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sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Profissão de Fé - Parte 2



Profissão de Fé – parte 2
por Gustavo Macedo
Fonte:  Reformador (FEB) a partir de 15 de Abril de 1905
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                   Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros branqueados, 
que parecem por fora formosos aos homens e que por dentro estão cheios de ossos de mortos e toda a asquerosidade: Assim também vós outros por  fora  vos  mostrais, na verdade, justos aos homens, mas, por dentro estais cheios de hipocrisia e iniquidade. (Mateus XXIII vv. 27-28). 

            Os versículos acima citados têm aplicação perfeita às ordens religiosas. O povo vê apenas naqueles homens, vestidos de hábitos monásticos, santas e abnegadas criaturas, que morreram para o mundo e suas ambições, a fim de viverem para Deus, edificando os homens com o exemplo de suas virtudes.

            No entanto, não poucas vezes, os pontífices e os bispos têm extinguido e pedido extinção de ordens religiosas, por serem focos de desordens e desmoralização.

            Clemente XIV extinguiu em todo o orbe a Companhia de Jesus, proibindo aos seus membros administrar ao povo o sacramento da penitência (confissão) e pregar sermões. Temos em vista tratar do nosso país de preferência; por isso vamos dar uma amostra de viver angélico das nossas comunidades religiosas, cedendo a palavra às autoridades eclesiásticas.

            O que se segue é tirado da Revista Catholica, que se publicava nesta Capital, fascículos 1 e 2, de 1 e 15 de julho de 1896.

            “Logo no relatório de 1854, meses depois de tomar conta da pasta da justiça, Nabuco exprime-se desta forma em relação aos conventos:

            “Os conventos se acham pela maior parte em estado deplorável quanto a disciplina e administração; alguns estão abandonados e sem culto divino, entregues a um só religioso, que desbarata ou não aproveita os seus ricos bens, e vive sem inspeção alguma;  outros conventos mais numerosos dão o triste espetáculo da intriga que os dilacera, com prejuízo de sua santa instituição, e essa intriga procede em geral, como sou informado, das cabalas que sem pejo de somonia ai se agitam por amor aos cargos; providências enérgicas são urgentes para restituir os conventos à sua santidade primitiva, a fim de que se não tornem focos de imoralidade, sendo preciso que neles penetre a polícia, como aconteceu no convento da Maranhão.”

            Depois de enumerar as medidas que julga necessárias, no ano seguinte, 1855, reitera os mesmos pontos e expede a circular seguinte, muito citada e pouco conhecida.

            - Ministério dos Negócios da Justiça. Rio de Janeiro, em 19 de maio de 1855.

            S.M. o Imperador há por bem cassar as licenças concedidas para a entrada de noviços nessa Ordem Religiosa, até que seja resolvida a Concordata que a Santa Sé vai o Governo Imperial propor.

            Deus guarde a V. P. Rev.ma. - José Thomaz Nabuco de Araujo. - Sr. Provincial dos Religiosos Franciscanos da Corte. (Na mesma conformidade às demais Ordens Religiosas do Império).

            Nabuco consultou a opinião dos prelados sobre a resolução do governo.

            Ouçamos um pouco o que diziam os bispos sobre o estado dos conventos.

            O bispo de S. Paulo escrevia a Nabuco, em outubro de 1853: “No estado em que se acham (os frades) não é serem inúteis, são muito prejudiciais.” Pede a secularização dos religiosos, uma diária para cada um e a ronda, para mestre de seminários, de Redentoristas, Dominicanos, Lazaristas e religiosos de S. Felipe Nery.

            O bispo do Pará, atesta “o estado de decadência de algumas ordens, entre as quais a do Carmo do Belém era governada por um único religioso, que desfrutava um patrimônio de mais de trezentos escravos.[1]

            O de Mariana, D. Antônio, dizia ser impraticável a reforma do clero. Mandado reformar os carmelitas da Bahia, quase não achou quem nomear prelados.

            Refere que o arcebispo lhe dissera: davam-lhe mais que fazer três ou quatro conventos de freiras que todo o resto do bispado.

            O arcebispo da Bahia, D. Romualdo, demorou a opinião para depois que presidisse o capítulo da congregação beneditina; achou-a acéfala e anarquizada por uma minoria turbulenta, cabalando para as eleições e afastando do comício os religiosos prudentes e sérios.

            O do Rio Grande era contrário à jurisdição dos bispos, alegando ter murchado o convento do Carmo reformado por ele, e os de freiras sujeitos aos ordinários das dioceses.

            A opinião do internúncio, concorde com a dos bispos, desejava reunir os religiosos esparsos, quatro nos conventos pequenos, e dez nos das capitais, vendendo os prédios rústicos e convertendo-os em apólices.

            Dada a resolução do Conselheiro Nabuco, no Brasil, por mais de meio século não se realizaram solenidades de profissões religiosas.

            A Constituição Federal, tendo proclamado a liberdade religiosa, deu às congregações o direito de se renovarem. Os antigos religiosos não tinham esse desejo; queriam gozar os patrimônios a seu bel prazer, desbaratando as rendas em benefício dos... parentes.

            Os conventos viviam das tradições primitivas, celebrando as festas dos oragos.

            Em certo mosteiro desta Capital eram famosos os banquetes, de preço de cinco e seis contos de réis, onde parte dos numerosíssimos convidados acabavam embriagados, despejando com prodigalidade a retórica da sobremesa.

            A Santa Sé, vendo que a morte do último religioso ocasionaria a transferência de seus patrimônios para o governo, distribuiu os conventos pelas seguintes congregações: a ordem beneditina coube em partilha a congregação de Beuron, composta de belgas e alemãs. A carmelita divide-se em três províncias: Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro: está dividida entre frades holandeses e espanhóis.

            A franciscana - Bahia e Rio de Janeiro - pertence aos alemãs.

            A entrega dos conventos aos religiosos estrangeiros não foi feita sem resistência.

            Os leitores devem se lembrar da questão de S. Bento, aqui na Capital.

            Em S. Paulo está suspenso e talvez excomungado um carmelita, que opôs embargos judiciais à posse dos conventos de sua ordem por parte dos carmelitanos holandeses.

            Acima ficou dito: certos bispos entendiam ser necessária a vinda de religiosos para a restauração das ordens, por serem relaxados os velhos brasileiros. Pois bem: os vindos de fora em nada são melhores que os nacionais, como veremos; são, pelo contrário, menos caritativos e muito ambiciosos.

            Fiquemos por aqui, para não alongar este escrito. No próximo número tornaremos ao assunto.
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               Pouco adiantam o hábito e a tonsura; os costumes apurados, as paixões totalmente mortificadas, eis o que faz o verdadeiro religioso.  “Da Vida Religiosa” Imitação de Cristo, Liv. I, cap. XVII).
                 Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho,  e então verás como hás de tirar a aresta do olho de teu irmão.  (S. Mateus: cap. VIII, v. V).

                Em nosso artigo passado vimos que o bispo de S. Paulo era de parecer viessem da Europa religiosos para a reforma de nossas ordens.

            Vimos também que esse desideratum foi obtido por intervenção direta da Santa Sé, que partilhou a seu talante os ricos patrimônios das nossas congregações. Por informações obtidas, sabemos que os seus bens podem ser avaliados pelo mínimo do seguinte modo: os imóveis de S. Bento em cerca de 3 mil contos; os dos carmelitas em mil contos; os da Ajuda em mil contos, e os de Santa Teresa em trezentos contos. O de Santo Antônio possui trezentos contos em apólices, e até bem pouco recebia o provincial o soldo de Santo Antônio, que era Alferes do exército brasileiro. É sabido: em geral as ordens religiosas são ricas, e na França uma grande parte da riqueza estava com as comunidades.

            Dizíamos pois: o desideratum do bispo de S. Paulo (e de muitos outros católicos também) foi obtido. Todos os conventos, como já vimos anteriormente, estão entregues a congregações europeias, que desfrutam seus patrimônios, e nem disfarçam a preocupação nativista que os caracteriza. Evitam o mais que podem o ingresso de brasileiros nas ordens, não admitem pessoas de cor e mestiços. Quando éramos postulante da ordem franciscana, disse-nos um dia o superior geral do Brasil:

            “-Você não é um mal sujeito, porém não é alemão.”

            O falecido abade de S. Bento nos referiu muitas vezes ter mandado moços para noviços de sua ordem, e todos voltaram desolados dos conventos, quase nus, e queixosos da brutalidade de trato dos reformadores europeus! Os leitores devem saber: clero católico quer dizer universal, logo, a denominação de clero alemão, francês, italiano ou nacional é inteiramente descabida. Acusam o clero nacional de devasso e relaxado, no entanto, temos exemplos frisantes de que os reformadores não são santos, e de que a história de suas ordens na Europa e na América não é das mais edificantes.

            Na história do ministro da justiça Euzébio de Queiroz, foram deportados dois capuchinhos, um pela prática de atos que tornaram tristemente célebres as cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra, outra de furto a uma viúva sua penitente. Mais tarde, no mesmo hospício dos capuchinhos houve cena escandalosa, pois um religioso resolveu investir, armado de faca, contra o seu superior. No convento de S. Bento, o bondoso e último abade brasileiro teve necessidade de tomar sob sua proteção um religioso estrangeiro, acusado e perseguido pelos seus companheiros, que afirmavam existirem no perseguido intuitos sinistros e sanguinários. Esse homem morreu fiel e dedicado ao referido abade protetor. Um cônego, membro do cabido metropolitano, já nos afiançou não ser impecável a conduta dos Lazaristas franceses, quando dirigiam o seminário. Certo padre francês, que aqui houve, foi suspenso de ordens por celebrar duas missas diárias, o que constitui gravíssimo pecado. Na França alguns irmãos maristas têm sido arrastados aos tribunais pelo crime de atentado ao pudor. O mesmo se deu no Chile e na República Argentina com os dominicanos docentes.

            Os leitores se devem lembrar: o clero regular e secular são rivais; pois bem, são também rivais as ordens religiosas.

            O ciúme das congregações é antigo. Deu até motivo para a apostasia de Lutero. 

            Quando Leão X vendia indulgências para o acabamento da igreja de S. Pedro, encarregou desse negócio o monge dominicano Tetzel. Lutero, não só indignado com o espetáculo da traficância, mas ainda por ser monge agostiniano, e por isso adversário dos dominicanos, ao voltar de Roma fez afixar às portas da igreja de Wittenburg as célebres noventa e cinco proposições a respeito das indulgências, por contrárias ao dogma da graça.

            Tetzel respondeu publicando cento e dez proposições contrárias às de Lutero.

            Era o começo da Reforma.

            Os dominicanos são também rivais dos jesuítas, por causa do dogma da graça, e sobre este assunto têm escrito bibliotecas.

            Fiquemos por aqui.

            No próximo número trataremos do nosso convento, particularizando o que lá se fazia.

            Antes, porém, de entrar no assunto, será, talvez interessante - e os leitores no-lo permitirão - que descrevamos em ligeira síntese o nosso estado mental, de verdadeiro louco, que outra coisa não é o misticismo vulgar. Oxalá o nosso triste caso sirva de instrução, não só a nós, como a muitas outras criaturas que sem cautela se abeiram do abismo terrível do fanatismo clerical.
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                    A fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade. (Allan Kardec)

            Quando éramos criança, foi chamado para tratar-nos de uma enfermidade um abalizado clínico da nossa cidade. Dado que já éramos a tomar parte de atos religiosos, o médico disse a nossa mãe, à cabeceira do leito;

            - Evite a convivência deste menino com padres, quando não ele quererá ser sacerdote.

            Nossa progenitora não deu atenção às palavras sensatas do médico, e fomos crescendo e nos afazendo à vida cultual.

            Nossa família não tinha devotos; nossos pais eram livre pensadores; não entendíamos, por nossa parte, a significação moral dos atos religiosos, mas gostávamos de aparecer amortalhado nas batinas vermelhas e negras, ornado com a alva sobrepeliz, figurando nas missas e nas solenidades religiosas, como cumprimário do teatro católico. Éramos uma miniatura do padre Salgueiro, de Eça de Queiroz.

            Nada víamos que nos edificasse. Éramos profissional da devoção, e começamos também a auferir lucros do nosso papel de sacristão.

            O espírito ia-se assim predispondo para a loucura mística - que não tardaremos a descrever ao leitor, como objeto de estudo psicológico.

            Quando ficamos mocinho, já não éramos simples sacristão, tínhamos subido a mestre de cerimônias; apuramos mais as vestes sacerdotais, era mais completo o nosso uniforme.

            Em nossa matriz, éramos olhados pelo beatismo com certa consideração e respeito, oriundos da dupla qualidade de meio homem e meio padre.

            Nas solenidades religiosas, era de ver-nos sentado em nosso tamborete[1], dirigindo o pé do altar[2] com todos os rigores da pragmática.

            Certa vez, tinha que entrar a missa solene, a orquestra já terminara a ouverture, e um padre essencial à festa faltara. O vigário nos lançou a mão e fomos desempenhar as funções de sub-diácono[3]. Ao entrarmos revestido da dalmática[4], coberta a cabeça com um barrete, houve uma tal ou qual sensação no templo. Alguns católicos, entre os quais certo doutor em direito canônico e o pregador, censuravam o ato do vigário, por não sermos ordenado. Outros gostaram, acharam natural, e a maior parte ficou indiferente.

            Éramos, pois, o herói do dia, e tivemos desde então um aumento de prestígio religioso. Usávamos a barba raspada e o nosso gesto, o lenço e os trajes eram de um eclesiástico à paisana.

            Nosso espírito começou então a se preocupar com a significação moral das cerimônias religiosas; já nos não bastava acompanhar dentro da tipoia os mortos ao cemitério e aspergi-los de água benta. Começamos a estudar o ritual, a teologia moral e dogmática e a carreira sacerdotal. Nunca havíamos feito, entretanto, a primeira comunhão, e envergonhado disto pela pergunta que a tal respeito nos fizera uma senhora na sacristia, fomos um dia galgando a ladeira do Castelo, nos confessar a um capuchinho, bruto e seco, que invés de nos acolher como um filho que achou o caminho da salvação, se admirou muito pouco cristãmente de nunca termos confessado e comungado! Deu-nos afinal a comunhão na capela do Sacramento, e daí data o início do nosso fanatismo, cujas peripécias vamos contar, e é interessantíssimo. Foi no dia 16 de julho de 1892.

            O homem fanatizado é um ser intratável, por isso que é intolerante. O mundo artificial em que vive, as práticas devotas, a privação das satisfações naturais, o tornam incaridoso, egoísta e sobretudo muitíssimo orgulhosos, por se julgar santo, acima da vil canalha pecadora.

            Esse orgulho se revela no cultivo da maledicência, pois o apontar constantemente faltas alheias é indiretamente fazer o elogio próprio. Nosso pai, homem de espírito lúcido e livre pensador, desgostava-se com esse fanatismo; vendo, porém, que nos tornamos inapto para funções seculares, dignou-se permitir o nosso ingresso no seminário.

            Foi uma grande decepção que sofremos.

            Colocaram-nos entre crianças; a estupidez da vida nos enfarou, nada correspondia às nossas aspirações místicas. Decididamente o clero secular era pouco piedoso, frio: tinha a prova no seu convívio desde a infância.

            Aguardamos a primeira saída, e no fim de dez dias abandonamos aquela casa, onde um moço não podia sair senão acompanhado por um criado, quando muitas vezes era um rapaz independente como nós, que antes do nosso fanatismo - convém saber - vivíamos na pândega, nos teatros.  Voltamos às funções de mestre de cerimônias da matriz. O clero secular não nos induziu a ser padre, porém cometeu a falta de não nos dissuadir desse intuito. Sempre a ausência de sinceridade. Um único padre nos disse:

            - Seja feliz; em breve estará de volta.

            E fechou a frase com uma gargalhada expressiva e gostosa.

            Não tardava a hora em que as portas do convento se nos abriram. Nosso progenitor, quando enfermou da moléstia de que veio a desencarnar, em 22 de julho de 1893, teve antes que se confessar; levamos à sua cabeceira alta noite um padre para esse mister, aproveitando-nos de uma palavra sua de consentimento, para livra-lo das chamas do inferno.  Caía sobre mim a responsabilidade de uma pequena família.

            Mas o fanatismo cruel nos repetia deturpadas as palavras de Jesus - “aquele que não abandonar pai e mãe por amor de mim, não é digno de mim.”

            E estas palavras santas do meigo cordeiro imaculado têm justificado a crueldade da igreja, que arranca desumanamente dos braços de pais aflitos, filhos amados, alegria de lares e arrimo de família, para a inutilidade esterilizadora do fanatismo monacal.


[1]  Banco próprio do altar.
[2]  Padres que tomam parte na festa religiosa.
[3]  O terceiro padre na ordem hierárquica da festa.
[4]  Capa dourada que se põe por sobre as outras vestes, nas missas solenes.

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               Bem podes envergonhar-te, considerando a vida de Cristo, que tão pouco cuidaste em conformar com a Dele a tua, estando há tanto tempo no caminho de Deus.  (Imitação de Cristo,  Livro I, cap. XXV.)

            Quando a gente trata da loucura, descreve os seus efeitos, porém não define o que ela seja.

            Um dia, um discípulo do grande alienista Esquirol insistiu para que lhe desse uma definição da loucura.

            O médico achou difícil a empresa; convidou o discípulo - era interno do manicômio - para jantarem juntos e então delinearem o estado patológico.

            À tarde, tomaram lugar à mesa o médico, o discípulo e dois convidados. Corria o jantar animado, principalmente pela vivacidade e graça de um dos convivas, em contraste flagrante com o silêncio do outro, que mal se dignava responder às breves perguntas que lhe faziam. Ao terminar o ágape, perguntou o mestre ao discípulo:

            - Qual dos dois te pareceu o louco?

            - O que muito falou durante a refeição.

            - Pois te enganaste. O louco era o silencioso, que, na presunção de grandeza, mal se dignava responder às perguntas. O falador era Balsac! Vede a dificuldade da definição da loucura.

            Apegamo-nos a Esquirol e não definiremos, pintaremos apenas os efeitos da nossa loucura mística.

           Lá já adiantada essa enfermidade, quando em dezembro de 1893 encontramos, no hospício dos capuchinhos, com um religioso franciscano alemão, aguardando paquete para Santa Catarina, onde demorava o seu convento. Agregamo-nos a esse frade, e rompendo todos os laços da família, fazendo atroz violência ao coração, na manhã de 21 de dezembro daquele ano, por entre lágrimas sentidas de uma família desolada, seguimos rumo do Castelo, em busca do religioso em cuja companhia seguiríamos. À tarde, quando o manto da noite descia sobre o mar e a terra, o monstro marinho, que nos conduzia em seu bojo, saía barra fora, afrontando o canhoneio dos irmãos que se digladiavam na inglória luta civil.

            É possível que as balas inimigas matassem nesse momento alguns deles; o fumo do estampido do tiro era o luto antecipado dos que iam morrer; mas não era menos verdade que, no bojo do transatlântico, éramos um ser que agonizava, até que o hábito religioso nos produzisse a morte moral.

            Mas, convém dizer, havia vaidade no ato de nossa abnegação. Amortalhado na estamenha do franciscano, antevíamos a consideração que nos granjearia a condição de frade. Os ósculos de respeito, depositados em nossas mãos seráficas, e os aplausos da turba beata, quando pregássemos pedantesca e teatralmente nos púlpitos da igreja católica, nos traziam, como sempre aí acontece, a vaidade e o orgulho sob o manto hipócrita da humildade. É coisa por nós observada: os padres preferirem a prática de certos atos, quando haja assistentes.

            Querem tocar nos vasos sagrados e nas hóstias, abrir o sacrário, para causarem admiração ao beatismo, que a tem pela função, que julgam sobrenatural, desses homens, cujas mãos sagradas pegam Deus eucarístico, como nós os objetos materiais.

            Depois das peripécias de viagem, oriundas do estado então anormal do nosso país, após uma breve estadia no Paraná, seguimos no vaso de guerra Urano, todo avariado pelas balas inimigas, até S. Francisco, em S. Catarina, e daí até Itajaí. Nesta última cidade, sulcamos o rio deste nome, e, após um dia quase inteiro de viajar, era já noite fechada, quando aportamos a Blumenau, onde estava situado o convento que nos destinaram. Era o dia 29 de janeiro de 1894.

            Ao entrarmos no convento, fomos logo para o refeitório, que era o porão do prédio, cavando-se o solo para ser adaptado àquele mister.

            Ao nosso encontro veio logo uma chusma de padres, enfronhados em hábitos de cor marrom com grossas cordas nodosas caindo da cintura. Era semelhante a um enxame de formigas.

            Fomos acomodados em um quarto junto à portaria. Ao acordarmos no dia seguinte, estávamos picados de mordidelas de mosquitos, prelúdio talvez ou símbolo das picadas morais que teríamos depois a receber.

            Não causou agrado na comunidade a entrada de um postulante[1] brasileiro.

            Começaram por querer que fizéssemos o curso de alemão! A má vontade da congregação, o desprezo mesmo por tudo o que era brasileiro, ao ponto de raros religiosos conhecerem imperfeitamente o português, criou uma verdadeira incompatibilidade de nossa parte pra aprendermos a língua alemã. Os frades eram positivamente inimigos dos brasileiros, chegando no colégio infantil, existente no convento, a existir verdadeiras rivalidades entre alunos por causa da nacionalidade. Note-se: os que se diziam alemãs eram filhos de brasileiros germanizados.

            Não nos deve surpreender essa patriotada, pois o clero teve a habilidade de fazer de Jesus, judeu aos olhos dos homens, um terrível anti semita!

            As crianças eram sujeitas a um conjunto de práticas religiosas, ou, antes, supersticiosas; mas longe estavam de ser carinhosamente tratadas; imperava o regime da vara.

            Andavam descalças, em mangas de camisa, e eram sujeitas até a trabalhos manuais, etc., em resumo, essas crianças, que pagavam a estada no colégio, pareciam antes garotos da rua do que alunos de um estabelecimento de ensino. Tivemos lugar à mesa da comunidade, nós e um bugre que lá havia. Deram-nos, para dormir, lugares que não daríamos a criados íntimos. Acometido muitas vezes de erisipela e febre, não tínhamos a cabeceira um irmão para nos consolar e medicar, e certa vez até nos mandaram um prato de barro cheio de feijão. Mal curado nos levantávamos do leito, e sujeito que nos julgávamos à disciplina da ordem, praticávamos logo o jejum. Não havia quem nos viesse dizer que estávamos dispensado da penitência. As decepções que sentíamos, oriundas da falta de caridade e bondade, eram terríveis: mas o leitor não imagina o triste estado de trevas de um fanático.

            Que fazer? Queríamos ser servo do Senhor; o único convento era aquele, e nós ardíamos pela salvação do próximo.  Um religioso que lá havia, e que de nós tinha rancor gratuito, nos disse pouco antes do nosso ingresso para o noviciado:

            - Gustavo deseja ser religioso e não tem vocação para isso. Tem praticado faltas. Não, me tenho oposto a sua entrada, por escrúpulos de consciência: não quero que digam que contrariei uma vocação...

            - Folgarei de saber as minhas faltas em que consistem.

            - Há pouco tempo um menino rachava lenha, e você se apiedou dele, dizendo ser um trabalho superior às suas forças. O menino mesmo declarou: você achava o trabalho demasiado para uma criança? Nada tinha a ver com isso; ele próprio devia saber melhor as suas forças.

            - E a outra falta, Sr. Padre?

            - Você achou que nosso superior não devia ir à Alemanha receber ordens, quando tínhamos outro superior imediato na Bahia! Grave falta! Eu mais velho não fiz comentários!...

            E desse modo vivia a esmiuçar faltas graves. A intriga medrava assim em campo próprio. Se todos falassem a mesma língua, devia florescer. Em resumo, o guardião do convento teve necessidade de nos declarar que não fizéssemos caso das implicâncias do referido padre. Com esse corriam parelhas os períodos de má vontade que tinha contra nós o cozinheiro, que também era religioso. Deus, porém, em sua misericórdia infinita, deparou-nos um religioso, chamado para mestre dos noviços, em atenção à sua virtude e piedade, o que nos foi alívio e consolo, e era a única exceção em uma ordem, onde a hipocrisia, a dissimulação exterior, acobertavam o egoísmo e a falta a mais absoluta dos rudimentos da caridade cristã. Queríamos, no entanto, ser frade, e pensávamos poder exercer a caridade; os livros estavam cheios de exemplos de religiosos caridosos e bons; e assim, a 8 de setembro de 1894, depois da repugnância do Provincial do Brasil, que nos julgava maculado pela nacionalidade brasileira, como vimos no artigo anterior, recebemos na igreja do convento, sob o nome de Frei Francisco Solanus, o hábito do patriarca S. Francisco de Assis.

[1]  Estado anterior ao de noviço.
11
             O melhor dos livros, que não prega senão a igualdade, a amizade e a concórdia - o Evangelho - serviu, durante séculos, de pretexto aos furores dos europeus. Quantas tiranias públicas e particulares se praticam ainda em seu nome sobre a Terra! (Bernardin de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia,  pág. 164)

            O convento tinha todo o conforto necessário. Havia lá oficinas de ferreiro, alfaiataria, sapataria, padaria, e não sabemos que nome devamos dar ao local em que se preparava o excelente vinho de laranja. Nada disso é censurável, porém é inteiramente contrário ao espírito da regra[1] franciscana, que prescreve a mais absoluta pobreza, e até que os religiosos vivam de esmolas. Por isso se chamam mendicantes.

            S. Francisco de Assis ia de escudela em punho, de casa em casa, suplicar os restos de comida para sua alimentação. Os franciscanos, porém, só conservaram do patriarca o hábito exterior.

            Poucos dias antes de nosso ingresso no noviciado, fomos ao irmão alfaiate tomar medida de um hábito velho remendado (consoante às prescrições da regra) para com ele solenemente nos vestirmos na cerimônia de nossa admissão na ordem.

            Três dias antes fomos recolhidos à capela interna da comunidade, a fim nos prepararmos pelos exercícios espirituais para tão grande missão.

            O mestre de noviços, único religioso, apesar de fanático, de alma aberta a todos os sentimentos nobres e generosos, nos apresentou o programa dos exercícios. Tínhamos que ficar inteiramente silenciosos; abstenção completa de recreio; meditações longas sobre os novíssimos do homem: morte, juízo, inferno, paraíso. Uma confissão geral quer dizer: que abranja todas as anteriores, muito recomendada em ocasiões graves, como ensinam os teólogos.

            O mestre de noviços martelava-nos os ouvidos com longas prédicas sobre o horror do pecado, do diabo e da carne. Nosso espírito estava no último grau da excitação mística. Quando, prostrado aos pés do sacerdote, acabamos a longa confissão (rosário de banalidades da vida, de prazeres legítimos e até de necessidades fisiológicas) o pranto nos sufocou, e curvado até o chão recebemos a grave absolvição sacramental.

            Na noite da véspera de tomarmos o hábito, depois de respondermos ao instrutor, afirmativamente, se persistíamos no intento de entrarmos na visa religiosa, na ocasião em que a fradaria tomava lugar no refeitório para a ceia, de joelhos ante o guardião[2], pedimos em latim, pelo amor de Deus, a estamenha dos mendicantes. O superior concedeu-nos a graça para a salvação de nossa alma.

            Amanhecemos enfermo no dia seguinte.

            Houve necessidade de se modificar a cerimônia. Tomamos, primeiro, a comunhão, depois alimentamo-nos; não resistiríamos a ir em jejum para a igreja. Na ocasião da missa solene a comunidade foi para o coro, entoar o cantochão.  Entramos no templo, na frente do celebrante e acólitos. Vínhamos a secular, camisa de meia, um paletó com a gola levantada, um crucifixo nas mãos postas, e assim tomamos lugar de joelhos ante o altar-mor.

            Sobre uma credencia[3] estava o nosso hábito com a respectiva corda. No momento dado, colocou-se ao pé do altar uma cadeira virada para o povo e o padre nos dirigiu a palavra. Não entendemos patavina: o discurso era em alemão. Era dirigido ao povo ou por outra, era um alocação por tabela. Tínhamos que responder em alemão: sim. Não estávamos bem certo e demos o sim antes do tempo. Foi o que se chama, em bastidores, uma entrada falsa.

            Quando, pois, o frade nos perguntou: - “quer ainda entrar na ordem de nosso pai S. Francisco?” Nada respondemos; ele, porém, nos disse lá mesmo do altar:  “diga sim.”  Esta segunda parte é o que se chama na gíria teatral: perder a deixa.

            Houve, conseguintemente, uma parte pitoresca. Seguiu-se a bênção do hábito e cordão, tiraram-nos o paletó, amortalharam-nos na estamenha, cingiram-nos com o cordão, tudo acompanhado das respectivas rezas do ritual, e por fim o padre nos impôs, de acordo com as prescrições da regra, o nome de Francisco Solanus. Recebemos os abraços dos irmãos e os parabéns do devotismo. Éramos o primeiro brasileiro que, após cinquenta anos de interdição da entrada de noviços nas ordens religiosas, recebia o hábito, como vimos do aviso ministerial transcrito em número anterior.

            Pela segunda vez figurávamos como herói do dia em religiosa festividade. Na primeira vez, como se viu, de batina, na segunda, de hábito.

                                                                                      *

            A comunidade se levantara às quatro horas e meia da manhã. O irmão encarregado desse mister gritava pelos corredores: - Ave Maria! - e das celas respondíamos: Deo gratias! Nas segundas, quartas e sextas-feiras, tínhamos disciplina, estalada em nossos corpos ao som plangente do miserere. Era um chicote com cinco pernas de ouro couro, com que nos flagelávamos. No dia de finados a dose era dobrada, adicionando-se um de profundis, em intenção das almas do purgatório!

            Se era dia de festa, ou de santo privilegiado, nossos corpos ficavam sem essa dose de pancadaria. Íamos para a igreja meditar meia hora, ouvir missa, em alguns dias comungar, depois tomar café e entregar-nos aos nossos trabalhos. Pouco antes do meio dia o sino nos convidava ao templo; depois de rezarmos em comum o Ângelus, íamos nos colocar em forma no refeitório, dando começo às orações decoradas em latim, logo que o superior chegava ao seu lugar. Depois um frade se curvava ante o superior, pedindo a bênção, e este lha dava com o sinal da cruz. Todos tomavam seus lugares pela ordem de hierarquia e antiguidade, conservando-se em pé, enquanto um leitor contava em voz soturna um versículo do Evangelho, ao qual a fradaria respondia com um amém em tom plangente.

            Os bancos são colocados às quatro paredes do refeitório, ficando as mesas de maneira que se conserve o centro da sala vazio. O maioral ocupa o centro das mesas, tendo por trás de sua cabeça um crucifixo. Durante a refeição dois irmãos leem, alternadamente, trechos espirituais.

            Ao terminar o jantar todos vão rezando em voz alta para a capela, onde, ao entrar, beijam o chão.
            De braços abertos em forma de cruz, a congregação reza, alternadamente com o superior, um punhado de padre-nossos, ladainha, etc. A última prece é rezada com os frades prostrados no chão.

            Segue-se o recreio, que dura até às duas horas da tarde. Dessa hora até às seis, cada um se entrega às suas ocupações, quando se reproduz a mesma cena que descrevemos atrás, precedida de meia hora de meditação. Depois do jantar, silêncio profundo, os frades correm a via sacra na igreja.

            É uma devoção que consiste em ajoelhar e, rezar diante de quatorze quadros que, ao longo das paredes das igrejas, representando os quatorze passos dolorosos da paixão de Cristo.

            Outros passeiam ao longo dos corredores e jardins, recitando o rosário, ou os padre-nossos da regra.

            Os clérigos e padres dizem o ofício divino do breviário: é um livro que contém fatos e preces para todos os dias do ano litúrgico.

            Às nove horas cada religioso vai se sumindo para o seu aposento, onde dorme beatificamente.
            Às sextas-feiras havia uma cerimônia tocante:  antes do jantar, a comunidade se punha de joelhos ante o superior; este tomava sobre os ombros o manto de sabir, e de pé ouvia as confissões, em voz alta, dos seus inferiores. Toda a comunidade confessava, a começar do mais graduado ao último noviço, as faltas cometidas na semana: um teve sono ao levantar-se, outro distraiu-se no ofício[4], outro cochilou no coro, outro quebrou o silêncio, um prato, uma caneca, um garfo. Nós, como tínhamos o encargo de cuidar do refeitório, invariavelmente confessávamos a falta de quebrar xícaras de barro. Vem daí a nossa benevolência para os criados quebradores de louça. O guardião nos dava uma penitência, umas três Ave-Marias por exemplo, enquanto a congregação prostrada no solo recebia a absolvição sacramental, que o superior lhe concedia, coroando-a com o sinal da cruz sobre a fradaria.

            Nos conventos há duas espécies de frades: os padres e os leigos. Com exceção do noviciado, que é comum, há depois desse período, que dura um ano, uma verdadeira e completa separação. Os leigos usam tonsura, isto é, a nuca e as fontes raspadas a navalha. Ocupam-se dos trabalhos manuais, em bom português:  são os criados do convento. Os outros têm todas as distinções e comodidades, todas as preferências, e usam, além da tonsura, coroa grande aberta na cabeça, também à navalha; são padres. Cada um vive para si; é raro um ajudar ao outro; com os estranhos quase não têm comércio; os padres nas recreações do refeitório conversam entre si, os leigos fazem o mesmo. Nos dias festivos dispensa-se parte da leitura espiritual nas refeições; os irmãos se cumprimentam uns aos outros, dizendo: “tenha bom apetite.”

            Constantemente se celebravam quaresmas de jejum. Havia, se não nos enganamos, umas três. Se hoje comêssemos o que então comíamos, seríamos gastrônomos. Consistia o jejum em tomar, pela manhã, uma palangana de café com grossa fatia de pão de milho. Ao meio dia, jantar abundante em que se podia comer até fartar. Às seis horas, ceia: um prato de sopa com um outro qualquer, um ovo e chá ou mate.

            Era permitido, fora dessas refeições, tomar café, refresco ou qualquer outra coisa. É, em geral, a única satisfação material que o religioso tem: comer. É quase a mesma do irracional.

            Outra recreação que muitos apreciavam era a noturna no refeitório. Ao noviço mais moço chama-se ‘júnior’[5]; em dias de festa beija a mão do guardião e pede recreio.

            Concedido este, punha-se uma fila de garrafas de vinho ao longo da mesa, e conversava-se e libava-se algum tempo, até o superior fazer o sinal para entoar-se um hino, virados todos para a cruz, e recolhermo-nos às células, a fim de dormirmos. Tudo isso era feito com todas as precauções para ninguém ver.

            Um dia tinha ido conhecido padre secular desta cidade até lá e, por ser novato, não foi admitido à recreação.

            Um religioso nos referiu em uma dessas ocasiões que Pio IX aconselhara os padres a não conversarem com os leigos, e a estes fazerem o mesmo com os seculares.[6] 

            Só Jesus com todos falava e a todos acolhia como iguais; dizia que o primeiro fosse o último, como Ele deu o exemplo, ensinando aos homens a se buscarem e não a se repelirem: os frades, porém, tinham uma coisa superior aos Evangelhos: as regras do seu convento. Estavam e estão em seu direito, preferindo o papado, o Vaticano e o romanismo; nós preferimos Jesus, manso e humilde de coração, e por isso nos amamos uns aos outros, para o mundo nos reconhecer por seus discípulos. 

[1] Dá-se esse nome aos regulamentos das comunidades religiosas.
[2]  Superior do convento.
[3]  Mesinhas usadas junto aos altares.
[4]  Reza do breviário.
[5]  O ‘júnior’ do convento éramos nós. Tínhamos 18 a 19 anos.
[6]  ‘Seculares’ quer dizer ‘do século’. Diz-se geralmente ‘paisanos’.

Profissão de Fé - Parte 3



Profissão de Fé – parte 3
por Gustavo Macedo
Fonte:  Reformador (FEB) a partir de 15 de Abril de 1905


12
            O tempo das clausuras já passou.  Os claustros, úteis à primeira educação da civilização moderna, foram incômodos ao seu desenvolvimento, e são prejudiciais ao seu progresso. Como instituição e modo de educação para o homem, os mosteiros, bons no décimo século, discutíveis no século quinze, são detestáveis no século dezenove.” (Victor Hugo, Os Miseráveis, liv. 7º, cap. II.)

            O convento matou o ideal que concebíamos de vida monástica. A tristeza nos ia invadindo, e - porque não dizê-lo? - a repugnância da hipocrisia. O nosso fanatismo, já o dissemos, era extremo. Abdicáramos todos os prazeres legítimos da vida, a fim de morrer para o mundo e viver para o amor de Deus e do próximo.

            Supúnhamos lá o asilo santo, que nos abrigasse das tempestades da vida, e que a devoção fosse o cultivo da caridade cristã. Puro engano!

            O religioso é uma máquina, um autômato, sujeito a um conjunto de práticas supersticiosas que não elevam o coração, só fanatizam os sentidos.

            Quando estávamos no claustro, fomos mandados algumas vezes assistir a espécie de representações teatrais que lá se faziam. Fanatizados como nos achávamos, não olhávamos para a cena, e sentíamos mágoa e indignação, por vermos frades representando atos hilariantes!

            Durante toda a representação tínhamos os olhos fechados, e nos sentíamos aliviado quando findava o espetáculo.

            Natural esse sentimento: habituados que estávamos a ouvir pregar contra o teatro, as danças e os prazeres, era justo que ficássemos indignado, ao ver homens, que faziam profissão de piedade, cometerem o pecado de se transformar em cômicos.

            E que pesar imenso tivemos certa vez, quando uma pobre mulher trouxe para ‘os servos do Senhor um boião cheio de manteiga!

            Estava-se construindo um convento, escola, teatro, e havia muitos outros projetos dispendiosos, tudo com dinheiro vindo da Alemanha.

            E a pobre mulherzinha - coitada! - talvez se privasse do regalo de untar com manteiga o seu pão, para que frades fartos recebessem esmolas!

            Era de regra os religiosos não poderem tocar no dinheiro.

            Um único religioso podia tocá-lo e guardá-lo.

            A Imitação de Cristo, um dos mais belos livros, cognominado por alguns escritores: - o quanto livro dos Evangelhos - o livro que, depois da Bíblia, tem tido mais edições no mundo, que tem sido traduzido muitas vezes em todas as línguas e dialetos, que tem provocado a admiração dos homens mais indiferentes em matéria religiosa, esse admirável código da moral cristã, que tem tentado a veia poética de homens como Corneille, esse livro não nos consta que fosse lá meditado ou apreciado. Os Evangelhos, esses podem servir, torturados, para justificar as práticas pagãs do convento.

            Nunca se apagará da nossa memória o fato triste que passamos a relatar:

            Certa ocasião, sentimo-nos penalizado com o gemer aflito de um pobre polaco. Passava junto a nós um religioso, conhecedor daquela língua. Dirigimo-nos a ele e dissemos:

            - Irmão, bem sabe quanto o polaco é fanático. Para essa pobre gente tudo o que diz o padre é acertado e consolador; você sabe falar a sua língua; vá a ele e diga-lhe alguma coisa para o consolar.

            - Não é justo o teu pedido; nossa regra proíbe conversar com os homens estranhos; o religioso vive dentro de seu claustro.

            De modo que o pobre, representante do próprio Jesus, que nos assegurou receber, como a Ele próprio feito, o benefício que ao necessitado fizermos, tinha que ver a sua predileta máxima esmagada pela sandália de uma regra, que era a negação completa do preceito da caridade cristã.

            Alegrava-nos um pouco o convívio com os alunos do colégio; tínhamos prazer e consolação em ver os brincos das crianças e conversar com elas.

            Íamos ao recreio buscar na convivência dos meninos um pouco de pureza e simplicidade que faltava nos autômatos de burel.

            Ai! Mas esse mesmo prazer nos foi negado.

            A regra, o espantalho da regra, foi um velário que nos separou dos pequeninos. Fomos chamados à cela do mestre dos noviços, e ai admoestado por ele, a não conversarmos com os alunos, por ser reparado e contrário à regra.

            Já dissemos que o religioso que desempenha aquela função era uma boa e santa alma. Mas o infeliz, que visivelmente se compadecia de nós, não podia librar-se nas asas da caridade, porque o guante da disciplina lhe sofreava os ímpetos generosos. Não tínhamos o pão do espírito, em certo período nem um livro, uma revista, só raramente um jornal devoto. Sabíamos onde havia um montão de jornais velhos, e aí buscávamos alguns, que escondíamos no avental, e a breves trechos líamos pedaços!

            No entanto, legáramos ao convento a nossa livraria e algumas obras importantes de teologia, que obtivéramos por dádiva de um padre coadjutor. Tínhamos necessidade de afeição, saudades da família, desejos de ser cristão.

            Toda a recomendação do instrutor não bastara para matar em nós o sentimento legítimo do amor ao lar.

            O religioso não tem família, não deve ter saudades, deve esquecer tudo por Deus, evitar o mais que possa visitá-la, e até lembrar-se dela.

            Horrível! Brutal! Anticristão! Jesus, manso e humilde de coração, cujos lábios se abriam para bendizer, lábios que foram a fonte da fraternidade e da esperança para os desgraçados; lábios donde brotaram palavras de amor e perdão, coração que só pulsou de piedade pelos infelizes e pelos aflitos, Jesus era reduzido pelo farisaísmo monástico, servindo de motivo a práticas aviltantes.

            O Evangelho era um falso pretexto para a horda de traidores de sua doutrina matarem no espírito o ideal do belo e no coração as aspirações mais nobres e legítimas.

            O claustro é o verdadeiro calabouço da alma; a luz da razão ali não brilha, as trevas do obscurantismo e do fanatismo não permitem nem um reflexo ao menos dessa luz esclarece-lo. As vestes monásticas são verdadeiras túnicas de criminosos: eles devem ser assinalados como inimigos da luz, como estranguladores da razão, como violadores da consciência. Não pregam o amor de Jesus, pregam o terror do inferno. Mas são sobretudo criminosos, porque opõem ao código divino do Evangelho a negação da regra.

            A regra! Mas que é a regra? Uma monstruosidade que proscreve o amor do próximo, o consolo moral dos desgraçados, o amor da família, da pátria e da humanidade, que excita o orgulho e desenvolve o egoísmo, fumo negro das fogueiras inquisitoriais que pretende encobrir o brilho e a poesia evangélica.

            Em vez de darem a Jesus corações que o amem, ofertam-lhe vítimas humanas! O fanatismo diz: “Eu sou a verdade; fazei-me religião única, fazei-me religião privilegiada, indiscutível, porque eu sou a verdade.” Pois que! Não disseram o mesmo todas as religiões? Com esse pensamento não se justificaram os crimes de todas as teocracias? “Eu sou a verdade”, disse o paganismo, para dar a cicuta a Sócrates; e Sócrates morreu entre as gargalhadas do povo e as truanices do teatro. “Eu sou a verdade” disse o judaísmo, para crucificar a Jesus; e quando passaram os homens boçais pelo campo do suplício, diziam-lhe na hora trágica da sua suprema agonia: “Se és filho de Deus, desce da cruz”. ‘Eu sou a verdade” disse o protestantismo, para justificar o suplício de Serveto; e o severo, o cruel, o implacável Calvino recreava-se em ver como Serveto devorava os seus próprios excrementos e como expirou rangendo os dentes, na fogueira do fanatismo.

            “Eu sou a verdade”, disse também o catolicismo, para arruinar, para empobrecer a Espanha em nome de uma religião de paz e de misericórdia. “De modo que ao Cristo, vítima da intolerância religiosa, eterno defensor da consciência humana, humilíssimo como homem, cujo coração só batia para amar e cujos lábios só se abriam para bendizer, os inquisidores das teocracias ofereceram, como os idólatras aos antigos deuses da Índia e da América, sacrifícios humanos.[1]

            Não era possível mais resistir. Em janeiro de 1895, declaramos ao mestre de noviços não podermos mais permanecer na ordem; e, numa fria madrugada, escondido, depois de furtivamente recebermos das mãos do referido monge a comunhão, na capela interna do convento, deixamos sobre o catre da nossa cela o hábito franciscano, com o qual dormíamos, por ser isto imposto pela regra, e o religioso não poder deixa-lo senão no túmulo!

            Nesse mesmo dia tomamos o vaporzinho no rio Itajaí, e descendo na corrente do rio, com as nossas ilusões desfeitas, o próprio rio parecia refletir a imagem das nossas vicissitudes: ao subirmos contra a corrente, íamos de encontro a justiça, ao amor de Deus, à caridade, ao bem e a Jesus. Ao descer, à mercê da corrente, vínhamos naturalmente para a vida, para as aflições e para o renascimento espiritual, depois, contudo, do preâmbulo da descrença e da desolação que se abria para nós.

[1] Castelar, Discursos Parlamentares, pag. 281.
13
                               Com efeito, o nosso século é admiravelmente delicado.  Imagina ele porventura que esteja completamente extinta a cinza das fogueiras?   Que delas não reste mais que um tição que acenda ainda um archote? Insensatos! Chamam-nos jesuítas, julgando que nos cobrem de opróbrio!  Mas os jesuítas lhes reservam a excomunhão, uma mordaça e fogo... E, um dia, hão de ser os senhores dos seus senhores. (O padre Roothau, geral dos jesuítas, na Conferência de Chieri).
           
            A 23 de janeiro de 1895, após fatigante viagem, aportamos a estas plagas, tendo ainda o intuito de nos recolher a uma ordem religiosa, que fosse mais humana e cristã. Ao saltarmos, entramos na igreja de Sta. Rita, para dar graças a Deus pela terminação da viagem, e dali galgamos a ladeira da Conceição, em demanda do palácio episcopal. Mandamos um cartão humilde ao prelado, pedindo nos receber pelo amor de Deus, pois acabávamos de chegar, vindo do convento de Blumenau. S. Ex. não se dignou receber-nos; tinha ocupações mais sérias, relações mais distintas, audiências mais nobres que a de um pobre diabo, que ousara importuna-lo na placidez beatífica de seu palácio.

            Fomos abraçado nessa noite por nossa família, para cujo seio voltávamos como filho pródigo.

            Impossibilidade material nos fez renunciar à carreira monástica. Arranjamos uma modesta colocação na sociedade e ainda nos entregávamos aos excessos devocionais. Acedendo a convites reiterados, fomos fazer parte da associação de S. Vicente de Paulo, composta de fanáticos, e que tem sua diretoria geral em Paris, e conselhos superiores em outros países.

            Divide-se em conferências, isto é, em pequenas agremiações paroquiais. Tem por fim socorrer a pobreza, material e moralmente. Reúnem-se os associados uma vez por semana.

            Na hora da reunião, todos se ajoelham. O presidente pronuncia uma prece decorada, a qual todos respondem. Sentam-se, lê-se depressa um breve trecho da Imitação de Cristo, e cada um dá conta do que fez na semana. O trabalho semanal consiste em distribuir gêneros alimentícios às famílias visitadas, e catequizá-las. Dão os socorros materiais, visando fanatizar os socorridos.

            Como só poderia acontecer entre tal gente, faz-se inquérito sobre o viver dos outros e dele diz-se mal. Um diz que a filha da socorrida vive à janela, namorando; outro, que fulana recebe dinheiro e não precisa, mais outra vive amasiada, não se quer casar ou deixar o amásio. A tal conferência é uma verdadeira comissão de inquérito da vida alheia e privada.

            São os verdadeiros católicos na acepção da palavra: praticantes, intolerantes, orgulhosos, desconfiados e maldizentes.

            Um vigário nos afirmou, mais de uma vez, não querer tais conferências em sua freguesia.

            Há muitos anos funcionam, sem ter uma casa própria, sem mais nada além de um beatismo estéril.

            Não tardou deixássemos de frequentar tal sociedade, que dava esmolas aos que não necessitavam, só para rende-los ao fanatismo, e cujas reuniões bem nenhum produziam à alma. Rezava-se, como dissemos, umas preces decoradas e maquinais; depois do inquérito todos se ajoelhavam de novo e repetiam maquinalmente umas poucas ave-maria, em diversas intenções.

            Tal sociedade é dirigida pelos padres lazaristas.

            Fomos adquirindo uma desconfiança bem pronunciada pelos padres em geral, cuja falta de fé e piedade eram notórias.

            Defendiam a religião e a praticavam, por mero interesse.

            Ocioso seria repetir o que a esse respeito já ficou dito em artigos anteriores.

                                                                                                   *
            Em 1896 ou 1897, a sociedade de S. Vicente de Paulo obteve, depois de reiterados convites, que o padre Júlio Maria viesse a esta capital fazer uma série de conferências subordinadas ao título “Conferências de Assunção”.

            Na matriz, onde ele as proferiu, fizeram sucesso, não só na parte elegante da sociedade, como no mundo clerical.

            A parte elegante e devota, acostumada a ouvir pregar nos púlpitos somente doutrinas dos santos padres, doutores eclesiásticos e autores místicos, achou que o orador era um assombro, porque pregava, ou por outra, citava autores como Chevreuil, Pasteur, Claude Bernard, Berthelot, Max-Nordau, Littré, Augusto Comte, etc.

            Convém saber: Tais escritores pregavam a necessidade do sentimento religioso e não da religião católica.

            Porém, o povo ilustrado misturava alhos com bugalhos.

            O clero teceu logo uma rede de intrigas contra o ilustre sacerdote quase herege, taxando-o de ignorante em matéria teológica!

            O vigário da freguesia pôs as mãos na cabeça e despediu do templo o herege, “por não querer novidades perigosas na sua matriz”, sendo o pobre homem acolhido, para terminar a série das conferências, na igreja da Cruz dos militares.

            A maior pedra de escândalo do conferencista foi afirmar: “a convicção é sempre luminosa: a fé cega gera o fanatismo.”

            O clero berrou que era um grave erro, que a fé era superior a tudo, isto é, que a fé era cega.

            A título de curiosidade transcrevemos um ligeiro trecho da doutrina de Júlio Maria.

            “Os judeus, meus amigos, perderam-se porque não souberam interpretar as escrituras; nós comprometemos várias vezes a causa do catolicismo, porque não sabemos, como o doutor de que nos fala o Evangelho, tirar da letra, que mata, o espírito que vivifica; porque não sabemos, como o doutor de que nos fala o Evangelho, tirar das profundezas da fé, não somente as coisas velhas, mas também as coisas novas.

            Esse horror da novidade na religião, por mais que simule, caricaturando-a, a bela virtude da fidelidade a Deus, obediência à igreja, não é entretanto nas coisas da religião senão o maior empecilho de Deus e da igreja.

            O vigário da Glória me deu indignado o trecho seguinte:

            “Bossuet disse que uma das qualidades da igreja é a sua constante novidade!
            Eu sei que a velha apologética não entendia assim. Para ela a igreja é uma coisa que Deus fez de um jato, completa, como que um aerólito que caiu do céu, pronto e acabado. Grande erro. Deus podia, é certo, fazer a igreja pronta e acabada, e entrega-la assim ao homem. Mas não quis. Como na ordem da criação Deus poderia ter feito o globo completo, ter logo adaptado o planeta a todas as necessidades físicas do homem, mas não quis e deixou que o próprio homem o fosse adaptando às suas necessidades, também na ordem religiosa, na ordem da redenção, Deus, que poderia fazer a igreja pronta e acabada, preferiu fazê-la conjuntamente com o homem; de sorte que a igreja não foi feita só por Deus, mas com o concurso do homem. Assim a igreja é eminentemente progressiva; progressiva em tudo, no ser, na doutrina, no amor, no próprio dogma. Progressiva no dogma?! Sim, por mais paradoxal que isto pareça, não há coisa mais progressiva do que um dogma; um dogma é a coisa mais progressiva deste mundo.”

            Francamente, o vigário da Glória tinha razão. “Não há coisa mais progressiva do que um dogma; um dogma é a coisa mais progressiva deste mundo!”

            Os retrógrados, os que queriam, como ainda hoje querem, jungir o destino do trono à religião, se exasperaram com o padre, destacando-se um deles, aliás primoroso jornalista satírico, para atacar, pelas colunas editoriais do Jornal do Commercio, o conferencista da Assumpção, que nos termos, que passamos a transcrever, se referia ao regime passado.

            “Não venho, pois, chorar saudades do passado. Vós todos conheceis as minhas ideias, o meu nenhum pesar pela extinção dos aparentes e enganosos privilégios dados à igreja no passado regime; não foram senão o pretexto para que o Estado concentrasse, com a supremacia política, a supremacia religiosa, graduando a seu bel prazer o sentimento católico da nação, cuja vitalidade religiosa entorpeceu enormemente na educação, no ensino, nas leis, na política, no parlamento, no clero, deixando em tudo isso estampado o cunho da sua incredulidade.

            Se eu viesse fazer tais lamentações, mentiria às minhas convicções, convencido como estou de que o regime foi pérfido à Igreja, inútil à religião, e de que por isso mesmo os partidos políticos desmoralizam-se, a dinastia perdeu o seu prestígio, e a espada não foi senão a vingadora dos direitos de Deus, conculcados no Brasil por meio século de ceticismo político.

            Por muito menos foi desterrado para a penitenciária do convento da Córsega o célebre pregador padre Didon, cognominado por Huysmans: “O Coquelin do púlpito.”

            Cedamos a palavra ao literato francês Jayme Séguier:

            “A celebridade do Padre Didon como orador sagrado data da época em que se discutia no Parlamento francês, galhardamente defendidas por Naquet,  a lei do divórcio. A Igreja, pela palavra de um certo número de pregadores, encetou nas diversas igrejas de Paris uma campanha resoluta contra esta lei, mas sem conseguir, pela insuficiência dos oradores, agitar fortemente a opinião. De súbito correu na cidade que do alto do púlpito de Saint Philippe du Roule se fazia ouvir uma voz singularmente poderosa, voz de tribuno e não de mero pregador, que vibrava contra a lei em discussão os golpes mais certeiros, encontrando argumentos originais e imprevistos, formulados em uma linguagem magnífica. Todo o Paris intelectual afluiu à aristocrática igreja, dando-se verdadeiros assaltos à nave, demasiado estreita para conter as ondas humanas que nela se apinhavam. Dominando essa turba de notabilidades, que constituíam um público excepcionalmente vibrátil e apaixonado, o Padre Didon, no seu púlpito, aprumando a sua alta e majestosa estatura, fez passar sobre ela o fluido irresistível do seu gênio oratório, agitando-a em calafrios de entusiasmo tanto mais violento quanto devia reprimir-se, a custo de resto, para não rebentar de vez em quando em calorosos aplausos.
            Ainda se não apagou na memória dos que então o ouviram a recordação dos raptos eloquentíssimos e também das audácias de expressão do extraordinário orador. Encontro em um jornal o seguinte trecho de uma dessas famosas conferências, em que o fogoso dominicano, discorrendo sobre o amor que liga, na hora do enlace nupcial, um ao outro os dois nubentes, exclamou:
            - O amor é eterno, ou então não é amor. Se o amor é eterno - e o é no seu juramento como na sua essência - pergunto-vos por quê e em nome de que ide vós, em um momento de decadência, de fraqueza e de paixão, voltar-vos contra e recordação dessa hora que deveria bastar a encher de perfume a vossa vida e a vossa eternidade. Pergunto-vos porque ousais dizer: “Era um ingênuo; enganei-me; era uma criança! Em nome da minha maturidade, em nome dos meus trinta anos, calco aos pés e rasgo esse contrato, que foi assinado pelo que há de maior, de mais santo no mundo, pelo que há de superior a tudo, pelo...” - Não! Não direi esse nome. Donzelas, dizei-o vós!”

            Admirem a habilidade deste movimento oratório, dessa supressão da palavra ‘amor’ no momento em que parecia cair dos lábios do tribuno, desta apóstrofe soberba às virgens amorosas, para que pronunciassem em vez dele o vocábulo sublime, que define “o que há de mais santo no mundo!”

            As autoridades religiosas acharam, porém, que este monge falava do amor entre o homem e a mulher com um pouco mais de exaltação do que convinha, e mandaram-no fazer um ano de penitência em um humilde convento da Córsega. O padre Didon foi admirável de obediência, de resignação e de disciplina.

            Cumpriu a sua pena sem uma palavra de protesto, empregando esse retiro em escrever o seu livro A Vida de Jesus, que contém páginas magníficas.

            De então para cá, o grande orador sagrado dedicou-se mais especialmente a assuntos de educação.

            Convém, no entretanto, acrescentar: essa obra, escrita por Didon, rendeu duzentos contos para sua ordem!

            Lacordaire, outro orador eclesiástico adiantado, escapou por um triz da excomunhão como o frade Didon.

            Lamennais, esse separou-se da igreja, e como ele outros que pretenderam tomar o voo do raciocínio, livres do freio do romanismo.

            Nosso espírito juvenil (tínhamos uns vinte e um anos mais ou menos) estava sedento de alguma coisa: melhor, de Cristianismo mais cristão, e a corrente do padre Júlio Maria era a corrente americana, a das doutrinas do arcebispo Ireland e cardeal Gibbons.

            Nosso espírito simpatizou com o americanismo; quebramos o primeiro elo da cadeia que nos acorrentava ao círculo de ferro do dogma.

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            Os Estados Unidos são, porém, o ponto onde a doutrina romana dezenove vezes secular, e essencialmente progressiva na sua imutabilidade, apresenta-se neste momento menos eivada de reacionarismo, mais liberal, mais evangélica, numa palavra, mais cristã.
(Oliveira Lima, Nos Estados Unidos, págs. 289)

            O americanismo é uma corrente do catolicismo anglo-americano, que tem tentado um acordo entre a igreja e o século.

            São seus promotores o padre Hecker, Brownson, Ireland e outros.

            O primeiro, descendente de holandeses, foi primeiramente noviço dos redentoristas da província alemã, donde foi expulso em 1857, por querer a fundação de conventos onde se pregasse em língua inglesa.

            Tal medida era contrária aos desejos dos companheiros de origem alemã; entendiam eles dever dedicar-se tão somente aos seus patrícios.

            No correr destes escritos, já mostramos ao leitor o acanhado sentimento de preconceito de raça que os frades germanos da S. Catarina alimentavam em seu convento e colégio.

            Nos Estados Unidos empenham-se no sentido de conseguir uma igreja à parte, isto é, dioceses, seminários, paróquias e escolas unicamente para os seus patrícios. O visconde de Maux apresenta esta feição do clero alemão como um dos perigos com que a igreja norte-americana terá de lutar.

            O padre Hecker, com o auxílio de parentes e de norte-americanos, fundou a congregação de S. Paulo, em 1858, congregação destinada a agremiar os convertidos do protestantismo. Dizia ele:

            “A forma governamental dos Estados Unidos é preferível a qualquer outra para os católicos. Ela é mais favorável à prática das virtudes que são condições necessárias ao desenvolvimento da vida religiosa do homem. Ela lhe deseja a máxima liberdade de ação, por conseguinte lhe torna mais fácil cooperar com o Espírito Santo. Com essas instituições populares, os homens gozam da máxima liberdade para cumprirem o seu destino. A igreja católica será, pois, tanto mais florescente nesta nação republicana, quanto os representantes da igreja seguirem mais de perto, em sua vida civil, a doutrina republicana.”[1]

            O ilustre publicista Sr. José Veríssimo, comentando os entusiasmos do Sr. Oliveira Lima, que acredita ser o americanismo o catolicismo do futuro, assim se expressa: “Eu, me parece que o contrário seria a verdade e que o catolicismo americano prepara um novo cisma, desde que um papa mais católico que político, um Pio IX por exemplo, se assente na cadeira de S. Pedro.”

            Tinha razão o ilustre literato: certa vez um jesuíta, ao qual fomos enviado para toma-lo como diretor espiritual, por estarmos muito adiantado em perfeição, recebeu, de empréstimo nosso, o livro de Elliot sobre a vida do padre Hecker.

            Depois de lê-lo, no-lo restituiu, recomendando-nos que o não emprestássemos a ninguém, por ser perigoso!

            A opinião era valiosa. Brownson, de quem falamos em princípio, era calvinista puritano; converteu-se ao catolicismo em 1844, depois de ter brilhado no púlpito de diversas igrejas evangélicas, seguindo a mesma orientação de Hecker. Ireland, arcebispo de S. Paulo de Minnesota, segue a mesma corrente, acompanhado por Keteller, bispo de Moguncia, Lavegerie, arcebispo de Carthago, Manning e Gibbons.

               Procura Ireland harmonizar a igreja e o tempo presente. Neste sentido fez notável conferência sobre “a igreja e o século.”

            Esses homens, porém, têm a liberdade de pássaros nas gaiolas; seus voos lhes dão constantemente com as cabeças nas grades férreas do dogma e da obediência papal.

            O clero da grande República pode e deve, em vez de ser chamado clero católico, chamar-se clero americano.

            Tratando-se uma vez de um casamento, recebemos gentileza de um prelado arquidiocesano; desejando testemunhar-lhe nossa gratidão, lhe oferecemos um livro do cardeal Gibbons intitulado: “O Embaixador de Cristo.”

            O arcebispo nos declarou, ao recebe-lo, não simpatizar com os americanos.

            O Jornal do Brasil nos deu a honra de publicar em sua primeira coluna um artigo nosso filiado àquela corrente. Publicou o segundo em um recanto de folha; o terceiro não publicou.

            Seu ilustre diretor nos declarou ser intolerante, e suspendeu-os logo à primeira observação do palácio arcebispal.

            Já havíamos abandonado as práticas devotas e só por puro diletantismo nos ocupáramos daquilo.

            Convencemo-nos: o americanismo era uma simples fantasia, e, assim fomos caindo na mais absoluta incredulidade.

            O catolicismo é um poder agonizante. Vive da pompa do seu culto pagão e de favoniar a vaidade dos esnobes e da roda chique.

            Na República americana, que tem ele feito em favor da raça negra?

            Nada! O ódio subsiste, e ele o alimenta. Há conventos e clero negros!

            O preto não é filho de Deus pelo acidente da cor, enquanto que Jesus recebeu a oblação dos reis magos, e um deles era negro.

            A igreja colocou sobre os altares S. Benedito, Santa Efigênia e S. Elesbão, etc. A igreja americana deve ter riscado do seu calendário esses santos que a maculam.

            O cardeal Gibbons não trepida em afirmar  “que os negros devem ser mantidos numa meia subordinação, fornecendo-se-lhes educação mecânica mais que educação com vista a profissões liberais, e sobretudo nunca despertando no seu ânimo instintos de dominação que nunca poderão ser realizados.”

            “O catolicismo liberal é apenas uma recordação, mal vista da igreja, que não cessa de condená-lo, e dos ortodoxos. A tentativa dos Lamennais, dos Lacordaire, dos Montalembert e outros grandes mais[2] transviados espíritos, falhou completamente; nem a igreja - e esta é ainda a sua força - admite outros intérpretes do seu sentimento senão ela, que deles deu o melhor compendio no Syllabus de Pio IX.” 

            O cônego Delassus escreveu um livro sobre o americanismo, intitulado L’ americanisme et la conjuration anti-chrétienne.

            A respeito desse livro escreve um colaborador da célebre revista católica de crítica Polybiblion:

            “Sujeitos famulentos de reclame, e pouquíssimo instruídos em teologia para compreender o verdadeiro alcance de suas idéias, esforçaram-se por amesquinhar as santas exigências da religião católica às vulgares ambições de um naturalismo e de um liberalismo filosófico mal disfarçado. Era tanto maior o perigo que incrédulos e ímpios, sempre a cóca do que pode enfraquecer a Igreja, gostosos desses avanços feitos com grande barulho do seu lado, favoniavam o imprudente movimento por mil reclames da imprensa quotidiana, dos entusiasmos factícios de algumas revistas mundanas, e das seduções dos seus fáceis elogios.
            De lados diversos partiu o grito de alarma; primeiro daqueles que verificaram o mal de visu e se haviam abeirado dos protagonistas do erro novo, ao depois por outros teólogos que não podiam conceber os progressos das doutrinas anticristãs mostrando-se em plena luz, desavergonhadamente, sem provocar reprovação suficiente. Após uma longa e paternal paciência, impressionou-se finalmente o Santo Padre, e por uma carta magistral, na qual a sua firme vontade se vela sob termos da maior caridade, condenou as temerárias doutrinas.”

            Nosso espírito no entanto necessitava de alguma coisa, de um ideal religioso; lançamo-nos a procurá-lo, e fomos travar conhecimento com o positivismo, do qual procuraremos dar uma pálida síntese no próximo artigo.

[1]  O padre Hecker, por Elliot, pags. 281.
[2]  José Veríssimo, Revista Litteraria.
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                               Estou tão persuadido das verdades que defendo que, quando considero o aturdimento geral dos princípios morais, a divergência das opiniões, o abalo das soberanias baldas de base,
 a imensidade das nossas necessidades e a inanidade dos nossos meios, parece-me que todo verdadeiro filósofo deve optar entre estas duas hipóteses: “ou que vai formar-se uma nova religião, ou que o cristianismo será rejuvenescido por algum meio extraordinário”.
José de Maistre – (Considerações sobre a França. Cap. V.)

                               Não há mais religião na terra; o gênero humano não pode permanecer neste estado... tudo anuncia não sei que grande unidade para a qual marchamos a grandes passos. 
(Idem, ‘Soireés de S. Petersburgo”. Vide  Jorge Lagarrique - “Lettres sur le Positivisme.”)

            Além do conhecimento pessoal que já havíamos travado com o positivismo, lembramo-nos de ir colher uma nova e fraca impressão de suas práticas, e fomos, há dias, assistir ao culto, para bem servir por essa forma aos leitores do Reformador. Tomamos notas, adquirimos um folheto necessário, e nos dispomos a dar cumprimento ao prometido em nosso artigo anterior.

            O apostolado positivista funciona à rua Benjamim Constant nº 30. É um templo triste e severo. Guarnece-o pequena grade de madeira pintada de verde. Sua frente faz lembrar a matriz da Glória, por causa das grossas colunas simetricamente dispostas na entrada. Sete degraus de tijolos dão acesso ao pórtico. O número simboliza as sete ciências. O templo tem três portas, por cima das quais se lêem os seguintes dísticos:

            Viver às Claras. Viver para Outrem. Ordem e Progresso.

            A porta do centro é a única que dá ingresso à igreja.

            Em frente a essa porta existe um paravento, tal qual na igreja católica. Quem não se aperceber, tem a impressão de entrar numa daquelas igrejas. Filas de cadeiras se estendem em toda a nave. Na capela-mor, separada do corpo da igreja por uma grade de madeira, estão dispostas cadeiras destinadas às senhoras.   Ao fundo do templo, em vez de um santo, existe um quadro: uma mulher esbelta, trajando de branco, traz ao colo uma criança; esse quadro representa a humanidade. Embaixo, em lugar do altar, há a tribuna apostólica. Rodeando, ou ladeando a tribuna, umas poltronas de madeira - penso - destinadas aos sacerdotes em solenidades. Aos lados das paredes da nave há uma espécie de nichos, em número de quatorze, sete de cada lado, à laia de altares laterais, e neles bustos coloridos, apoiados sobre peanhas negras de quase dois metros de altura, representando as encarnações dos diferentes ramos do saber. A principiar do lado esquerdo de quem entra, o primeiro que se divisa é Dante, representando a epopeia moderna. Segue-se Gutenberg, a indústria; Shakespeare, o drama moderno; Descartes, a filosofia moderna; Frederico, a política moderna; Bichat, a ciência moderna; Heloísa, a santificação feminina.

            Do lado direito, principiando do mesmo lugar, temos; Moisés, a teocracia inicial; Homero, a poesia antiga; Aristóteles, a filosofia antiga; Arquimedes, a ciência antiga; César, a civilização militar; S. Paulo, o catolicismo; Carlos Magno, a civilização feudal.

            Há uma verdadeira cinta de inscrições rodeando o templo internamente, por baixo das janelas superiores, que se assemelham a tribunas.

            O traje predominante é o preto. Augusto Comte vestia sempre de negro; deve ser esta a razão pela qual seus discípulos o imitam. Alguns trazem ao braço laços verdes, emblema do sacerdócio positivista.

            O vice-diretor vai ao púlpito, revestido de batina com vivos verdes, e um curto manteleo dessa cor lhe cai sobre os ombros.

            O verde predomina em tudo, até mesmo na capa dos livros; em certo tempo até se imprimiu nessa cor.

            O porão do edifício é ocupado pela tipografia.

            No interior da igreja, antes da nave, existe uma livraria, onde se dão e vendem livros e folhetos positivistas.

            No coro existe um órgão para tocar antes e depois do pregador, havendo canto em certas ocasiões, - cantos algumas vezes da liturgia católica, onde mudam a letra, como, por exemplo, na Ave Maria, de Mercadante, que mudaram para Ave Sofia.

            Em grandes festividades usam orquestra e canto coral.

            Convém no entretanto saber que só o Brasil e talvez a Inglaterra possuem capelas. Na França, berço do fundador da doutrina, o culto é feito no apartamento onde residiu Clotilde de Vaux, apartamento adquirido com o dinheiro angariado pelo vice diretor do apostolado brasileiro, que o foi inaugurar em Paris.

            Conhecido o edifício, passemos agora a expor a doutrina que nele se prega, não separando-a da pessoa do seu autor.

                                                                                *

            Isidoro Augusto Maria Francisco Xavier Comte nasceu em Montpellier, em 19 de janeiro de 1798, filho de Luiz Comte, tesoureiro na recebedoria de Hérault, e de Rosalina Boyer.

            Seus pais eram católicos fanáticos e partidários da realeza legítima e nesse ambiente o criaram.

            “Seus condiscípulos narram maravilhas de sua portentosa memória: podia repetir centenas de versos após uma só audição, e recitar de trás para diante todas as palavras de uma página lida uma vez.” [1]

            Aos 15 ou 16 anos, matriculou-se na escola politécnica de Paris. Foi, desde o liceu de sua terra natal, muito orgulhoso e indisciplinado. Na escola superior foi sempre cabeça de motim, tendo sido licenciado, e passando por isso a viver de lições particulares de matemática até 1817.

            Naquela época Augusto Comte travou relações com o conde de Saint Simon, chefe de uma seita que em seu desregramento ia até a promiscuidade. Tais relações romperam-se em 1825.

            Em 1826 abriu em sua residência um curso destinado a expor o seu sistema filosófico.

            Esse curso era frequentado por homens de valor intelectual. Na terceira preleção os ouvintes encontraram a porta fechada, devido a uma crise cerebral, que obrigou o filósofo a se internar no hospício de alienados do célebre alienista Dr. Esquirol. Convém saber: antes da abertura do referido curso, o professor havia contraído núpcias com Carolina Massin, cujo nome figurava no registro da polícia de Paris, na parte referente às mulheres públicas. Por exigência da lei francesa um funcionário de polícia assistiu o casamento, para legalmente ficar excluída do registro madame Comte.

            Contribuíram para a enfermidade mental de Augusto Comte os desregramentos de vida daquela que havia elevado à dignidade de sua esposa, e que o reformador acusava de se não haver regenerado. O casamento foi puramente civil, e por isso sua mãe, Rosalina Boyer, não o reconheceu como legitimamente casado.

            Durante a crise cerebral do filósofo, entendeu sua progenitora casa-lo religiosamente, para o que recorreu aos serviços do célebre abade Lamennais. O ato, a que inconscientemente se prestou o enfermo, agravou consideravelmente o seu estado de fúria.

            Sua mãe recebeu então em seus braços como legítima nora Carolina Massin, que foi dedicadíssima durante a enfermidade do esposo, opondo-se a que sua sogra o internasse, como queria, em uma casa religiosa.

            Durante a moléstia tentou Comte suicidar-se, atirando-se ao Sena, do qual foi salvo por um guarda real.

            Restabelecido, esse homem extraordinário, que passava horas e horas seguidas a meditar, ao ponto de uma ocasião ter dado a lume o fruto de uma meditação de 50 horas, e que - teremos ocasião de ver - era médium vidente; restabelecido, o seu primeiro trabalho foi uma crítica do tratado de Broussais sobre a irritação e a loucura, onde pôs em proveito a sua própria experiência.

                                                                               *

            As incompatibilidade entre os esposos iam se acentuando de tal maneira, por divergências de todo o gênero, que afinal Carolina Massin realizou o escândalo com que há muito ameaçava o esposo: a separação.

            Procurou a mulher de um proletário, chamada Sophia Bliaux, instalou-a como criada, recomendou-lhe o marido, po-lo ao corrente dos seus hábitos, dos cuidados delicados exigidos pela sua vida de labor, e, em seguida, afastou-se para sempre de teto conjugal.[2]

                                                                               *

            Nessa situação dolorosa se achava Augusto Comte, 1844, quando travou conhecimento com a irmã de um seu discípulo, a senhora Clotilde de Vaux, esposa abandonada de um coletor de rendas que se havia expatriado para lugar desconhecido, a fim de escapar à punição de um crime de peculato.

            “A 28 de agosto de 1845, na igreja de S. Paulo, à rua de Santo Antônio, ele apresentava com Clotilde, na pia batismal, o filho mais velho de M. Marie, irmão dela; foi durante essa cerimônia que Augusto Comte, com os olhos fixos em Clotilde, lhe votou a alma e uniu-se a ela por um casamento subjetivo que a morte não devia romper, e ao qual a posteridade havia de conferir a sua infalível consagração[3]

            Clotilde percebendo a paixão do filósofo, procurou esquivar-se. Causou isto grave enfermidade ao adorador, que por esse motivo recebeu de Clotilde, o oferecimento de um amor de irmã.

            O seu estado valetudinário e a paixão por Clotilde deram origem à religião da humanidade, cuja estrutura exterior temos visto, não permitindo a extensão deste escrito darmos neste número a estrutura interior, ou a doutrina, o que faremos no próximo artigo.

[1]  J. Lonchampt, Epitome da vida e escritos de Augusto Comte, pág. 5.
[2]  Vide Lonchampt, Ob. Cit., pág. 5.10
[3]  Idem acima (4).
 16      Igreja Positivista do Brasil

                “O  positivismo deve desenvolver para com o Catolicismo expirante as disposições, não de um invejoso rival, mas de um digno herdeiro, que, para manter a lei da continuidade, sobre a qual funda o conjunto de seus títulos, precisa de ser sancionado por seu predecessor”. Augusto Comte

            O catecismo positivista abre assim, em seu prefácio:

            “Em nome do passado e do futuro, os servidores teóricos e os servidores práticos da humanidade vêm tomar dignamente a direção geral dos negócios terrestres, para construírem enfim a verdadeira providência moral, intelectual e material, excluindo irrevogavelmente da supremacia política todos os diversos escravos de Deus, católicos, protestantes ou deístas, como sendo, ao mesmo tempo, atrasados e perturbadores.” [1]

            Queria Augusto Comte fundar uma religião científica, moldada no catolicismo.

            Lonchampt, do qual nos temos socorrido no correr destes artigos, assim condensa o pensamento do mestre:

            “O passado tinha-lhe ensinado que a religião é um dos elementos da ordem social; que, por toda a parte e sempre, ela tem um órgão distinto: um sacerdócio. Assim a política positiva tinha por objeto imediato a instituição de uma religião.”

            E mais adiante, na obra que temos citado, diz o referido biógrafo: “ele precisava, com verdades demonstradas, fazer o que antes dele tinham feito S. Paulo e Maomé com dogmas indemonstráveis.”

            Robinet, outro discípulo do reformador, assim se expressa:

            “A ciência explica hoje o mundo, o homem e a sociedade, os elementos constitutivos, suas propriedades respectivas, suas relações recíprocas, sem o socorro de alguma vontade arbitrária, divina, ou de qualquer entidade.” [2]

            O positivismo não indaga das causas primárias e finais. Augusto Comte teima em chamar religião a sua escola filosófica. Nunca pudemos compreender a razão: religião quer dizer: religar, unir; na acepção mais vulgar do termo, religião quer dizer: o ponto de encontro entre a criatura e o Criador; e se as palavras valem, é pelo que representam, ao contrário seria este um dos fenômenos menos importantes, visto como a superioridade da linguagem humana consiste em ser veículo de pensamentos e ideias.

                                                                                  *

            Augusto Comte era admirador entusiasta da companhia de Jesus, de José Demaistre e Hubbes.

       Procurou o geral dos jesuítas, pedindo a coadjuvação da ordem, desejando a fusão com o positivismo.[3]

            A religião, da qual se fez pontífice, consiste na deificação da humanidade, à qual se incorporarão os homens “aptos à assimilação” isto é, que se tornem verdadeiramente úteis à humanidade, com exclusão daqueles que não são para ela mais do que um fardo. Os animais úteis, tais como o cão, a cavalo, o boi, são incorporados à humanidade e como tais adorados pela grei positivista.

            O seu culto se divide em privado e público: o primeiro se subdivide em pessoal e doméstico.

            O pessoal consiste “na íntima adoração do sexo afetivo, conforme a aptidão natural de cada digna mulher a representar a humanidade.”

            Mãe, esposa e filha tais são os três anjos da guarda, ou, como dizia o chefe do positivismo, “deusas domésticas”.

            O culto doméstico serve de transição natural entre o culto pessoal e o público. Compreende os nove sacramentos positivistas que são:  apresentação, iniciação, admissão, destinação, casamento, maturidade, retiro, transformação e, por último, a consagração final, ou incorporação.

            O último é conferido sete anos após a morte.

            Todos são facultativos. As mulheres estão dispensadas do quarto, sexto e sétimo. Têm a sua fórmula sagrada: consiste em repetir as palavras: ‘o amor por princípio’. levando a mão ao occiput; ‘a ordem por base’, pondo a mão no alto da cabeça; ‘o progresso por fim’, pondo a mão na fronte.

            Huxley, comentando essa paródia do Catolicismo, diz: “a religião da humanidade é um catolicismo sem cristianismo”.

*
           
            No breve resumo que procuramos dar aos leitores, não podemos senão tocar de leve nos principais pontos.

            A biblioteca positivista consta de 150 volumes, dos quais destacaremos alguns, para amostra aos leitores, preferindo assuntos religiosos, pois a lista é complexa; uma espécie de index:

            A Bíblia completa; o Alcorão completo; A Cidade de Deus, por Santo Agostinho; O Amor de Deus, por São Bernardo[4]; As Confissões de Santo Agostinho; A Imitação de Cristo, original latino, com a tradução, em verso, de Corneille[5]O Catecismo de Montpellier, precedido da exposição da doutrina católica por Bossuet, e seguido do comentário sobre o sermão de Jesus Cristo por Santo Agostinho; História das Variações Protestantes, por Bossuet, Discurso sobre a história universal, pelo mesmo; O Tratado do papa, por Demaistre, precedido da política sagrada, também de Bossuet.

            Diante desta relação de obras que - note-se bem - fazem parte integrante da biblioteca positivista, o leitor perguntará certamente como nós: Mas que incongruência é esta? A religião que não cuida da imortalidade, que nega a Deus e ‘exclui irrevogavelmente todos os seus escravos’ adota os livros que conduzem a Deus e desenvolvem as tendências espiritualistas do homem, como, entre outros, a Imitação de Cristo?

            Mas no gênero contra senso, ainda há mais e melhor.

            Antes, porém, de o apresentar, mencionemos de passagem as festividades que celebra a religião positivista.

            1º de Janeiro - Festa da Humanidade; 19 de Janeiro - Nascimento de Augusto Comte, e Festa de Rosália Boyer; 5 de Abril - Morte de Clotilde de Vaux; 14 de Julho - A Revolução Francesa; 15 de Agosto - Festa da Mulher;  5 de Setembro - Morte de Augusto Comte e comemoração de Sofia Bliaux; 8 de Outubro - Festa de Clotilde e Augusto Comte[6]; 12 de Outubro - Descoberta da América; 31 de Dezembro - Festa Geral dos Mortos (11).

            Além disso, o Apostolado Positivista no Brasil celebra as seguintes ‘comemorações nacionais’: 21 de Abril - Comemoração de Tiradentes; 3 de Maio - Descoberta do Brasil e comemoração dos antecedentes portugueses e indígenas; 13 de Maio - Abolição da escravidão no Brasil; comemoração do concurso da raça africana e glorificação de Toussaint Louverture; 7 de Setembro - Independência do Brasil e glorificação de José Bonifácio; 15 de Novembro - Fundação da República do Brasil e glorificação de Benjamim Constant.

            Eis aqui ainda a lista de algumas iconografias que na igreja positivista são vendidas: Humanidade, quadro de Decio Villares; Virgem SistinaClotilde, quadro de Etex; Id., Esboço maternoId., Fotografias de autógrafos; IdSeu Túmulo (T. Sulmam); A. Comte, Seu túmulo (T. Sulmam); Id. Fotografias de autógrafos;  IdCasa (10, M. le Prince), Sulman; IdBusto em gesso (C. Lagarrigue); Id. Medalhão em gesso; Id. Quadro de Etx; Id. Heliogravura Dujardin;  Id. No leito da morte; Id. Seu nascimento (Eduardo Sá); Id. Sua morte (Id.); Templo da Humanidade, Antiga sala;  Id. 4º Centenário de Descartes; Id. Inauguração da nave; Id. Vista exterior; Id. Vista interior (diversas); Id. Diretores junto ao altar-mór; Id. Um casamento positivista; Id. Medalha de bronze; Id. Fachada definitiva; Id. Sala Daniel Encontre; Id. Sala Ternaux; IdSala Thurot; IdSala Jorge Lagarride; Id. Sala Francisco Eloi; Id. Fotografias dos 14 altares (uma); Clotilde no leito de morte;  Cartões postais de assuntos religiosos; Retratos e túmulos de grandes homens: Santo Ambrósio, Santa Teresa de Jesus, Jesus, Descartes, Cromwell, Heloisa, Dante e Beatriz, Danton, Tiradentes, José Bonifácio, Benjamim Constant, J. Lagarrigue, etc.

                                                                                   *

            Passemos agora a examinar algumas máximas positivistas. Tomemos para modelo as seguintes:
  
            Fórmula sagrada:

             “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim.”

            Máximas relativas ao Amor:
  
          Que prazeres podem exceder aos da dedicação? Não há nada mal no mundo senão amar.        
             Cansamo-nos de pensar, e mesmo de agir; jamais nos cansamos de amar.”

             Lei fundamental da Ordem Humana:

            Os vivos são, e demais em mais, governados pelos mortos.”

            Máxima relativa à Existência pessoal:

            O homem torna-se cada vez mais religioso.
            A oração é a base da cultura moral, intelectual e mesmo prática.”[7]

            Outras máximas:

            Os maus precisam muitas vezes de mais compaixão do que os bons.”
            O casamento tem por fim o aperfeiçoamento mútuo dos cônjuges.”
            Nenhuma sociedade pode conservar-se e desenvolver-se sem um sacerdócio qualquer.”
            Não há verdadeiro sacerdócio, sem que o padre seja médico, nem verdadeiro médico que não seja             padre; porque não se pode curar da alma sem curar do corpo, e reciprocamente.”
            Todas as funções do sacerdócio resultam de sua missão do ensino; público e gratuito; do dogma.”

            Aí têm os leitores, respigadas sumariamente, algumas das máximas fundamentais da religião da humanidade. Nelas se vê a incoerência do que quer a fortiori deter-se nos limites da matéria e dos sentidos, e é levado a falar da alma e a afirmar que “não se pode curar da alma sem curar do corpo, e reciprocamente;” que proscreve Deus e exalta ao mesmo tempo os benefícios da prece, etc.

            No próximo artigo nos ocuparemos dos últimos dias do transviado filósofo e dos fenômenos de vidência mediúnica que com ele se deram.


[1]  De sorte que, suprimindo o Criador, o chefe do positivismo substituía a sua providência pela dos “servidores teóricos e práticos da humanidade”, em cujo número se incluía ele próprio!
 No gênero das deposições, é a mais audaciosa de que há notícia.       
[2]  La philosophie positive, págs. 5.
[3]  Vide Padre Grubber, Auguste Comte, sa vie et sa doutrine.
[4] O apostolado fez uma edição dessa obra em francês.
[5]  São também indicadas as línguas em que devem ser lidas certas obras.
[6]  Nos anos bissextos, a comemoração é feita nos dias anteriores, sendo o dia 31 de Dezembro consagrado à Festa das Mulheres Santas. (Nota do Apostolado)
[7]  Augusto Comte dizia, a respeito do alcance lógico da oração: “O menino que reza dignamente exerce melhor seu aparelho meditativo do que o orgulhoso algebrista que, baldo de ternura e de imaginação, não cultiva, no fundo, senão o órgão da linguagem por meio de uma gíria, cujo bom emprego é muito limitado.” (Por Miguel Lemos e R. Teixeira Mendes.)