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domingo, 27 de dezembro de 2020

Conceito de liberdade

 

Conceito de Liberdade  

por Indalício Mendes    Reformador (FEB) Agosto 1963

             A maior aspiração do homem é a liberdade. Todos lutam por ela, todos se sacrificam até à morte, para alcançar o bem que é ser livre. Todavia, imprescindível se torna compreender que a liberdade é sempre relativa, sem o que não será útil. Quando transpõe o limite da relatividade, torna-se perniciosa e constitui perigo.

            A Natureza nos ensina não existir liberdade absoluta. A prudência, o senso de oportunidade, a luta pela sobrevivência, a educação e outras formas de preparação do homem para resistir à destruição que o cerca, constituem elementos probatórios da relatividade da liberdade.

            Atribui-se a Robespierre, aquele carniceiro da Revolução francesa, esta frase monumental: “0 direito de um indivíduo acaba onde começa o direito de outro.” Não nos parece muito viável que tão luminoso conceito haja saído de uma cerebração violenta e doentia como a de Robespierre. Contudo, aceitemo-la como assim fora. Naquela frase se comprime uma verdade extraordinária, que, obedecida, evitaria muitos dos males que afligem a vida humana.

            Tanto a liberdade é condicionada a diferentes conceitos coercitivos, que juridicamente se concedem e reconhecem direitos humanos que valem por uma carta de liberdade, mas ao mesmo se estabelecem deveres, que são formas restritivas dessa mesma liberdade. Ora, assim sendo, é fácil compreender o desarrazoado de certas afirmativas, que propugnam cada vez mais “direitos”, cada vez mais liberdade, como se cada um de nós pudesse fazer impunemente tudo quanto nos venha à cabeça, sem atentar para a coação que semelhante procedimento determinaria a outrem.

            Assim, reconhecemos e aceitamos a normalidade da liberdade condicional, da liberdade que possa ser exercida sem danos para quem quer que seja, tal como no-la ensina a Doutrina Espírita, que nos revela o poder controlador dessa liberdade, poder a que chamamos Lei de Causa e Efeito. Essa lei nos garante a liberdade a que temos direito, mas nos pune pelos excessos que pratiquemos quando supomos que somos exageradamente livres.

            A Lei da Reencarnação nos impõe o cumprimento dos deveres e obrigações - que contraímos quando ultrapassamos o limite da liberdade a que temos direito. Reencarnando, teremos o ensejo de amortizar débitos e reparar erros pretéritos de, enfim, resgatar a nossa legítima liberdade, comprometida pelos excessos que praticamos, invadindo o âmbito da liberdade alheia.

            Recebemos, de geração a geração, a herança dos postulados dogmáticos que em nada favorecem a compreensão que devemos ter da vida nem esclarecem a posição em que nos devemos colocar em face dela. Dizer-se, por exemplo, que “o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus”, parece-nos sacrílego. Primeiro, porque desconhecemos qual seja a imagem de Deus; segundo, porque lhe atribuímos uma forma antropomórfica, a fim de satisfazermos à nossa vaidade, ao orgulho de que sejamos algo de superior no reino animal. Admitamos que sim, mas não nos esqueçamos jamais das lições que recebemos dos nossos chamados “irmãos inferiores”... Eles têm sido até hoje vítimas da nossa “superioridade”. Não obstante termos sido feitos “à imagem e semelhança de Deus”, ainda não evoluímos o suficiente para deixarmos de matar esses “irmãos inferiores”, comendo-lhes as carnes e as vísceras, utilizando-lhes os ossos e o couro, os cascos e os cornos, etc. Em pleno século das luzes, somos de um primitivismo alarmante. Gozamos de volúpia, quando, para festejarmos uma data qualquer, nos reunimos em torno de uma mesa para atacar os despojos de perus, leitões, galinhas, cabritos, faisões ou coisa que os valha. Onde a nossa superioridade, se ainda nos fazemos prisioneiros da animalidade? Onde a nossa grandeza, se ainda nos comprazemos em devorar cadáveres de inocentes animais, dando a esses atos os mais originais requintes de voracidade?

            Por isso, continuamos a ver o Mundo estremecer entre dores e gritos, entre dúvidas e angústias. Não há tranquilidade, não há confiança, não há felicidade real. Tudo é aparência. Sobre a Humanidade inteira descem as nuvens negras do medo. Aqueles que, mais bem orientados, se abrigam em setores de espiritualização, que se iluminam com o Evangelho do Cristo ou tem como bússola uma Doutrina como a espírita, esses poderão suportar melhor as dores do mundo porque compreendem a origem dessas dores, pois sabem porque todos sofremos.

            Sofremos porque não somos livres. Onde há liberdade, não há dor. A dor é uma limitação da liberdade, mas uma limitação benéfica, por educativa. Ninguém pode ser livre sem ser bom, sem dar um pouco de si para o bem de seus semelhantes.

            A Doutrina Espírita ensina ao homem o caminho da liberdade. Todo aquele que se desvencilha dos maus hábitos e pensamentos, que combate o mal e realiza o bem, está no rumo de ser livre. Só o é quem consegue dominar as suas próprias deficiências e inferioridades, quem adquire a humildade esclarecida e renuncia aos orgulhos do mundo, vivendo acima dos preconceitos que ainda hoje contribuem poderosamente para tornar infeliz a Humanidade.

            Tudo que não conduz ao bem retarda a verdadeira liberdade humana. Toda religião só é boa quando assegura ao homem, ainda neste mundo, o bem moral de que ele necessita para enfrentar com coragem, resignação e eficiência o seu destino, entendendo-se por destino, nesta frase, as obrigações cármicas por ele contraídas, às quais terá que atender mais dia, menos dia.

            Portanto, se alguém pretender ser verdadeiramente livre, terá de começar desde agora a luta por essa liberdade. Não combatendo os seus semelhantes, mas combatendo a si mesmo, isto é, os seus pendores para o mal, ao mesmo tempo que estimulando a aspiração do bem-fazer. O livre-arbítrio não foi dado ao homem para que ele faça o que quiser, sem responder pelos erros cometidos. O livre-arbítrio constitui uma faculdade destinada a permitir ao homem o aprendizado da verdadeira ciência de viver.

           Ele aprenderá por si mesmo, de encarnação em encarnação, a regular o uso desse livre-arbítrio, até alcançar a sabedoria da vida.

            Lê-se em “O Livro dos Espíritos” (Lei de Liberdade) que “a liberdade de ação existe desde que a vontade aparece. Nos primeiros tempos da vida a liberdade é quase nula: desenvolve-se e muda de objetivo com as faculdades. A criança, tendo pensamento em relação às necessidades da sua idade, aplica o livre-arbítrio às coisas que lhe são necessárias”.

            Mas é o exercício do livre-arbítrio que educa a vontade, com o correr dos tempos, à custa de vicissitudes e desenganos. Ninguém nasce perfeito e nisso é que reside o valor do aprendizado que o Espírito vem fazer na Terra e em outros mundos-escolas. De qualquer forma, em conclusão, só é realmente livre quem é bom.


sábado, 26 de dezembro de 2020

Teologia e Gramática

 


Teologia e Gramática

por Rodolfo Calligaris     Reformador (FEB) Dezembro 1963

             Ensinam as Teologias de quase todas as religiões cristãs que o destino dos homens considerados maus, isto é, que cometeram faltas graves e não se arrependeram, ou não tiveram tempo de repará-las, é ser condenado às penas do inferno, por toda a eternidade.

            São citados, em apoio dessa doutrina teologal, vários textos das Escrituras Sagradas. como, p. ex., os seguintes:

            “Qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do Sinédrio; e qualquer que disser: Louco, será réu do fogo do inferno.” (Mat., 4:22)

            “E se o teu pé te escandaliza, corta-o; melhor te é entrar na vida eterna coxo, do que, tendo dois pés, ser lançado no fogo do inferno, que nunca jamais se apaga.” (Mar., 9:44)

            “Então dirá também aos que hão de estar à esquerda: Apartei-vos de mim, malditos, para o fogo eterno que está aparelhado para o diabo e para os seus anjos." (Mat, 25:41)

            Há, de fato, aí, referências ao “fogo do inferno, que nunca jamais se apaga”, parecendo que a monstruosa doutrina das penas eternas tenha sido sancionada pelo Cristo.

            Em verdade, porém, as citadas palavras do Mestre não têm o sentido que a Teologia lhes emprestou. E quem vai provar-nos isso é a Gramática.

            A regência, parte da sintaxe que estuda a dependência existente entre os elementos de uma frase, oração ou sentença, nos explica que elas mudam completamente de sentido conforme a posição dos complementos junto aos termos regentes. Assim, “preciso muito de dinheiro” tem significação diversa de “preciso de muito dinheiro”; “só quero dormir” é coisa bem diferente de “quero dormir só”.

            Analogamente, “ser lançado no fogo eterno” não é o mesmo que “ser condenado eternamente ao fogo do inferno”. Faze-la crer, é um sofisma grosseiro que qualquer colegial, com elementares conhecimentos gramaticais, saberá refutar com facilidade.

            O adjetivo “eterno” e a expressão equivalente “que nunca se apaga”, nos textos em análise, como em quaisquer outros que possam ser invocados, sempre se relacionam com fogo, e nunca com pena ou castigo.

            Logo, o que é eterno (ou de duração indefinida) é o processo purgatorial e não a pena de cada indivíduo, em particular.

            Compreende-se: como as almas são criadas incessantemente (e elas são criadas simples e ignorantes, sujeitas, portanto, ao erro), sempre haverá necessidade do fogo das expiações e das provas, para que se purifiquem e se aperfeiçoem, mas que elas possam ser condenadas a suplício eterno, isso é que não!

            Ao contrário, inúmeras são as afirmações contidas tanto no Velho como no Novo Testamento que invalidam, peremptoriamente, a doutrina das penas eternas.

            Entre muitas outras, eis algumas:

             “A ira de Deus dura um momento só, mas a sua benignidade é eterna." (Salmo 29)

            “Eu não quero a morte do ímpio, mas sim que ele se converta e viva." (Ezeq. 33;11)

            “O Senhor não retém a Sua ira para sempre, porque tem prazer na benignidade.” (Miq. 7;18)

            “Deus não enviou Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele." (João, 3:17)

            “Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem a ter conhecimento da verdade.” (Paulo, I Tim., 2:4)

            “O Senhor espera com paciência por amor de vós, não querendo que nenhum pereça, mas que todos se convertam à penitência." (II Pedro, 3:9)

             Talvez se diga que o dogma das penas eternas seja um freio e que, se o homem deixar de dar-lhe crédito, entregar-se-á a todos os excessos e desatinos.

            Puro engano. O temor do castigo é tanto maior quanto mais convicção se tenha quanto à sua aplicabilidade; essa convicção, por sua vez, será tanto mais profunda quanto mais racional a procedência do castigo. Uma penalidade em que não se creia não pode ser um freio, e a eternidade das penas está nesse caso.

            É possível que tal ideia houvesse sido útil em outras épocas; hoje, porém, que as inteligências se acham mais desenvolvidas, só tem servido para gerar a incredulidade, o materialismo e a indiferença religiosa, que são os piores males do século.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Os dois cegos

 

Os dois cegos

José Brígido (Indalício Mendes)

Reformador (FEB) Dezembro 1963

             Satisfeito por haver depositado no Banco mais alguns milhares de cruzeiros ganhos em feliz transação comercial, o Medeiros, depois de passar indiferentemente por mendigos estropiados e mulheres com pequenos filhos famintos, parou diante de um cego, que tocava um violino, a fim de ganhar algo para comer.

            Vários transeuntes se achavam em redor do pobre músico, ouvindo-lhe as melodias que os dedos ágeis faziam nascer das cordas tensas do instrumento. Feliz, Medeiros parou, sorridente, só para olhar. E, depois de ouvir por alguns momentos os sons mágicos do violino, ele, voltando-se para um rapaz que se achava a seu lado, disse-lhe:

            - Bem, Isto está muito agradável, mas tenho bastante que fazer...

            Foi nesse instante que o cego, interrompendo, falou: 

            - Perdoe-me, amigo. Não se vá agora. Espere que eu acabe o que estou tocando...

            - Não, não posso, tenho pressa - retrucou Medeiros. - Você está sempre por aqui, não está?

            - Sim, respondeu o cego, acrescentando:

            - Não é pelo dinheiro, é ...

            - Qualquer dia pararei por aqui para lhe falar. Até logo...

            - Sim, senhor. Mas não se demore. É para o seu próprio bem.

            E Medeiros partiu sem deixar sequer uma insignificante moeda para o infeliz.

            Vários dias se passaram, até que, numa tarde fria, passava o Medeiros pelo mesmo local, quando avistou o cego. Tocava ele, por admirável coincidência, a mesmíssima melodia que Medeiros ouvira pouco antes de se retirar, da outra vez.

            Parou e se dirigiu ao violinista, que estava só, arroxeado de frio.

            - Como vai você? Sou aquela pessoa a quem você pediu que voltasse. Como disse que é para o meu próprio bem, aqui estou. Não me assustei. Tenho saúde, dinheiro, sou feliz nos amores, gozo de prestígio e popularidade no meu ambiente. Que me falta, então?

            - A visão... - respondeu o cego.

            - O que, a visão? - respondeu, perguntando, o Medeiros, com uma gargalhada. - Você se esquece de que o cego é você e não eu? Essa é boa!

            - Se o senhor tivesse alguns minutos a perder comigo, para que pudéssemos conversar sossegadamente, compreenderia porque digo isso... - retrucou enigmaticamente o cego.

            - Está bem, embora não me interesse muito por assuntos misteriosos. Se é dinheiro que você quer, posso dar-lhe algum. O meu tempo vale mais.

            - Guarde o seu dinheiro. Não preciso dele. Preciso do seu tempo para melhor lhe abrir os olhos, porque o senhor é mais cego do que eu...

            Medeiros, orgulhoso, quis retirar-se logo, mas, por curiosidade, resolveu continuar, pois o cego lhe aumentara a curiosidade. Levou-o ao seu escritório que ficava a poucos metros de distância.

            Lá, depois de sentados, a conversa recomeçou.

            - Como se chama o senhor?

            - Norberto de Medeiros. E você?

            - Isaias Machado. Não sou cego de nascença. Sofri um desastre e fiquei cego, há cerca de quinze anos.

            - Que infelicidade! - exclamou Medeiros.  

            - Nem tanto, Sr. Medeiros. Pensando bem, que felicidade! Eu era assim como o senhor confesso; feliz e despreocupado, pensando só em mim e fazendo do resto do mundo um trampolim para a realização das minhas ambições. Tive dinheiro, tive tudo que um homem normal pode ter na vida, até que sobreveio a cegueira.

            - Mas você me fez traze-lo aqui para me contar a sua história? Saiba que ela não me interessa de maneira nenhuma - retrucou com aspereza Medeiros.

            - Perdoe-me, Sr. Medeiros. Suporte a minha enfadonha história, que é muito curta. Apesar disto, procurarei reduzi-la ainda mais. Ouça-me com paciência. Um amigo, quando viu que eu não conseguia curar-me e já havia gasto tudo quanto possuía com especialistas famosos, convidou-me para ir falar com certo conhecido. Fui...

            - ... e continuou cego - atalhou sarcasticamente Medeiros.

            - ... e continuei cego apenas dos olhos físicos, porque adquiri a vista espiritual que me tem sido de imensa utilidade até hoje. Mas isso demorou. Quando me foi dito lá que eu jamais poderia recobrar a visão, não me surpreendi, porque antes não me havia Iludido com uma esperança impossível. Entretanto, passei a frequentar um Centro espírita, até que comecei a notar coisas que me davam perfeitamente a impressão de não ter, em determinados instantes, cegueira alguma. Era uma mediunidade latente que brotava, vitoriosa, Eu era médium vidente...  

            - Olhe - interrompeu Medeiros -, não sou espírita, não tenho religião nenhuma, não gosto de macumbeiros e tenho mais o que fazer. Vou levá-lo ao ponto em que o apanhei e não m aborreça mais com isso, ouviu? - foram as palavras duras, grosseiras e cruéis que proferiu.

            O cego empalidecera. Ouviu tudo isso sem se perturbar. Humildemente. Em seguida, com a voz serena e persuasiva, ponderou;

            - O senhor concordara em me ouvir, Tenha paciência. Não me demorarei mais do que uns quinze minutos. Quaisquer que sejam as minhas palavras, porém, não se irrite. Quando eu acabar, então tome a sua decisão. Acatá-la-ei, seja qual for.

            - Então, vá! - tornou Medeiros, mal-humorado.

            - Acredite ou não no que já lhe disse e no que ainda lhe vou dizer, Sr. Medeiros, a verdade é que o senhor é mais cego do que eu. O senhor não enxerga as coisas espirituais, eu não vejo as coisas materiais...

            - Vivo num mundo material. Interessa—me, portanto, exclusivamente, o que diz respeito à vida deste mundo. O resto, o que vocês prometem para depois, não interessa. Sou homem prático, objetivo, ouviu?

            - Sim, senhor. Quando o senhor parou, naquele dia, para me ouvir tocar, percebi a seu lado uma entidade estranha, com vibrações escuras, inferiores. Compreendi que o senhor não estava bem acompanhado e me preocupei. Da segunda vez eram duas entidades a seu lado, como agora as vejo nitidamente com os olhos espirituais...

            - Qual! Você está louco. Não acredito nisso. Continue, continue.

            - Esses companheiros não lhe permitem ver o lado certo da vida. O senhor está ficando obcecado pelo dinheiro e pelos prazeres dos sentidos. Mude de rumo, para seu bem, do contrário, quando menos o esperar, sua vida ficará modificada para pior. Abandone a cegueira em que se encontra. Reflita, exercite a caridade, faça alguma coisa pelos que sofrem, pelos que não têm nem o que comer... Pense em si mesmo, pensando nos outros.

            - Esses são os bons conselhos? Então, você quer que eu trabalhe e produza, que use a minha inteligência e a minha energia em favor daqueles que não tem a mesma capacidade que eu e por isto não podem progredir como eu progrido? Isso é ideia que se apresente? Era o que faltava, eu me matar pelos outros, quando ninguém se mata por mim... Não gosto de sermões.

            - Agora. - atalhou -, se o senhor me permite, vou sair. Não tenho mais nada a fazer aqui. Tomara que o senhor não seja um dia obrigado a compreender tarde demais a razão dos que dizem que “o pior cego é o que não quer ver”. Deus lhe ajude!

            Gracejando com ar de superioridade, o Medeiros bateu no ombro de Isaias, soltando-lhe a piada irreverente:

            - Bem dito: você que tem prestígio com Ele, vê se me dá uma mãozinha... Tenho um negócio difícil a decidir. Se Deus me ajudar, você ganhará parte da comissão que a ele couber...

            O cego permaneceu sério e silencioso. Tateando, procurou a porta. Medeiros, segurando-lhe o braço, deixou-o na rua e voltou ao escritório. Pouco depois, o telefone tilintava e ele era chamado a um encontro galante.

 ***

             Seis meses após essa conversa de Isaias e Medeiros, no escritório deste, os jornais noticiavam a queda de um avião na capital paulista. Entre os sobreviventes se achava um Norberto de Medeiros, negociante no Rio. Seu estado era grave. Achava-se no Hospital de Clínicas, da capital bandeirante, correndo risco de morte. Isaias teve conhecimento do fato pelo rádio portátil que possuía. Procurou acompanhar o noticiário, principalmente interessado pelo estado de saúde de Medeiros. Depois, nada mais ouviu, pois, com o correr dos dias, nem os jornais nem o rádio se preocuparam com os sobreviventes. a não ser para divulgar o falecimento de algum deles ou a alta dos mais afortunados.

            Medeiros sofreu várias operações cirúrgicas. Após quatro meses de internamento, pode sair e voltar ao Rio. Estava outro homem. Uma perna defeituosa não lhe permitia caminhar direito. Além disso, enorme cicatriz lhe marcava a face direita. Toda a beleza física, de que tanto se orgulhava, desaparecera. A própria voz não tinha o tom agradável de antigamente. Ficara um pouco fanhosa, em consequência do ferimento que lhe atingira o nariz.

            Os sofrimentos haviam influído profundamente no seu caráter. Ele, tão materialista, tão sarcástico e irreverente, agora se punha a pensar na possibilidade de haver algo imponderável e inteligente por detrás do panorama físico da vida. Mas, que seria? No isolamento do seu quarto de hotel, Medeiros refletia, às vezes mal-humorado, contra a má sorte, assim dizia, que o acometera quando tudo lhe sorria e tudo lhe era favorável. Diversas vezes chegou a ter acessos de fúria, inconformado com as circunstâncias que lhe haviam alterado o curso da vida e marcado o seu corpo de deformações e cicatrizes. Foi durante uma dessas crises que se lembrou do cego Isaías.

            - Que fim terá levado aquele homem? Teria feito um “despacho” para mim?

            Trêmulo, tocou a campainha, chamando um serviçal. Quando este chegou, Medeiros pediu-lhe com empenho:

            - Antônio: preciso muito que você vá à rua do Crescente, aqui perto...

            - Sei onde é, Sr. Medeiros - atalhou o empregado.

            - ... e procure um cego que costumava fazer “ponto” ali. Se o encontrar, traga-o aqui, rapaz. Tenho muita necessidade de falar com ele. Você não perderá o seu tempo. Olhe, tome já, de saída, este dinheiro.

            - Ora, Sr. Medeiros, não é preciso. Vou falar com o gerente e não demoro. Já que o senhor insiste... obrigado!

            E embolsou o dinheiro, retirando-se.

 ***

             Meia hora depois, o cego Isaías, acompanhado do empregado do hotel, dava entrada no quarto de Medeiros,

            - Como vai o senhor? Sente-se melhor? - indagou Isaías.

            - Não sei.. Não sei se vou bem ou se vou mal. Você fez algum “serviço” contra mim? Sinto--me perdido na vida. Tão cedo não poderei trabalhar e ignoro se, do jeito em que fiquei, me será possível conduzir meus negócios como anteriormente. Você foi tão franco comigo, da outra vez, que, agora, me sinto à vontade para perguntar-lhe: que deverei fazer?

            - Se o senhor pede minha opinião, dá-me o direito de externá-la com sinceridade, qualquer que seja o efeito que tiver, não é assim?

            - Certamente. Quase estou começando a acreditar nas suas bruxarias...

            - Não faço bruxarias, não sou de macumbas, Sr. Medeiros. Tenho, graças a Deus, uma noção perfeita da vida terrena. Sei que somos sujeitos a leis sábias, mas inflexíveis, que nos impelem para o bem, embora, não raro, não as compreendamos e mudemos de roteiro, na persuasão de que o verdadeiro caminho é o que querem os nossos interesses imediatos. O senhor continua cercado de entidades sombrias: elas, porém, já não se mostram tão seguras quanto da última vez que estivemos juntos. Dependerá do senhor, exclusivamente, livrar-se delas e encarreirar-se por uma senda melhor. Vejo coisas que não lhe posso revelar... por enquanto.

            - Como pode ver, se é cego? E eu, que tenho vista, porque não vejo nada?

            - Porque, como já lhe disse certa vez, o senhor é mais cego do que eu. Todavia, como a sua cegueira é espiritual, poderá curar-se. A minha, cegueira física irremediável, não tem mais jeito. Nem me importo com isso. Talvez eu, se enxergasse com os olhos materiais, não me sentisse tão feliz quanto me sinto vendo apenas espiritualmente...

            - Está muito bem. Mas, que devo fazer? Quero experimentar.

            - Sentir, como suas, as dores alheias. Comover-se com os padecimentos dos seus semelhantes, interessar-se pelo bem de alguma pessoa, esquecer-se, involuntariamente, de si. Ser um pouco menos

seu, compreende? Nada é mais difícil de erradicar do que o egoísmo, Sr. Medeiros. E o senhor ainda é muito egoísta. No fundo, o senhor não pretende senão desabafar-se por haver perdido a boa aparência física, por não ter mais aquela voz sonora, que lhe permitia dar boas gargalhadas, ainda quando fosse inoportuno rir estrepitosamente...

            - Ora, você está se excedendo - disse Medeiros, um tanto agastado.

            - Não, senhor: estou na justa medida. O senhor poderá vir a ser muito mais feliz do que antes de se acidentar. Terá, entretanto, que impor a si mesmo uma disciplina férrea, a começar por não mais repisar as aflições que as consequências do desastre lhe trouxeram. Lembre-se de que há no mundo muita gente que, tendo mais merecimento do que o senhor, está sofrendo muito mais...

            - Que deverei fazer? Sem compromisso, sem compromisso... Uma experiência apenas.

            - Voltarei aqui com aquele amigo meu, de que já lhe falei, dirigente de um humilde Centro espírita. Virá conversar um pouco, trocar ideias e, se necessário, dizer-lhe algo que lhe venha a ser útil.

            - Está bem. Quanto mais cedo melhor mas não quero rezas...

            - Está certo. Fique em paz.

            Depois que Isaías se retirou, Medeiros, só, no quarto silencioso, sentiu pela primeira vez, vontade de chorar. Esforçou-se para evitar isso, mas não pode sopitar as lágrimas. Havia anos que não se recordava dos pais, desencarnados há muito tempo. Nesse instante, porém, como se a visse, exclamou: “Minha mãe! Ah, se ela estivesse aqui, eu não sofreria como estou sofrendo!”

            E se pôs a rememorar a infância, os tempos de rapaz, as preocupações que criava para o pai e a mãe desvelada. Aquele coração, seco a frio, palpitava, enfim. Angustiado, Medeiros suspirou algumas vezes. Assim ficou até a hora do jantar. Nada quis, a não ser uma xícara de chá. Acomodou-se no leito e custou a dormir. Entrementes, pensava. Sim, pensava em Isaías, nos pais, nas relações que fizera nos dias longos de leviandade. Lembrou-se, então, que, de tantos amigos que possuía, poucos eram os que o visitavam. Assim mesmo essas visitas pareciam mais uma obrigação para sustentar a possibilidade de alguns futuros negócios. Somando as relações que possuía, o saldo era tristemente negativo.

            Chorou novamente. Por entre soluços, já tarde da noite, ocultou o rosto no travesseiro, deixando escapar esta frase amarga, porém portadora de uma esperança:

            - Se há um Deus, que ele me perdoe!

 ***

            Dias após, Isaías reapareceu no hotel, acompanhado no amigo.

            Logo ao abrir a porta do quarto, o cego sentiu que alguma coisa de bom havia acontecido, porque, na sua visão espiritual, percebia acharem-se mais afastadas as entidades sombrias que o perseguiam. Estavam como que tomadas de medo. Medeiros, por sua vez, se sentia melhor. A fisionomia mais tranquila revelava progresso.

            Depois das apresentações habituais, o amigo de Isaías, que se chamava Ismael, conversou longamente com Medeiros. Deu-lhe brilhante aula doutrinária, depois do que se retirou, não sem, antes, haver submetido o comerciante a passes precedidos e seguidos de enternecedoras preces.  

            O cego via mediunicamente o ambiente modificar-se. As entidades inferiores tremiam, apavoradas, convencidas de que se formava, em torno de Medeiros, uma cerca fluídica que os impedia de avançar. Durante uns dois meses Medeiros foi visitado por Ismael, até que este, sorridente, lhe disse:

            - Agora... amigo, tudo vai depender exclusivamente do senhor. Compareça, se quiser, ao nosso Centro. Lá, os recursos são maiores e tudo andará mais depressa.

 ***

             Alguns meses se passaram, Medeiros fora exemplarmente assíduo. Melhorou muito. Certas deformações físicas cederam bastante, com o tratamento que lhe fora prescrito, e o seu aspecto mental era outro. Nem se tornava preciso convidá-lo a ir ao Centro. Chovesse ou não, ele era sempre dos primeiros a chegar e dos últimos a sair. Fizera-se um estudante aplicado de “O Evangelho segundo o Espiritismo”. Voltara ao trabalho comercial mas, dessa feita, com outras intenções. Ninguém o via a fazer caridade, porém era evidente que ele estava progredindo muito no campo espiritual. Quantas vezes, sem que soubessem, ele subia morros, visitava hospitais, percorria penitenciárias, devassava favelas perigosas, só para ajudar. A sua chegada era sempre saudada com carinho pelos humildes.

            Certa vez, tarde da noite, bateram-lhe à porta, porque ele morava numa casinha modesta, perto do Centro. Madeiros surpreendeu-se ao ver o cego Isaías, cujos olhos, antes apagados, agora lhe apareciam cheios de vida, brilhantes, magnificamente brilhantes.

            - Ó caro amigo Isaías, entre!

            O cego, entretanto, sem dizer-lhe palavra, apenas sorrindo, abraçou-o com entusiasmo. Medeiros retribuiu-lhe o abraço, surpreendido, pois nunca o vira assim, tão afetivo. Mas, no justo momento em que o abraçava, sentiu os braços vazios. Isaías desaparecera! Já ciente dos fenômenos espíritas, Medeiros não se assustou, embora denotasse ligeiro espanto pelo inesperado acontecimento. Horas depois, Ismael chegava para lhe comunicar a desencarnação do cego.

***

            Quem frequentar, ainda hoje, o Centro a que pertencera Isaias, verá um homem idoso, com larga cicatriz na face, coxo duma perna, que dirige os trabalhos. Querido e respeitado por sua bondade, é como um anjo guardião de todos os necessitados da carne e do espírito.

            Não lhe conhecem o passado. Sabem, porém, que o seu presente é radioso e rendem graças a Deus por haver na Terra uma criatura capaz de seguir tão de perto os passos do Cristo. Chegam a dizer: “Seu Medeiros é um santo!”

            Muita razão assistia ao cego Isaías. Aquele antigo Medeiros, que, tendo olhos sãos, era espiritualmente cego, se redimira. Pode-se até dizer que fizera das imperfeições da sua alma a escada para alcançar a glória de uma redenção merecida.

            E é ele que, doutrinando, esclarecendo almas impuras, adverte sempre com bondade e firmeza:

            - Cuidado, irmão: o pior cego é o que não quer ver.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

As duas rãs


As duas rãs

por José Brígido (Indalício Mendes)     Reformador (FEB) Julho 1947

 

            Nada há pior para o caráter do homem do que o pessimismo. Ele denigre tudo, corrompe as boas ações, ofende a virtude, destrói a tranquilidade, mata a esperança e cultiva a desilusão. O pessimismo é como o mocho: foge à luz e ama as trevas.

 *

             Na velha cidade de Bagdá, há muitos anos, existiu um filósofo original, que ensinava aos seus discípulos que a vida foi dada ao homem para encurtar sua peregrinação para a imortalidade, desde que cada qual saiba aproveitar as reencarnações de seu Espírito, realizando o bem, encaminhando os transviados, corrigindo os que erram, sempre com tolerância e amor, sem se esquecer da energia que, bem empregada, representa também caridade.

*

            Se o homem desvirtua e envilece a vida - ensinava Hassein-Hassam, tal era o nome do filósofo - terá de recomeçar a jornada tantas vezes quantas se façam necessárias ao seu apuramento moral. Falando mais claro: se o Espirito encarnado não dignifica sua passagem pela Terra, terá de aceitar o jugo da carne em novas existências, até que se liberte de vícios e imperfeições. Para Hassem-Hassam, o pessimismo era, não apenas um vício, mas o pior dos vícios, porque enxovalha, amortece e anula todas as boas qualidades do ser humano.

 *

             Uma tarde, quando atravessava calmamente certa rua de Bagdá, o velho filósofo foi insistentemente chamado pelo jovem Ali-Benhadaz, filho de riquíssimo mercador de tapetes. O rapaz tivera profunda desilusão e perdera toda a alegria de viver. Até o sorriso das crianças o irritava e o suave bailar das flores, que a brisa da tarde embalava, lhe parecia uma afronta ao seu infortúnio. Desgraçado Ali-Benhadaz!

 *

             Depois de ouvir seus queixumes, o filósofa abraçou-o com paternal carinho e lhe disse: “ - Rapaz, olha bem para mim. Contempla estas barbas brancas que quase me ocultam a face e medita sobre a origem das fundas rugas que me vincam o rosto tostado pelo Sol. Também fui jovem, também amei, também sofri. Hoje, bendigo o nome de Alá (1), porque foi o sofrimento que me ensinou a viver e a compreender e interpretar o sentido superior da vida. Nós somente sofremos, meu filho, porque cometemos erros...

 (1) Alá (Deus)

*

Ali Benhadaz abriu mais os olhos avermelhados, demonstrando seu espanto e sua admiração. E o filósofo continuou, sorrindo docemente:

            - “Sofri e sofro ainda... Aprendi, porém, a perdoar, mas sei como é difícil adquirir-se o hábito do perdão sincero. Mesmo assim, sofro. E sofro menos pelo que ainda me fazem do que pelos males que os homens causam a si mesmos, por não quererem ser bons. Abandona o pessimismo. Sufoca teu pranto, domina teu sofrimento e aprende que ninguém sofre em vão, que a dor tem uma causa, que a dor tem um efeito também... Começa perdoando e logo verás como tudo se modificará. Conheces a história das duas rãs? Não? Então vou contá-la para que reflitas bem sobre ela.”

 *

             Hassein-Hassam cofiou a barba espessa, olhou ternamente para o jovem e iniciou o seguinte apólogo:

            “- Era uma vez duas rãs: uma, otimista; outra, pessimista. Um dia, elas tanto pularam que foram cair dentro dum boião (recipiente de boca larga) de creme de leite. A pessimista logo se desesperou. Pôs-se a chorar e gritar: “ - Ah! Coitadinha de mim! Desta não escaparei! Sinto-me sem ar, sem forças! Estou perdida! Não poderei sair daqui! Vou-me afogar! Ai, que me afogo! Ai!.. “ E se afogou mesmo.

 *

             A rã otimista, sentindo embora a morte da companheira, não perdeu a esperança e continuou lutando bravamente pela vida. Seu otimismo lhe dava confiança e a confiança lhe fazia redobrar a energia. “ - Só desistirei quando todos os meus esforços forem de todo inúteis” - pensava ela. E continuava: - “Mamãe sempre me diz que “enquanto há vida, há esperança”. Continuarei lutando!”

*

             Na verdade, ela não ficou imóvel, nem se deixou arrebatar pela desorientação. Nadava energicamente, de um para outro lado, movendo sem cessar suas patinhas. Já a rã pessimista jazia no fundo do boião, quando a rã otimista percebeu que as coisas estavam melhorando. Que se teria passado?

 *

             Talvez alguém aludisse à realização dum milagre, mas o fato é que não houve milagre algum, porque não há milagres. De tanto a rãzinha se debater para salvar-se, o creme de leite foi-se condensando e não tardou que ela sentisse achar-se sobre corpo relativamente sólido, pois o creme se transformara em manteiga. Alcançando a boca do boião, a rã estava ofegante, esgotada, porém alegre e feliz.

 *

             Terminado o apólogo, o filósofo voltou-se para Ali-Benhadaz, os olhos iluminados por um contentamento discreto, mas contagioso:

             “- Ouviu, meu filho? Essa lição da rã otimista prova que sempre é melhor fazer-se alguma coisa do que cruzar os braços e não fazer nada nas horas graves... O desespero não constrói: destrói, as lágrimas não mostram o caminho da salvação, mas representam o itinerário do desespero... É nos momentos críticos da vida que o homem deve mostrar o que vale. Estás também num boião de creme de leite. Reflete e age. Não desesperes. Nem tomes qualquer decisão sem refletir. Faze o máximo para saíres bem da situação em que te encontras e verás, depois, que é bem melhor viver nas claridades do otimismo do que chafurdar-se no pântano escuro e mortal do pessimismo. Eu te ajudarei a sair do boião, Ali-Benhadaz...”

 *

            E Ali-Benhadaz, com a fisionomia aliviada, mostrava certo desafogo na alma. Suspirou e, num impulso de gratidão, beijou as mãos encarquilhadas do filósofo. Desde aquele dia, nunca mais houve em Bagdá um coração mais cheio de esperanças do que o dele.


Só Deus é grande

                     

Só Deus é grande

Pedro de Camargo (Vinícius)       Reformador (FEB) 3 Outubro 1919

            É conveniente, é necessário mesmo que os aldeões visitem os grandes centros, as metrópoles onde o formigueiro humano fervilha e onde há, para eles, muito que ver e observar além dos acanhados limites a que se acham afeitos.

            Por sua vez, os habitantes das capitais populosas e ricas devem viajar a fim de conhecerem outras metrópoles para não suporem que aquilo que possuem seja um privilégio seu. Finalmente, os homens todos devem estudar um pouco de Astronomia, ligeiras noções embora, que lhes deem uma ideia da magnificência da criação, pois só assim eles compreenderão como são pequeninos e como Deus é grande.

            É um excelente remédio contra nosso desmedido orgulho e nossa ridícula jactância.

            O aldeão sente-se apoucado nas capitais; os moradores de certa metrópole sentem-se reduzidos quando se encontram em outros centros semelhantes, e os homens, em geral, sentem-se desaparecer quando fitam a Imensidade onde as constelações se ostentam e se desdobram numa série infinita de mundos e sóis que confunde, alucina e faz delirar a pobre mentalidade humana.


Cegueira sacerdotal

 

Cegueira sacerdotal

A Redação      Reformador (FEB) 1º Maio 1924

             A Sinopse e o quarto Evangelho dão noticia, concordemente, da prédica de João Batista, “o maior dos nascidos de mulher”, o qual não só anunciou a vinda do MESSIAS, como O reconheceu, divinamente aureolado, e dele deu testemunho público.

            Em sua linguagem simbólica, dizia o PRECURSOR, trazendo aos contemporâneos a lembrança de ELIAS, o grande profeta das solidões do Carmelo:

            Aparelhai o caminho do Senhor; fazei retas as suas sendas. Todo o vale será cheio e ficarão arrasados os montes e os cabeços; os caminhos tortos tornar-se-ão direitos e planos os escabrosos. Todo o homem verá o SALVADOR enviado por DEUS...  

            “Já o machado está posto à raiz das árvores, e assim toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo.” (LUCAS, III,4-6 e 9)

            Era a voz que clamava, no deserto.

            João teve aderentes e discípulos, aludidos no Evangelho, vindos do próprio centro metropolitano, Jerusalém, e de muitos lugares da Judeia; mas os representantes oficiais da religião judaica não o aceitaram, não lhe deram crédito, nem lhe seguiram o ensino.

            Havia surgido a aurora do messianismo.

            A incredulidade de Israel em face da prédica de JOÃO, no deserto, cresceu e se avolumou, quando JESUS anunciou de público a boa nova.

            “Não é este o filho do carpinteiro? Não lhe conhecemos a família?.. É um possesso de Belzebú. Nenhum profeta pode vir da Galileia.”

            O SENHOR ensinava no templo e nas sinagogas, nas cidades e aldeias, nos campos e à borda do mar... Era a bondade e o amor, sob a forma humana.

            A suspicaz autoridade religiosa, de instituição divina, segundo acreditava, com todo o seu poderio e influência, abriu hostilidades contra o divino MESTRE. Acompanharam-na as seitas e grupos que, em harmonia ou em antagonismo, existiam na Palestina: fariseus de várias espécies, orgulhosos, ritualistas e hipócritas; saduceus incrédulos, ricos e aristocratas; escribas letrados e doutores da lei. Não precisamos mencionar a massa ignara dos fanáticos.

            Como não fantasiamos, pedimos permissão para, a propósito, fazer referências aos textos evangélicos pelos quais nos devemos guiar.

            Depois de pregar na sinagoga de Nazaré, JESUS foi expulso da cidade e os Judeus quiseram precipita-lo do monte ali existente, mas não conseguiram realizar o intento. (LUCAS, IV; 29, 30.)

            Em Jerusalém, quando JESUS doutrinava no templo, os Judeus, munindo-se de pedras, tentaram lapida-lo. ELE, porém, encobriu-se e se retirou. (João, IX, 59.)

            Tramada uma conspiração contra a sua vida, após sucessivas ameaças, “os príncipes dos sacerdotes e os fariseus enviaram quadrilheiros para o prenderem.” A diligência não deu resultado. (João, VII, 32, 45.)

            Depois da ressurreição de Lázaro, os pontífices e fariseus, reunidos em conselho, adotaram o voto de Caifás, pontífice do ano, para ser assassinado JESUS. Resolveram também matar Lázaro. (João, XXI, 47- 53; XII, 10.)

            Afinal, JESUS foi preso, condenado e executado.

            ...............................................................

            No mês de abril último, a Federação comemorou, em sessão especial, a tragédia do Calvário.

            Aliás, sem data prefixada, a nossa Associação a comemora todos os dias.

 *

             Preso e interrogado pelo pontífice, respondeu-lhe o SENHOR: “Eu falei publicamente ao mundo. Eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde concorrem todos os judeus e nada disse em secreto.” (João, XVIII, 20.)

            Os Judeus lapidaram profetas e levaram JESUS ao Gólgota.

            Convém, entretanto, advertir que eles admitiam a livre prédica nos templos e nas sinagogas. Nesses lugares, consagrados ao culto, qualquer pessoa poderia comentar as escrituras, expor ideias e tornar públicas as inspirações ou revelações, como faziam os profetas.

            As igrejas não adotaram essa norma. Não se limitaram a cercar de muros a sua dogmática.

            Foram além, impediram, durante séculos, a liberdade de pensamento e de consciência - conquistas modernas contra as quais, ainda hoje, Roma, em sua cegueira, opõe, inutilmente, o Sylabus de Pio IX.

            Os escribas e fariseus de hoje, mais intolerantes do que os de Sion, entendem que o ciclo das revelações - para cuja interpretação supõem ter o monopólio - encerrou-se, em Patmos, com o Apocalipse.

            Negam a NOVA REVELAÇÃO, como os seus antecessores negaram a messiânica.

            Apagadas as fogueiras inquisitoriais, trancados os calabouços medievais e extintos os antigos processos da tortura, eles manejam, na atualidade, muitas armas.

            Proclamamos, impávidos, a verdade, aos quatro ventos e a defendemos; mas não nos é licito usar de represálias, porque “dente por dente, olho por olho” não é a nossa lei. Seguimos a do CRISTO.

            Rogamos ao SENHOR que os cure da cegueira.


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Obra meritória

 


Obra meritória

A Redação         Reformador (FEB) 3 Outubro 1919

             O Reformador ilustra hoje as suas páginas de uma nova e valiosa colaboração.

                Nosso confrade Dr. Chrisanto de Brito pensou e pensou bem em dar à nossa bibliografia uma obra de incontestável alcance, fixando em vernáculo a personalidade do fundador do Espiritismo - Allan Kardec.

                Respigando, consciencioso, tudo quanto se lia dito e escrito sobre o mestre, e mais - estudando-o em sua própria tarefa de missionário, presta o solicito confrade o melhor dos serviços a causa que ele simboliza e, ao mesmo tempo, a mais bela das homenagens àquele espírito, que, ao contrário do que vulgarmente acontece, avulta ao transcorrer dos anos.

                E por isso mesmo que assim é, o trabalho do nosso companheiro será dos que ficam para as gerações do futuro.

                Sintético, conciso, sóbrio como convém ser em tentames deste quilate, a fim de dar aos estudiosos uma noção impessoal e desapaixonada, mas rigorosamente verdadeira do seu modelo, estamos certos de que o estudo do nosso companheiro, destinado a edição definitiva em livro, será por todos apreciado pela sua imparcialidade e senso crítico do autor.

                Do seu estilo simples e sugestivo, defluindo límpido e sereno como regato em macio álveo, nada diremos para que o leitor melhor o julgue e se delicie com ele.

                E fique, assim, consignado o nosso reconhecimento à preferência que nos deu o autor, para as colunas desta Revista, preferência tanto mais valiosa quanto oportuna, permitindo-nos dar, nesta data memorativa do venerando mestre, os prolegômenos do seu criterioso labor.

                 Ei-lo:

                            Allan-Kardec e o Espiritismo

             Há duas fases na vida de Allan Kardec. Uma anterior à constituição do Espiritismo, mais material, conquanto já superior na ordem moral, outra inteiramente espiritual, em que admitindo e aceitando a doutrina nascente, faz dela a preocupação permanente do resto da sua vida, e tanta elevação e vigor imprime na coordenação, defesa e difusão dos seus princípios que ele a encarna, marcando com a doutrina abraçada a maior data da história da humanidade depois da vinda de Jesus. É sobretudo dessa segunda fase que pretendo falar aqui.                                                                             

             Antes de tudo, é preciso mostrar como o homem em Allan-Kardec se completa nas duas fases da sua vida, como a segunda não seria talvez possível sem a primeira.

            Nascido em Lyon, na França, em 3 de Outubro de 1804, no seio duma família  respeitável pelas suas virtudes, ele recebeu dos pais a educação a mais aprimorada. Pode-se dizer portanto que o meio foi mais propício para o desenvolvimento das suas boas tendências. Todas aa qualidades morais que concorrem para formar o homem de bem, foram logo desabrochando no jovem Hypolitte Rivail, e constituíram sempre o fundo do seu caráter.

            Quando apareceu muito depois o grande movimento espírita, de que ele foi o diretor, ele já era um homem experimentado nas lutas da vida, contando já mais de 50 anos de idade, mas sempre guiado por uma consciência reta. O Espiritismo não veio trazer a transformação súbita do seu caráter. Não veio modifica-lo de chofre, dando-lhe imediatamente qualidades que não possuía. Já o encontrou, por assim dizer, formado. Apenas o lapidou. Ele já era certamente um espírito adiantado, com um longo tirocínio de outras existências e outras missões, perfeitamente aparelhado portanto para desempenhar a nova missão que trazia.

            Na vida, a coragem nunca lhe faltou. Ele não desanimava nunca. A calma foi sempre uma das feições mais salientes do seu caráter. Ficando logo arruinado, perdendo toda sua pequena fortuna no começo da vida, mas sempre exercitando a caridade, e já casado com a mulher que foi depois incansável na propaganda das suas ideias, ele consegue, por meio de um labor obstinado readquiri-la quase toda no ensino, escrevendo, ao mesmo tempo, trabalhos didáticos, fazendo tradução de obras estrangeiras ou preparando a escrituração de estabelecimentos comercias. Ainda assim, não lhe faltava a coragem para fazer benefícios à mocidade pobre, abrindo cursos gratuitos de ciências e línguas. Era essa mesma coragem que ele devia mostrar mais tarde no momento tempestuoso da formação da doutrina, recebendo sempre com a maior serenidade, sem nunca revidá-los, os ataques mais veementes dos inimigos, as injustiças e as ingratidões dos amigos. As cartas anônimas, as traições, os insultos e a difamação sistemática, lembra Leymarie, um seu íntimo, no dia do seu passamento, perseguiam esse homem laborioso, esse gênio benfazejo e lhe abriam moralmente feridas incuráveis. Tudo porém ele sabia perdoar.

            Ele nunca fugia às discussões, ao contrário, as desejava sempre, não por espírito de combatividade, mas para elucidar os assuntos. Nós queremos a luz, venha donde vier, dizia ele. O que quer dizer que não era homem orgulhoso. Ele nunca procurava impor suas opiniões a ninguém. Ele discutia sempre lealmente e naquilo que não constituía ainda uma questão já resolvida pelos Espíritos numa concordância geral, os seus esclarecimentos eram mantidos como uma opinião meramente individual, eram emitidos apenas como sua maneira de ver. E sempre estava disposto a renuncia-la desde que ficasse demonstrado que

estava errado. Todos os homens podem enganar-se, dizia ele uma vez a Jobard, (1) mas se há grandeza em reconhecer os erros, há sempre baixeza em se perseverar numa opinião que se reputa falsa.

 (1) Revue Spirite, 1858, pag. 198

             Dessa ausência de orgulho provinha necessariamente a tolerância. Assim como não pretendia impor suas opiniões a ninguém, também respeitava a dos outros, inclusive as crenças. Sempre ele praticou o que alegou depois em 1868: “A tolerância sendo uma consequência da moral espirita, ela nos impõe o dever de respeitar todas as crenças. Não se atirando pedras em ninguém, desaparece o pretexto das  razão os outros acabarão por pensar como eu; se eu não tiver razão acabarei por pensar como os outros.” E essa tolerância sendo um dos vestígios da sua elevação moral, não era somente aplicada nos atos da vida pública como nos da vida privada.

            De um humor as vezes alegre, na intimidade ele era um causeur despreocupado mas brilhante, tendo um talento especial, refere um seu biógrafo, para distrair os amigos e convidados que os tinha sempre em casa, dando alguns vezes um certo encanto às reuniões.

            Quem contempla hoje um retrato de Allan Kardec, não pode ter ideia portanto do que foi o seu caráter, não pode imaginar que naquela figura vigorosa, de fisionomia tão austera, aparentando antes uma rigidez exagerada de sentimentos, pouco disposta a  perdoar faltas, escondia-se uma alma tão boa, tão simples e tão generosa.

            O princípio enfim que constitui para o Espiritismo o fundamento da sua moral: “Fora da caridade não há salvação.”, pode-se garantir que foi sempre na vida a sua bandeira: “Faço o bem quando me permitem as minhas condições” já dizia ele num antigo documento encontrado entre os seus papéis, “presto os serviços que posso; nunca os pobres foram enxotados de minha casa, nem tratados com dureza, antes são acolhidos sempre com benevolência. Nunca lamentei os passos dados em favor de ninguém. “

            “Continuarei a fazer o bem que me for possível mesmo aos meus inimigos, porque o ódio não me cega; estender-lhes hei sempre a mão para os arrancar aos precipícios, quando para isso se me oferecer ocasião.” (1)

 (1) “Obras Póstumas”, pag. 302

 


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A Vida no Além

Léon Denis

 A Vida no Além

do livro “Depois da Morte”, pág. 242

por Léon Denis

           O Espírito, pelo poder de sua vontade, opera sobre os fluidos do espaço, os combina, os dispõe a seu gosto, lhes dá as cores e as formas que convêm ao seu fim. É por meio desses fluidos que se executam obras que desafiam toda comparação e toda análise. Construções aéreas, de cores brilhantes, de zimbórios resplandecentes: circos imensos onde se reúnem em conselho os delegados do Universo; templos de vastas proporções donde se elevam acordes de uma harmonia divina; quadros variados, luminosos: reproduções de Vidas humanas, vidas de fé e de sacrifício, apostolados dolorosos, dramas do infinito. Como descrever magnificências que os próprios espíritos se declaram impotentes para exprimir no vocabulário humano?

            É nessas moradas fluídicas que se ostentam as pompas das festas espirituais. Os Espíritos puros, ofuscantes de luz, se agrupam em famílias. Seu brilho, as cores variadas de seus invólucros, permitem medir a sua elevação, determinar os seus atributos. Suaves e encantadores concertos, comparados aos quais os da Terra não são mais que ruídos discordantes: por cenários têm eles o espaço infinito, o espetáculo maravilhoso dos mundos que rolam na extensão, unindo suas notas às vozes celestes, ao hino universal que sobe a Deus.

            Todos esses espíritos, associados em bandos inumeráveis, se conhecem e se amam. Os laços de família, os afetos que os uniam na vida material, quebrados pela morte, aí se reconstituem para sempre. Destacam-se dos diversos pontos do espaço e dos mundos superiores para comunicarem mutuamente os resultados de suas missões, de seus trabalhos, para se felicitarem pelos sucessos obtidos e coadjuvarem-se uns aos outros nas empresas difíceis. Nenhum pensamento oculto, nenhum sentimento de inveja tem ingresso nessas almas delicadas a essas reuniões onde todos recolhem as instruções dos mensageiros divinos, onde se aceitam as tarefas que contribuem para elevá-los ainda mais.