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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Quem com ferro fere...

 


Quem com ferro fere...

por Cimba                     Reformador (FEB) 16 Março 1924

             Já se lhe vinha aproximando o termo de penosa existência. E ele via, com satisfação, aparecer o crepúsculo de uma vida de enfermidade, de pobreza, de dores físicas e morais.

            Seria o termo de sua lacrimosa peregrinação pela Terra, por onde ele passara com um corpo doente e fraco, constantemente acossado pelas inclemências da natura pela ingratidão dos homens.

            Amara muito e sofrera muito !.. Tivera uma companheira, que era toda a felicidade de sua vida e ela o traíra. Tivera um amigo em quem depositava toda a confiança e esse fora o desencaminhador de seu lar.

            Dentro em pouco ficara só. Sentia o deserto dentro de sua casa vazia e do seu coração enlutado.

            E assim foram avançando os anos, sem que a morte o viesse arrancar da sua solidão, da sua tristeza, do seu opróbrio, de suas enfermidades.

            - Porque, Senhor- apostrofava ele - porque a mim me deste esta existência de doenças, de dores e de vergonha, enquanto outros vivem na opulência, na grandeza e na felicidade?

            Porque, Senhor, vivo eu triste e só, enquanto outros passam a vida em tumultuosa companhia?

            Porque sou obrigado a carregar este corpo alquebrado, enfermo e feio?

            Nunca fiz o mal, tinha o coração repleto de afetos e ternuras e fui vilmente, indignamente, enganado por aqueles a quem mais amei?

            Que justiça é essa, Senhor?

            E uma voz, saída não sabia ele de onde, respondeu-lhe:

            - Deus é justo. Sofres porque o mereces.

            Queres saber a causa das tuas dores? Olha !..

            E o velho, espantado, reclinou a fronte.

            Dir-se-ia depois que sonhava !..

 *

             O Justino era uma dessas criaturas para quem fora pródiga a natureza: inteligente, forte e bonito. Um rapagão! - como se dizia.

            Por maior ventura, nascera de paparicos e que concentravam nele todas as afeições que poderiam repartir por outros filhos, porque ele era o único do casal.

            O menino cresceu cheio de grandes desvelos e de grandes vontades.

            Afortunados, os seus progenitores podiam satisfazer-lhe os desejos, por mais absurdos que fossem.

            Deram-lhe bons mestres e bons livros. Procuraram fazer dele um sábio, mas descuraram de fazer dele um homem!

            Habituado a ver satisfeitos todos os seus caprichos, rodeado de pessoas humildes e submissas às suas ordens, porque eram infelizes necessitados, o Justino foi ficando voluntarioso, orgulhoso e mau.

            Já rapaz, sem saber o que era obediência, nem respeito, nem ordem, nem moral, entregou-se aos vícios de todas as espécies.

            Era uma lástima a maneira por que prodigalizava os bens que herdara do pai e da natureza.

            A fortuna deixava-a todas as noites nas mesas de jogo; os dotes físicos ía os malbaratando nas noites perdidas, nas libações prolongadas, nos lugares mal afamados.

            Simpático, instruído, loquaz, insinuava-se nos lares, cativava a simpatia dos de casa, para levar-lhes a infelicidade e a desonra. 

*

             Conhecera o Justino, num bairro afastado e pitoresco da cidade, uma pequena família, que vivia feliz e pacificamente, longe das paixões mundanas, e que só conhecia do mundo o lado bom. Dir-se-ia que ali nunca entrara a sombra de um pesar, vivendo os cônjuges na mais perfeita harmonia, sem que houvesse mesmo as contrariedades e rusgas, inda que pequenas, tão comuns na vida entre casados.

            Mas a infelicidade os estava a espreitar e os espreitava pelos olhos do Justino, que descobrira a formosura da dona da casa, numa das vezes que ela assomara, despretenciosamente à janela.

            E, lá ia ele às tardes apertar o cerco, dominador acostumado à vitória, convencido dos seus predicados, seguro do seu triunfo.

            E se travou de relações com o bom e honesto cavalheiro que era o venturoso dono da casa. E penetrou os umbrais daquela morada, onde sempre vivera honesta e feliz uma família, trazendo ele nos lábios o sorriso mendaz (falso) do amigo e nos dentes o veneno (ameaçador) minacíssimo da serpente.

            Com suas maneiras de salão, seus hábitos de homem gigante, suas conversas de rapaz instruído, sua plástica física, seu desembaraço, sua jovialidade, para logo conquistou todas as simpatias.

            E como havia conquistado as simpatias do marido também conquistou as da consorte.

            O dono da casa cumulou-o de gentilezas. Abriu-lhe completamente as portas do lar; convidou-o para compadre; era ele o seu verdadeiro amigo, o seu íntimo amigo...

            O Justino entrava ali a qualquer hora, porque viam nele um homem de bem.

            Mas, em pouco, tudo mudou naquele remansoso tugúrio (casebre)!

            Um amigo do Justino aconselhou-o a que fosse procurar aventuras em outro lugar. Deixasse estar quieto quem vivia sossegado.

            Não lhe faltavam a ele, moço e rico, onde só divertir, sem prejuízo de ninguém.

            E o Justino, dando de ombros, respondia:

            - Ora, é o que se leva deste mundo!  

            - Sim, é o que se leva - retrucava o outro - mas triste daquele que leva tal bagagem!

            - A única bagagem que nós levamos - revidava o Justino - é o corpo para a sepultura, quando ele já não presta para nada. E Idiota seria eu se não aproveitasse a saúde, a juventude e a riqueza, em gozar, em gozar o mais que puder, em gozar desmedidamente, valendo-me de todos os tolos e de todas as tolas, que vou encontrando e que são em grande quantidade. 

            O amigo insistia sobre as responsabilidades do homem, sobre a vida futura, sobre as penas que nos esperam... sobre a infalível justiça de Deus!

            E o Justino, numa casquinada (gargalhada):

            - A coisa única imortal que existe é a ingenuidade das criaturas como tu.

 *

             Na casa, outrora feliz, parecia reinar um ambiente de dores e remorsos.

            Finava-se lentamente a dona da casa.

            Nunca mais sorrira, nunca mais a viram como dantes, sem preocupações, nem tristezas, percorrer as aleias do jardim, em busca das flores com que se adornava garridamente (exuberante) para receber o marido.

            Nunca mais a viram cantar a meia voz, dulcissimamente, quando embalava os filhos. A antiga alegria havia desaparecido. Desaparecera, na companheira daquele lar, com a alegria, o apetite e o sono.

            Os médicos confessavam-se incapazes de debelar o mal.

            E, certa manhã, a pobre doente acordou sobressaltada, ajoelhou-se aos pés do marido, beijou-os, suplicou-lhe perdão em lágrimas, sem que ele pudesse compreender o sentido daquelas palavras, caiu para trás, numa convulsão, e morreu.

            E o Justino?

            O Justino já havia abandonado a amizade e o amigo aos primeiros sintomas da enfermidade da mulher.

            Na hora da dor não o encontraram.

            Ele não estava ali para justificar o prolóquio: - amicus certus in re incerta cernitur.  (O amigo certo se manifesta na ocasião incerta).

 *

             E depois... e depois toca a esperdiçar (= desperdiçar) a vida e a fortuna.

            Encheu os pais de desgostos e os pais tarde compreenderam que deixaram de dar ao filho o principal, o mais importante de todos os ensinamentos - os ensinamentos da Moral.

            Neste planeta das coisas finitas, em que tudo passa, em que tudo acaba, em breve o dinheiro e a saúde do Justino se esgotaram.

            Morreram-lhe os pais, afastaram-se os amigos, fugiu-lhe a mocidade, desbotaram-se lhe as cores e a ancianidade (velhice) prematura desenhou-se lhe na fronte abatida.

            A debilidade física se vieram juntar os horrores da miséria.

            O janota de há alguns anos envergou as roupagens do mendigo.

            Então, começaram a toma-lo visões desesperadoras !..

            Depois, levaram-no para um hospital.

            Foi impressionante a sua agonia. Cobria os olhos com o lençol e pedia que lhe afastassem de perto aquelas figuras que o vinham condenar.

            Suas feições descompostas apresentavam aspecto amedrontador.

            - Sai! Sai! - dizia em gritos... E com as mãos como que procurava afugentar os fantasmas que o perseguiam.

            Afinal, arquejante, caía de joelhos a implorar perdão. E assim, apavorado sempre por espectros invisíveis, a clamar misericórdia, arrancando os cabelos, em choros sufocantes, se foi minando, consumindo, até que expirou...

 *

             O ancião abriu os olhos. Estaria dormindo? Que história era aquela?

            Como se respondessem à pergunta que ele fizera em solilóquio, disseram lhe:

            - É a tua! Foi a tua vida passada.

            É a histeria da tua última existência,

            Desbarataste o teu vigor, vieste fraco.

            Traíste, foste traído.

            No espaço continuaste a suplicar o perdão, com que fechaste os lábios e os olhos.

            Deus, bondoso, te perdoou... E tu voltaste de novo ao teatro de tuas iniquidades para resgatar as faltas cometidas.

            - E quem és tu?

            - Um amigo que te falava sempre na imortalidade e na justiça de Deus!

            - E agora?

            - Agora agradece ao Criador!

 *

             Uma luz imensa começou a fazer-se no espírito do velho.

            Era a luz de uma nova aurora. Era o clarão da liberdade!  


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