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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Kardec e Roustaing

 

Kardec e Roustaing

por M. Quintão       Reformador (FEB) 1º Julho 1917

             Por agora, uma vez lançado aos domínios da publicidade o controvertido problema, não há como fugir aos óbices que suscita, um pouco por toda a parte, a sua configuração filosófica, contendendo com a interpretação de muitos, estudiosos confrades, a quem, no perquiri-lo, gostosamente atribuímos o desejo de acertar.

            Aliás, esse prurido de dúvidas e objeções que a outrem poderia parecer intempestivo e irritante, para nós serve de realçar a sua oportunidade, como premissa frutuosa de maturadas convicções. 

            E uma vez colocada a lide no terreno elevado dos princípios, revestida desse cunho de serenidade que a Doutrina só por só preceitua, motivo de satisfação é também, para nós, respigar no assunto.

            Já o Diretor desta revista acudiu a tempo com a transcrição textual (1) do próprio Allan Kardec, respeito à tarefa evangélica do próprio Roustaing.

                 (1) Reformador nº 11 – pag. 191

             Com a altitude do seu caráter e com aquela sobriedade de palavras que, em toda a sua obra de síntese admirável, não exclui a profunda visão filosófica, o venerando codificador do Espiritismo declara que muitas questões houve de relegar à segunda linha de conta, por lhe parecerem prematuras e susceptíveis de controvérsia. 

            Foi justamente o que nos fez dizer que ele, Kardec, missionário fiel da primeira hora, não quisera sacrificar o todo às partes.

            Esta só consideração é de molde a nos fazer precavidos no rastrear o mestre, cuja envergadura moral e intelectual de missionário, além de uma assistência excepcional do mundo dos espíritos, de antemão lhe assegurava uma previsão, uma sutileza, uma penetração intelectual que estamos longe de atingir.

            Mas daí, dessa precaução e comedimento a uma abstenção sistemática de exegese e comentário, vai um abismo que só grosseiros sofismas não deixariam transpor, uma vez que é da essência mesma da Doutrina a evolução da consciência cimentada no raciocínio.

            Façamos, pois, o nosso estudo consoante o cabedal de que dispomos, mas façamo-lo com humildade, não como quem pretende tudo resolver e a todos convencer, mas como quem sabe, e de sobejo, que a Verdade Absoluta, só pode existir para Deus.  

 *

             O nosso escrito anterior provocou de ‘Um adepto’, da Bahia, algumas considerações que aqui resumimos, para as comentar no intuito do não abusar do agasalho destas colunas.

                Antes de o fazer, porém, permita o nosso irmão baiano lhe estranhemos o anonimato.

                Nós outros, espiritistas e estudantes do Evangelho em espírito e verdade, somos chamados - e agora mais que nunca - a estabelecer uma nova ordem de relação entre os homens; precisamos aproximar-nos para nos compreendermos, e precisamos compreender-nos para nos amarmos. Nem se diga, na espécie, que a personalidade é um acidente, quando a ideia prepondera. Não.

                A personalidade, na Doutrina, é a responsabilidade definida, é o fator consciente do coletivismo.

            Se não há anonimato entre os espíritos, se o personismo é inconfundível entre eles, como admiti-lo entre os encarnados apercebidos dessa lei?

            Isto posto, abordemos a primeira objeção do nosso missivista:

            Ele nos pergunta se os prismas da Verdade Divina, que afirmamos una e íntegra quanto variável ao infinito, podem contradizer-se tão salientemente como no caso da reencarnação.

            Subsiste, por conseguinte, para o interlocutor, a contradição que ab initio infirmamos.  

            Entretanto, nos parece que a, para nós, aparente contradição, não incide na reencarnação e, sim, na encarnação.

            Aquele, é uma lei imprescritível para a humanidade terrena, tanto em Kardec como em Roustaing.

            Para este, a encarnação é a consequência de uma falta (simbolismo presumível do pecado original) e essa falta pode ocorrer em qualquer grau da escala espiritual, no ascenso do espírito para Deus e daí, a encarnação em mundos correspondentes, mais ou menos expiatórios.

            Para aquele, a encarnação é consubstancial a todo o espírito criado.

            Sê-lo-á?

            Nós cremos ter deixado patente o nosso pensamento no artigo anterior: a revelação de Roustaing abrange, a nosso ver, um plano universal, que alteia a onipotência Divina; já a revelação de Kardec adstringe-se à esfera planetária e nela é integra e completa, também.

            Contradição haveria, sim, se em Kardec apreendêssemos que a biogênese terrena era extensiva a todo o universo, que a co-materialidade do ser era uma lei universal.

            E, no entanto, o que do seu ensino se infere é que há mundos materiais, mundos fluídicos, mundo etéreos, por gradações de uma gama infinita.  

            Acha Um adepto que Roustaing deveria ter explicado e desenvolvido o que Kardec deixou de aclarar.  

            A parte a gratuidade da exigência, ou exigência por exigência, fora lícito lamentar que Kardec não recebesse formal explicação da origem e fins da existência dos animais.

            Aliás, bem ao contrário do que supõe o nosso missivista, em Roustaing muito se alhana (aclara) esse problema.

            É até um ponto, esse, magistralmente tratado nessa obra, que, repetimos, se por vezes nos parece sibilina (misteriosa), não deixa de, no seu conjunto majestoso, iluminar a nossa inteligência e afeiçoa-la a mais altos descortinos. 

            A ilação (conclusão) de responsabilidade concomitante à encarnação dos animais não se nos afigura colher no caso:

primo – porque, não havendo consciência definida, não pode haver responsabilidade;

secundo – porque Roustaing não inculca a encarnação animal, como penalidade do “princípio inteligente”.

             Quanto a preferências por esta ou aquela teoria, o nosso missivista tem resposta no mesmo artigo nosso, que de tema lhe valeu, pois nele dissemos que estas questões que dizem de perto com a consciência do crente, com o que o espírito tem de mais incoercível, só o foro íntimo pode decidir.

            A corporeidade fluídica do Cristo, problema que Um adepto considera simplesmente formidável, está para nós abimo pectore (do fundo do meu coração) resolvido, considerando a noção possível de materialidade, de rosto com os fenômenos mediúnicos.

            Para nós, a agregação molecular não é fenômeno arbitrário: da simples maneira ao homo sapiens dos naturalistas materialistas, ela obedece a uma inteligência extrínseca, e a sua morfologia não significa mais que evolução do princípio que a manipula e vitaliza. (2)

             (2) Veja-se a última obra de Sir Oliver Lodge, ‘Raymond’, or ‘Life and Death’.

             Depois das materializações de Katie King com Crookes; das aparições de Villa Carmen, com Richet; da passagem de matéria através da matéria, com Zöllner: fora pueril prejulgar possibilidades ou estabelecer limites nesses arcanos.

            Não é com isto dizer que tenhamos resolvido o assunto, mas que o não julgarmos contrário à ordem natura, partindo por indução das leis conhecidas para as desconhecidas.

            Não há, de fato, na corporeidade fluídica, ab-rogação de leis da natureza; não há milagre: o que há é fenômeno, cuja natureza intrínseca desconhecemos, como, de resto, desconhecemos substancialmente a eletricidade; a luz, o calor, o éter, o átomo, tudo.

            Aos estudiosos de boa vontade, portanto, sem exorbitância daquela zona peculiar de cada qual, a que Paul Gibier denominava zona lúcida, recomendamos o tema, subordinado às considerações seguintes:

            Os Evangelhos são ou não são verdadeiros: se são verdadeiros o Cristo não podia, agrilhoado a um corpo material, como o nosso, realizar os prodígios do seu apostolado.

            Nenhum homem, nenhum espírito encarnado, nenhum mago, nenhum faquir, deu, jamais, testemunho de um tal poder.

            Se os Evangelhos são apócrifos; se o Cristo foi um simples filósofo milenarmente distanciado do seu tempo, então, não há porque os estudarmos, em flagrante contradição com a Revelação e o subsidiário ensino dos espíritos, que nele apresentam como DIVINO MODELO e recomendam a sua palavra como a palavra de salvação em todos e para todos os tempos.

            Entre a divinização dogmática e absurda da teologia católica que a Doutrina Espírita infirma e combate e a humanização pura e simples que a Razão não explica, ficamos no meio termo da Revelação Roustainguista, que nos inculca o Salvador investido de prerrogativas excepcionais em relação à humanidade terrena, como espírito puro e não falido, mas, em todo caso dentro da lei geral do mérito e esforço próprios, não relativamente ao mundículo Terra, mas relativamente à Cosmogonia Universal.

            Nem Deus, nem homem, portanto, mas espírito que atingiu a perfeição moral absoluta e, como tal, reflete o pensamento divino, preposto à criação do nosso mundo e à graduação de sua humanidade no plano geral do progresso indefinido.

            É forte a asserção? Convimos. Mas, sobre o ser tem a vantagem de estar de acordo com a tradição, que não é coisa de somenos no cômputo da nossa crença.

            E muitas outras coisas eu vos diria se estivésseis em estado de as compreender(3) Essas coisas aí estão, hoje, avivadas por seus mensageiros.

             (3) João, Cap. XVI. v, 12.

             Estudá-las é um dever. E, quando as não compreendamos, nem por isso devemos desesperar delas, porque para nós outros, espíritos em prova, chumbados a um mundo de obscuridades, o seu rumor nos chega com a convicção de que Eternidade e Providência são termos equivalentes.


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