de sua primeira mulher, de “Tonie”, que foi a sua melhor amiga.  (Ext. do "Correio da Manhã" de 5 e 6-9-58.)