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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

31 de Janeiro


31 Janeiro

Cuidado! O caminho
nem sempre é seguro...
Vai, pois, de mansinho,
fugindo do escuro!...

 Inaldo Lacerda Lima 
in ‘Lira da Redençaõ”  (1ª Ed  1998  G E E Paulo de Tarso Goiânia Go)



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

30 de Janeiro


30 Janeiro


 Não se preocupe em mostrar
Os erros que os outros têm.
Entre os enganos da Terra
Deus sempre semeia o bem.

  Chiquito de Marais 
por Gilberto Campista Guarino 
in ‘Centelhas de Sabedoria”  (1ª Ed FEB 1976)


domingo, 29 de janeiro de 2012

Elementos da Filosofia Espírita



Elementos da
Filosofia Espírita
           
            A poucos passos da serenidade que nos proporciona a Doutrina Espírita, encontramo-nos com um mundo perplexo e atormentado pelas suas próprias criações transitórias, à semelhança de um grande barco agitado pelas vagas ameaçadoras de um mar revolto, com seus representantes anotando dolorosamente:

                        Nossa cultura é muito superficial hoje, e nossos conhecimentos são muito perigosos, já que a nossa riqueza em mecânica se contrasta com a nossa pobreza de propósitos. O equilíbrio de espírito que haurimos outrora na fé ardente, já lá se foi; depois que a ciência destruiu as bases sobrenaturais da moralidade, o mundo inteiro parece consumir-se num desordenada individualismo, refletor da caótica fragmentação de nosso caráter. Novamente somos defrontados pelo problema atormentador de Sócrates: como encontrar uma ética natural que substitua as sanções sobrenaturais já sem influência sobre a conduta do homem? Sem filosofia, sem esta visão de conjunto que unifica os propósitos e estabelece a hierarquia dos desejos, nós malbaratamos nossa herança social em      corrupção cínica de um lado e em loucuras revolucionárias de outro; abandonamos num momento           nosso idealismo pacífico para nos mergulhar nos suicídios em massa da guerra; vemos surgir cem mil políticos e nem um só estadista; movemo-nos sobre a Terra com velocidades nunca antes alcançadas, mas não sabemos para onde vamos, nem se no fim da viagem alcançaremos qualquer espécie de   felicidade.[1]

            O grito de perplexidade, diante dos quadros humanos de nosso mundo, não é articulado por quem ignore as luzes do Cristianismo. O seu Autor, num subjetivo respeito, anota no subtítulo de seu trabalho: “In my Father's house are many mansions[2]”, consagrando, na dinâmica do Cristianismo, a filosofia por plano do Universo, onde o homem se encontra com a Vida, buscando compreendê-Ia em sua unidade, origem e fins. Porém, embora essa sua sutil raiz cristã, não alcança equacionar o existencial pelo gênio da doutrina de Jesus e se mantém sem rumo definido.

            É o gemido profundo e sincero daqueles que se renderam, aturdidos, sob o peso de suas próprias obras e agora se indagam, por entre as brumas do panorama humano conturbado: o que fazer e como fazer para encontrar um roteiro seguro.

            Mas, o que para o filósofo é o horizonte da angústia, a incógnita que completou o vórtice reencenando, na ribalta da existência, a problemática da era socrática: a busca de uma ética que substitua as sanções sobrenaturais -- no Espiritismo é a fase do processo evolutivo que, pelo exercício de nosso livre-arbítrio, inscrevemos por contristador estágio de nossa maturação espiritual.

            Eis a ocorrência:

                        Na eclosão da Ciência, o homem foi bruscamente remetido para diante da realidade objetiva, induzido a desligar-se de fábulas e superstições, de fé dogmática e sistemas estanques de filosofia.    Essa repentina integração no existente promoveu o surgimento de duas atitudes mentais     diametralmente opostas:
                        - a daqueles que haviam rompido o cordão umbilical com sua natural tendência religiosa, gerando um monstro teratológico, fecundado pelo egoísmo-orgulho: o materialismo;
                        - a daqueles que não aviltaram a sua natureza íntima e que, pelo avanço da Ciência, se ajustaram para senhorear-se da fenomenologia mediúnica - que é de todos os tempos - já não mais no sentido mítico ou terra-a-terra de oráculos e pitonisas e sim na dimensão da racionalidade, surgindo com esses o espiritualismo científico: o Espiritismo-cristão.

            Esse comportamento filosófico, decorrente da inter-relação com a Espiritualidade, súmula das atividades evolutivas do espírito, teve a sua aurora com “O Livro dos Espíritos”, onde o seu coordenador esclarece: “Como especialidade contém a doutrina Espírita; como generalidade, liga-se à doutrina espiritualista, da qual apresenta uma das fases. Essa a razão por que traz sobre o titulo as palavras: Filosofia Espiritualista[3].”

            Vivendo Allan Kardec, codificador do Espiritismo, numa época de profundas renovações, em todos os campos dos conhecimentos e das atividades humanas, e sendo os ensinamentos que recolheu dos Espíritos a mais profunda e ampla renovação de conceitos, revivendo o Cristianismo do qual herdou o gênio, não se ocupou o mestre lionês em fundar uma escola sistemática, em que se criaria uma realidade temporal e que terminaria, como outras, por fugir do plano objetivo. Contrariamente ao condicionamento de criaturas a uma realidade, lançou as bases da compreensão dentro dos horizontes individuais, aceitando por inevitáveis os mais conflitantes comportamentos e as mais divergentes ideações, porque o homem sempre emerge mais enriquecido espiritualmente depois dos mergulhos nos oceanos de suas paixões.

            A filosofia Espírita, atingida pelo nosso crescimento intelectual e afetivo, não é, portanto, a construção de um sistema que encarcere o pensamento e que estabeleça uma realidade, impondo-se ao homem do exterior para o interior, limitando-lhe a área de experiências individuais com fé fundamentada no sobrenatural ou numa autoridade humana, já que o evento da Ciência dissolveu a ascendência dogmática e hierárquica.

            No processo do desenvolvimento integral, o homem primeiro treinou a sua razão, no contato direto com o meio tangível e mensurável pelos seus sentidos comuns. Despiu-se das gangas teológicas e das emoções primitivas, desordenadas, atingindo as fronteiras de sua maturidade. Já na divisa do imponderável, dominava regularmente as leis naturais mais próximas, ou seja, aquelas que falavam aos seus sentidos objetivos, tendo condições, então, para mensurar novas leis com o seu sentido objetivo, a mediunidade.

            Senhor de suas sensações, tendo frenado e ordenado a emotividade, desvinculando-se de escolas dogmáticas, por força de sua nova condição, estava apto à realidade psicofísica, seguindo a metodologia de suas experiências de Ciência, com a amplitude da racionalidade.

            O Espiritismo-cristão surgiu, assim, por coroamento de um laborioso processo evolutivo. Não, evidentemente, resultante da inventiva humana, mas como decorrência do novo estágio psíquico atingido em que o homem tem mais amplo descortino do Universo. Foi conquista, conjugada com a Espiritualidade Superior.

            A filosofia Espírita, à semelhança do próprio Sócrates, libertou-se dos cânones tradicionais e vem realizando, com substancional mutação de técnica e de forma, sem desmerecer mas sem utilizar o glossário técnico do filósofo profissional, o diálogo vital, na plataforma da razão. Não contribui para aumentar o acervo de páginas obscuras e nem de páginas rendilhadas por elegantes torneios de expressão, sem substância objetiva. Suas conclusões não são formas interrogativas de quem se aturdiu com o exame da Vida e nem são editais de falência de nossa Humanidade.

            É uma orientação assistemática do pensamento.

            O filósofo angustiado, perplexo, não entreviu, ainda, a nova ética espírita-cristã, substituindo as sanções sobrenaturais, assentada amplamente no raciocínio, em que se estabelece “a visão de conjunto que unifica os propósitos”. Seus liames, contudo, são bastante difusos e profundos, gerando as bases de uma nova civilização, entretendo-se com o homem para a reforma do atual estágio transitório de nossa civilização. Opera-se tal qual com a semente depositada no seio da terra e que arrosta as intempéries, fortalecendo-se para garantir o fruto nutritivo do amanhã.

Surge Emmanuel  

            O processo filosófico, inaugurado por Allan Kardec, numa doutrina fundamentalmente religiosa  - mas onde religião não tem o significado tradicional de dogma, de hierarquia sacerdotal, de ritos e paramentos exteriores; de culto organizado, nem de verdade única e integral ou mesmo de medida salvacionista -, após exatamente sessenta anos do aparecimento de “O Livro dos Espíritos”, viria aflorar, dinâmico, atual, com o Espírito de Emmanuel, através da mediunidade psicográfica de Francisco Cândido Xavier.

            No primeiro encontro do médium com o Espírito de Emmanuel ficou inteiramente definido o seu roteiro de atividades, pelas suas palavras e pelo símbolo, dentro do qual se fez visível:

          “Via-lhe os traços fisionômicos de homem idoso, sentindo minha alma envolvida na suavidade de sua presença; mas o que mais me impressionava era que a generosa entidade se fazia visível para mim, dentro de reflexos luminosos que tinham a forma de uma cruz. Às minhas perguntas naturais, respondeu o bondoso guia: - “Descansa! Quando te sentires mais forte, pretendo colaborar igualmente na difusão da filosofia espiritualista. Tenho seguido sempre os teus passos e só hoje me vês, na tua existência de agora, mas os nossos espíritos se encontram unidos, pelos laços mais santos da vida e o sentimento afetivo que me impele para  o teu coração tem suas raízes na noite profunda dos séculos[4] ...

            Nesse primeiro reencontro, Emmanuel fez uma síntese, figurada, dos propósitos e do processo da filosofia espiritualista que propagaria pelo mediunato de Chico Xavier. Era o continuísmo existencial, em planos que se inter-relacionam continuamente, embora nem sempre assinalados conscientemente pelo homem. E a cruz, que irradiava de seus reflexos luminosos, instrumento de regeneração consagrado pelo Cristo, seria a geratriz, através da qual seriam examinadas as atividades evolutivas de nossa Humanidade.

            É por demais expressivo esse quadro!

            A visão global do homem, em si considerado e compondo o complexo de sua marcha ascendente, só poderia ser alcançada com o auxílio de sabedoria que transcenda ao mutável e que possa abarcar o conjunto do fenômeno evolutivo, sem visão deformada pelo poliedro do condicionamento vital.

            O Sol integral é dos que estão acima dos horizontes.

            O Espírito de Emmanuel, por força do plano em que se situa e em decorrência de seus estágios evolutivos, desfruta dessa visão integralizada, dentro do gênio da doutrina do Cristo. Veio, assim, de espírito limpo. Não trouxe o propósito de organizar uma escola filosófica ou religiosa, nem pretendeu inaugurar uma sistemática inusitada e estranha ou mesmo de abordar a problemática filosófica para disseminar princípios transitórios em essência ou relacionados a uma determinada época ou evento. Revelou-se fiel ao Mestre, sem trair por um só momento a dinâmica da reconstrução de mundo novo com o Senhor Jesus e, em consequência, sem se distanciar ou conflitar com a Doutrina codificada por Allan Kardec, ditada pelo Espírito de Verdade,

            Todas as obras de Emmanuel podem ser analisadas do prisma da mais pura filosofia, representando a Filosofia Espírita, numa posição de extraordinário avanço direcional e horizontal, enriquecendo os temas e aspectos propostos e implícitos na Codificação Doutrinária. Seria oportuno, de futuro, uma tomada global, para ensaiar compreendê-lo na sua genialidade-cristã . Contudo, ficaremos restritos, por ora, ao exame de apenas quatro de suas produções:

                                   - Emmanuel
                                   - A Caminho da Luz
                                   - O Consolador
                                   - Roteiro[5] 

            A obra “Emmanuel”

            A linha central do pensamento Espírita estava perfeitamente delineada, em seus princípios
fundamentais, no pentateuco kardequiano, dispensando o seu continuador, o Espírito de Emmanuel, de retornar à origem primeira para reeditá-Ia. Desse marco básico deveria irradiar--se, abarcando detalhes e questões que aflorariam no campo do conhecimento humano, à medida que se processa o sazonamento de nosso senso-moral.

            A obra “Emmanuel” traz a dinâmica vital da filosofia Espírita, sendo valioso e precioso subsídio para construir a mente na renovação do Cristianismo-redivivo. Seu escopo central se destaca na titulação das duas grandes partes em que se divide:

                                   I - Doutrinando a fé
                                   II - Doutrinando a ciência.

            Submetendo fé e ciência à iluminação da doutrina espírita-cristã, realiza o seu Autor uma arrojada projeção do pensamento humano, revelando a objetividade da filosofia nova que não se deteria nas masmorras dos sistemas utópicos e nem se confinaria a enregelantes torres de marfim. É' o exame das cartas, com as quais a Humanidade faz o seu jogo de evolução, dentro dum realismo transcendental, sem o injetar de fel em nossa boca.

            Além da exposição em torno de “importantes questões que preocupam a Humanidade”, aborda dialeticamente quatro questões que têm gerado vasta literatura:

            1. Determinismo e livre-arbítrlo - onde elucida que o determinismo é o trajeto previsto para o viajor da evolução; contudo, o livre-arbítrio é uma lei irrevogável, pela qual pode o homem e as coletividades alterarem o seu destino.

            A proposição é a conciliação dos extremos - que são extremos tão somente para a nossa visão que, não fazendo uma tomada do todo, se confunde com os detalhes das partes. Explica a nossa responsabilidade nos atos, sem extrair-nos da marcha evolutiva a que nos submetemos.

            2. Tempo e espaço - não têm expressões objetivas, no plano das realidades eternas, são, contudo, figuras precisas ao homem como expressões de controle dos fenômenos de sua existência.

            Apresentando-nos tempo e espaço por condição transitória, permite-nos ilações sobre o eterno presente da vida humana, para almas de sublimada condição, abrindo o campo da fenomenologia de psicometria, de profecias célebres, de reexame existencial do pretérito.

            3. Espírito e matéria - podem ser considerados como estados diversos de uma essência imutável, para chegar-se a estabelecer a unidade substancial do Universo, fazendo-se preciso, porém, considerar a matéria como um estado negativo e o espírito como um estado positivo dessa substância.

            Que brilhante antecipação do energetismo!

            Se matéria fosse essência diversa do Espírito - sendo este a criação eterna do Pai - o tenderia um dia a desaparecer, como todas as formas-transitórias. Ocorrendo ser, todavia; estado diverso e não criação diversa, consubstancia a eternidade de sua essência e oferece os princípios da gradação da energia.

            4. O princípio da unidade - em que encarece que, mesmo nos planos elevados do Espírito, observa os princípios da unidade e variação, sem haver descoberto o seu ponto de interação. Todavia, como o princípio da unidade absorve todas as variações, crê que, sem perdermos a consciência individual no transcurso dos milênios, chegaremos a reunir-nos no grande princípio da unidade, que é a perfeição.

            Emmanuel não fecha, em definitivo ou dogmaticamente, as questões propostas, dando-nos uma visão relativa que podemos ter sobre as mesmas. Não deixa, contudo, de expender conceitos novos, numa linguagem direta e fundamentalmente inteligível, seguindo o mesmo estilo diáfano de Sócrates, rico de eloquente simplicidade nos problemas que nossa mente tornou complexos.

A obra “A Caminho da Luz”

            A razão examinou as religiões. Entrechocando-se com dogmas e hierarquias humanas, com princípios refratários ao progresso, com sistemas artificiosos que não suportaram a sua análise fria – verdadeiras furnas de morcegos que se vitalizam com as sombras da ignorância - o homem, obnubilado pelas suas ideações materialistas, concluiu que a religião é uma decorrência das civilizações.

            Foi tomada a causa por efeito.

            A religião, assim, teria de ser um elemento condicionado às civilizações, refletindo-lhes as
aspirações, os anseios, podendo, inclusive, excluir a ideia de Deus de seus princípios fundamentais, porque Deus seria uma consequência dos homens!

            Emmanuel, sem deter-se formalmente no exame desse teorema que precipita dolorosas
consequências psicofísicas, aviltando até sacerdotes e condutores de almas -- Emmanuel escreve, por Francisco Cândido Xavier: “A Caminho da Luz”, um livro magnífico que é “contribuição à tese religiosa elucidando a infância sagrada da fé e o ascendente espiritual no curso de todas as civilizações terrestres”.

            O ascendente espiritual é causa e não efeito.

            Pela proposição, as civilizações se originam do influxo espiritual, do crescimento psicofísico da Humanidade, cabendo aos homens renovarem-se nos princípios religiosos, renunciando de si, sem o louco tentame de estabelecer condições para que a fé sobreviva.

            A obra se inicia na gênese planetária “quando o orbe terrestre se desprendia da nebulosa solar, a fim de que se lançassem no tempo e no espaço as balizas de nosso sistema cosmogônico e os pródromos da vida na matéria em ignição, do planeta” e termina dissertando sobre o “Evangelho e o Futuro”, quando “luzes consoladoras” envolverão todo o orbe regenerado no batismo do sofrimento. O homem espiritual estará unido ao homem físico para a sua marcha gloriosa ao ilimitado, e o Espiritismo terá retirado dos seus escombros materiais a alma divina das religiões, que os homens perverteram, ligando-as no braço acolhedor do Cristianismo-restaurado”.

            Por conclusão, afiança: “Em nosso modesto estudo da história, um único objetivo orientou as nossas atividades -- o da demonstração da influência sagrada do Cristo na organização de todos os surtos da civilização do planeta, a partir de sua escultura geológica. “

            Essa interpretação filosófica da História, dentro da área Espírita-cristã, restabelece ao Cristo, para nossa visão, o seu ascendente multissecular sobre a nossa Humanidade. É-nos facultado compreender que Ele não se encontra entre os homens apenas há dois mil anos e nem acompanha de longe os lances de nossa evolução, após ter contribuído com seus exemplos. É' o eterno-presente, o sempre-hoje em nossa vida.

            Esmaece, também, o conceito do fortuito em História.

            Nossa evolução é dirigida no seu todo e, em linhas gerais, responde a um determinismo místico. No curso da caminhada, contudo, seguimos com nossas próprias pernas, escrevendo, dia a dia, as páginas de nossa história, no exercício do livre-arbítrio. Nos momentos cruciais, no entanto, somos beneficiados pela companhia de grandes Instrutores da Espiritualidade Maior, liderando-nos e retificando-nos a senda de nosso progresso.

            Embora as dores, estamos a caminho da Luz.

A obra “O Consolador”

            O Espírito de Emmanuel, no livro “O Consolador”, reformula e conceitua os departamentos da filosofia Espírita, desmembrando-lhe o campo da História, que transfere para o capítulo de Ciências Combinadas; o campo da Política, que agrega à Sociologia e o campo da Religião que, muito apropriadamente, afirma ser o ápice sublime de todo esforço humano e divino.

            É uma atitude extraordinária!

            Após esse desmembramento admirável, procede a uma classificação das cinco áreas da filosofia espiritualista com uma acuidade que só poderemos classificar de genial:

                                   I - Vida                        aprendizado
                                                                      experiência
                                                                      transição
                                  
                                   II - Sentimento            arte
                                                                       afeição
                                                                       dever

                                   III - Cultura                 razão
                                                                      intelectualismo
                                                                      personalidade

                                   IV - Iluminação           necessidade
                                                                       trabalho
                                                                       realização

                                   V – Evolução               dor
                                                                       provação
                                                                       virtude.

            Observemos, ainda, que, após tal disposição dos departamentos da filosofia Espírita, Emmanuel realiza uma triangulação que poderíamos dizer pragmática ou objetiva, induzindo-nos a aceitar a filosofia por orientação de vida e não por mero exercício ou ginástica mental. Assim, no primeiro departamento, nas bases, ele coloca: aprendizado e experiência, tendo por ápice a transição, que é a passagem do Espírito de um estágio inferior para outro imediatamente superior. No segundo departamento, ele ajusta como alicerces: arte e afeição, culminando em dever. No terceiro, encontramo-nos com a cultura e seus problemas, tendo razão e intelectualismo por fundamento da personalidade. Após, necessidade e trabalho promovem a realização. E, finalmente, dor e provação culminam com a virtude.

            Esse processo, ele só em si, é mensagem inteiramente nova.

            Toda a problemática da filosofia está em “O Consolador”, nos seus mais absorventes prismas, com a visão de unidade que conduz o homem ao encontro e à compreensão de si mesmo. É o autoexame do “conhece-te a ti mesmo”, a fim de burilar-nos, de aparar nossas arestas espirituais, aproximando-nos da interação do homem-físico com o homem-espiritual.

A obra “Roteiro”

            A visão global da vida gera a esperança.

            A certeza de que nos encontramos a meio caminho de um porvir dadivoso nos provisionará de imensurável consolação e coragem, transmudando nossas lágrimas de sinônimo de angústia em pérolas de fé raciocinada.

            A filosofia Espírita é renovação.

            Não poderemos satisfazer-nos com o brilho externo de seus conceitos inovadores, qual se estivéssemos frente a maravilhosa vitrine de sublimadas criações. Espiritismo não é doutrina salvacionista, isto é, de ingresso garantido a um paraíso desejável. O Cristianismo-redivivo é bússola que nos pede o esforço da mutação interior de valores, sem o dualismo de personalidades que aceitam-mas-não-fazem, acre-ditam-mas-não-se-transformam, pregam-mas-não-realizam .

            “Roteiro” é um roteiro autêntico, a partir de seu prefácio que é um diálogo, cuja resposta nos pertence:

             “Em verdade, meu amigo, terás encontrado no Espiritismo a tua renovação mental. O fenômeno terá modificado as tuas convicções. As conclusões filosóficas alteraram, decerto, a tua visão do mundo. Admites, agora, a imortalidade do ser. Sentes a excelsitude de teu próprio destino. Mas se essa transformação da inteligência não te reergue o coração com o aperfeiçoamento íntimo, se os princípios que abraças não te fazem melhor, à frente dos nossos irmãos da Humanidade, para que te serve o conhecimento? Se uma força superior te não educa as emoções, se a cultura te não dirige para a elevação do caráter e do sentimento, que fazes do tesouro intelectual que a vida te confia?”

            Repetiremos que Emmanuel, representando o continuismo da filosofia Espírita, é pragmático, ou seja, identifica o verdadeiro com o útil; revela a verdade, objetivando a reforma íntima. Não resolve e nem agita problemas: apresenta soluções, orientando o pensamento humano. Por isso, suas indagações são feitas sem ressalva, dialogando com nossa consciência:

            - Para que te serve o conhecimento?

            - Que fazes do tesouro intelectual que a vida te confia?

            A seguir, escreve quarenta preciosíssimas ponderações, no contexto de “Roteiro”, colocando-nos ante as grandezas infinitas do Universo, sem que nos ameace com desfechos derrotistas e amargosos. Sua grandiloquente afirmativa é de que o Universo não vale, para o Pai Celestial, o mesmo que uma simples alma, repleta de paixões e de defeitos e, por isso, a  criatura se reerguerá da posição a que se confiou, no movimento de sua ascensão espiritual.

                                                                       *

            Emmanuel não é grande demais para o nosso tempo.

            Temos de convir que o relógio divino nunca está sequer num segundo adiantado e nem um
segundo atrasado. O seu tempo é sempre tempo justo e, em decorrência, era tempo de Emmanuel, na filosofia Espírita.

            Com Emmanuel, a filosofia Espírita atingiu um cume, permitindo-nos ver mais além, entredivisar detalhes, mensurar esse complexo que se chama vida, projetando-se para o futuro como uma das mais sublimes revelações do Plano Maior.


Roque Jacintho

inReformador” (FEB) Junho 1970


[1] Will Durant, Filosofia de Vida, tradução de Monteiro Lobato, 7ª Edição, Cia Editora Nacional, páginas VIII e IX, de “Convite”.
[2] "Na casa de meu Pai há muitas moradas" -- Jesus.
[3] Allan Kardec, "O Livro dos Espíritos", in "Introdução ao Estudo da Doutrina Espirita", edição da FEB.
[4] Francisco Cândido Xavier, no livro "Emmanuel", do Espírito de Emmanuel, 6ª edição da FEB " página 11.
[5] Obras do Espírito de Emmanuel, psícografadas pelo médium Francisco Cândido Xavier, edições da FEB.


29 de Janeiro


29 Janeiro

O mundo materialista
tem resposta para tudo,
só que quando fala Deus,
ele logo fica mudo.

 Cornélio Pires 
por Clovis H R Coelho 
in ‘Cornélio Pires no Rio Grande”  (G E Messe de Amor  1ª Edição 1992)


sábado, 28 de janeiro de 2012

07 'Doutrina e prática do Espiritismo'


07                   * * *


            O nosso escopo, nas páginas que precedem, foi indicar a deficiência do estudo relativo à parte exterior e visível do homem, que é o corpo físico, para fornecer, por si só, o conhecimento integral da sua natureza. Esse estudo poderá, quando muito, familiarizar o observador com os fenômenos da vida vegetativa do individuo, mas será sempre incapaz de conduzir a uma satisfatória explicação do ser abstrato que o anima, com as suas complexas manifestações de pensamento, sentimento e vontade.

            Para atingir esse resultado, se se quer observar um método gradual - e é o que por nossa parte vamos adotando, para melhor compreensão dos temas esboçados - cumpre dilatar o campo de observação a uma ordem de fenômenos mais sutis que, embora relacionados com a fisiologia dos órgãos e das funções, particularmente do sistema nervoso, exorbitam contudo da sua capacidade explicativa.

            Queremos falar dos fenômenos da psicologia, propriamente considerada experimental, entre os quais sobreleva mencionar tanto os que têm feito objeto de pacientes observações, compreendidos no domínio geral do magnetismo, como os que, sob as denominações particulares de dupla vista e de clarividência psicométrica, constituem um dos aspectos mais interessantes e, por isso, mais dignos de estudo desse mistério vivo, tão cheio de atração, que é a alma humana.

            Pouco importa que a ciência acadêmica, sempre obstinada em seu dogmatismo e, de todos os tempos, voluntariamente escravizada ao preconceito e à rotina, houvesse por mais de um século repudiado o exame - sequer o exame - do magnetismo, para só muito mais tarde o admitir, modificado, porém, não só na denominação, substituída pela de hipnotismo, como no processo operatório (1), assim não conseguindo mais que uma restrição dos resultados a obter, limitados a algumas modalidades da sugestão e a certas aberrações  da personalidade.

            (1)  A diferença entre o processo do magnetismo e o do hipnotismo consiste em que naquele o operador, por meio de passes, conduz gradual e suavemente o sensitivo aos mais profundos estados da hipnotismo, ao passo que no outro o adormecimento é bruscamente provocado pelo olhar, por uma intimação verbal, ou pela fixação de um objeto brilhante, não raro produzindo graves perturbações no sistema nervoso.

            O magnetismo, que desde a mais remota antiguidade era conhecido praticado pelos grandes iniciados da Índia, do Egito e da Caldeia, como parte integrante das ciências ocultas, continuou a ser experimentalmente estudado por conscienciosos pesquisadores, como Puységur, Deleuze, Mesmer, Du Potet, La Fontaine, Durville e tantos outros, cujos numerosos trabalhos constituem valiosos subsídios para o estudo integral da psicologia. Mas foi sobretudo o coronel de Rochas que, aprofundando certos estados da hipnose  e fazendo convergir as suas observações no sentido particular da exteriorização da sensibilidade e da motricidade e - o que é mais importante - da "regressão da memória" e da "precognição" (2), conseguiu dilatar os surpreendentes descortinos que oferece a prática do magnetismo.

            (2)  Ver A EXTERIORIZAÇÃO DA SENSIBIUDADE, A EXTERIORIZAÇÃO DA MOTRICIDADE, OS ESTADOS PROFUNDOS DA HIPNOSE e As VIDAS SUCESSIVAS.)

            Que resulta das experiências de todos esses investigadores?

            Em primeiro lugar há que registrar a transferência das percepções sensoriais do indivíduo para uma zona exterior ao corpo físico. O sensitivo, mergulhado no sono magnético, perde a sensibilidade cutânea, podendo ser-lhe atravessados os músculos 'por um estilete, sem acusar a menor dor, ao mesmo passo que uma simples picada na região, exteriorizada do seu "duplo etéreo" é vivamente percebida.

            A visão por seu lado, não somente cessa de ser exercida pelos olhos (ao demais fechados, podendo mesmo ser vendados, sem a menor alteração par a o fenômeno) , como atinge uma penetração considerável. É assim que o sonâmbulo, adquirindo uma propriedade, de que hoje a ciência não se maravilha em relação, por exemplo, aos raios X, consegue ver através dos corpos opacos, ler uma carta encerrada no envoltório, descrever objetos em lugares hermeticamente fechados, inda que colocados a grande distância, e até produzir, nas mesmas condições, efeitos sensíveis e materiais.

            O que prova que há efetivamente, não apenas uma ação telepática, mas a exteriorização do sensitivo, no seu duplo ou veículo etéreo, que se transporta ao local determinado pelo magnetizador, é que nalguns casos, quando o sensitivo não conhece o lugar a que é enviado, é preciso ir lhe indicando o itinerário a percorrer, de modo que, lá chegado, ele descreve a casa, o aposento em que penetra e os objetos que examina, assim confirmando a realidade da sua presença in loco.

            Esse fenômeno, ao demais, da objetividade e exteriorização do duplo etéreo do sonâmbulo foi constantemente comprovado, em suas numerosas experiências, pelo coronel de Rochas, a quem se deve uma classificação, de alguma sorte rigorosa, dos sucessivos graus da hipnose, segundo os característicos particulares de cada um.

            Assim, conseguiu ele determinar que, a partir do primeiro estado (normal ou de vigília), o sensitivo apresenta, no estado segundo, correspondente ao primeiro grau da hipnose, o seguinte quadro sintomático: aparência de vigília, com a posse de todos os sentidos; sugestibilidade extrema, acompanhada de insensibilidade cutânea, que persiste em todas as seguintes fases. Memória normal.

            No segundo grau, o sensitivo só percebe, o magnetizador e as pessoas com as quais o puser ele em relação.  Acentuada sensação de bem-estar, diminuição da memória normal e da sugestibilidade e fixação da da zona de sensibilidade exteriorizada a cerca de 35 milímetros da pele. O sensitivo percebe os eflúvios exteriores dos corpos organizados e dos cristais.

            Ao terceiro grau corresponde um acréscimo de exteriorização formando uma nova camada sensível a 6 ou 7 centímetros da primeira e de menor sensibilidade. Repercussão das sensações do magnetizador no sensitivo, mediante contato; desaparecimento da sensibilidade cutânea assim como da maioria dos fatos, permanecendo apenas a da linguagem.
           
            O quarto grau, ou estado, da hipnose se caracteriza por um aumento perceptivo das sensações do magnetizador pelo sensitivo, mesmo sem contato, a distância, porém, não muito grande, O sensitivo não. percebe mais os eflúvios exteriores dos corpos, mas vê os órgãos interiores dos seres vivos. Já não é sugestível e revela ter completamente perdido a memória de sua própria vida. Não conhece mais que duas pessoas - ele e o magnetizador, - mas não lhes sabe mais os nomes.

                "A partir desse estado, geralmente - diz o coronel de Rochas (1) - um pouco antes ou um pouca depois, conforme os sensitivos, a sensibilidade, que até então se exteriorizava em camadas concêntricas à periferia do corpo, se condensa, formando em primeiro lugar, a cerca de um metro à direita do sensitivo, uma coluna nebulosa azul, da sua estatura aproximadamente, e depois, ao seu lado esquerdo, uma outra coluna análoga encarnada, vindo finalmente a se reunir as duas, para formar uma só coluna, cuja forma cada vez mais se acentua, até constituir o fantasma do sensitivo.

                (1) Ver LES VIES SUCCESSIVES, 2ª parte, cap. I, “O sono magnético e o corpo fluídico”, págs. 37 e 38.

                "Esse fantasma, ligado ao corpo físico por um laço luminoso e sensível, que é como o seu cordão umbilical, adquire mobilidade cada vez maior ,e obedece à vontade. Possui uma tendência muito pronunciada para se elevar até uma altura que não pode ultrapassar .e que parece depender do grau de evolução moral e intelectual dos sensitivos, os quais veem em torno de si flutuarem seres que apresentam uma cabeça com um corpo terminado em ponta como uma vírgula. Sentem-se felizes por haverem saído do seu envoltório físico, do seu trapo, conforme uma expressão que empregam muitas vezes e têm repugnância de voltar a ele .

                "Todos esses fenômenos - observa ainda o Sr. de Rochas - se desenvolvem e se acentuam através uma série de estados, separados por fases de letargia, que se sucedem como os dias e as noites. "




28 de Janeiro



28 Dezembro

Nós somos filhos de Deus.
Nós não nascemos do nada.
Fé redobrada em Jesus
é subida sem escada.

 Cornélio Pires 

por Clovis H R Coelho 
in ‘Cornélio Pires no Rio Grande”  (G E Messe de Amor  1ª Edição 1992)



sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

03/03 Docetismo


03/03 Docetismo

            Prendendo-se, frequentemente, à imprescindível necessidade do sofrimento material, carnal, de Jesus, os contraditores dos docetas esqueciam-se do inenarrável sofrimento moral ou espiritual do Mestre. Ainda mesmo que o Cristo nada sofresse dos homens, bastaria, para nos remirmos, a sua vinda ao abismo escuro da minúscula Terra, com todas as angústias que essa vinda deveria acarretar-lhe ao Espírito, a fim de trazer-nos a sua palavra iluminada.

            Atualmente, os espíritas, estudantes da Terceira Revelação, aceitamos, por bem provável, o sofrimento material de Jesus, visto que este, possuindo um envoltório fluídico condensado (se assim nos permitem exprimir), e portanto matéria em si, se tornava, por conseguinte, suscetível aos choques da matéria.

            É bom não esquecermos de que tal matéria condensada é tão sensível que, ao ser tocado um Espírito materializado, sem a permissão deste, nas sessões de experimentação, comumente a ação se reflete dele para o médium, que a sofre intensamente; assim, pois, podemos asseverar que tal matéria é sensível, sensibilíssima mesmo.

            Ao contrário dessas materializações «artificiais», de laboratório, em geral imperfeitas e dificultosas, cumpre refletir atentamente sobre as aparições espontâneas, perfeitíssimas, quase diríamos carnais, distintas mesmo daquelas outras, e em tudo nenhuma relação parecendo mostrar com determinados médiuns, antes nos deixando supor a completa independência de sua formação, inclinando-nos a admitir que elas, as aparições, apenas se utilizaram dos recursos extraídos da Natureza.

            Nestes últimos «fantasmas», a que chamamos agêneres, é admissível que os choques materiais, por eles recebidos, não se reflitam no exterior, qual se verifica com os Espíritos materializados em nossas sessões, os quais, quando o permitem, se deixam tocar pelos circunstantes vivos, sem isso trazer qualquer perturbação ao médium. Assim, se o Espírito materializado pode conservar em si mesmo a ação do choque, é admissível e lógico que o agênere igualmente poderá sentir o choque, sem o transmitir. Dessa forma, não vemos por onde negar a príorí que os seres fluídicos (agêneres) sejam insensíveis à dor[1].

            Em vários dos chamados «livros apócrifos», encontram-se ideias docetistas. Antes de mencioná-Ios, vejamos a significação precisa da denominação que Ihes foi dada.

            O Protestantismo considerava apócrifos os chamados deuterocanônicos do Catolicismo. Os católicos reservam o nome - apócrifos - aos escritos que a Igreja rejeita do cânon ou catálogo público das Escrituras, por neles se encontrarem «coisas corrompidas» e contrárias à verdadeira fé (católica, é claro!). Existem, ainda, os apócrifos cujo motivo de exclusão do cânon é desconhecido. Tais livros, dizem mais, dados por seu título ou teor como obra de autores inspirados, não podem ser justificados neste sentido, ainda que sejam admitidos como inspirados por algumas Igrejas particulares ou por heterodoxos. A bem dizer, nem todas essas obras foram impugnadas por alguns dos venerandos Padres e Doutores da Igreja, que as consideravam ligadas à inspiração divina.

            Comentando esses apócrifos, disse Orígenes: “De modo geral, não devemos rejeitar em bloco tais obras, das quais podemos extrair alguma utilidade para esclarecimento de nossas Escrituras. Demonstra tal proceder a ausência de um espírito sábio em compreender e aplicar o preceito divino: Provai tudo e retende o que é bom.”

            Foi num concílio realizado no século V, em Roma, que parece ter sido decretado, pela primeira vez, sob o papado de S. Gelásio I, um catálogo de livros canônicos, cuja compilação definitiva crê-se ter sido terminada no começo do século VI. Esse papa, já possuído da «heresia da dominação», na expressão de Arnaud, perseguiu os maniqueus na cidade de Roma, expulsando-os e queimando seus livros.

            Os deuterocanônicos, obras que por muitos séculos foram postas em dúvida quanto à sua autenticidade, surgindo mesmo discussões entre os Teólogos e entre os Padres da Igreja, receberam, mais tarde, a sua inclusão no cânon, por conseguinte após as obras já nele existentes, e daí a origem de sua denominação de deuterocanônicos. Entre muitas delas, temos as seguintes: o livro de Tobias; o de Judite; o Eclesiastes; as Epístolas de Pedro; a Epístola aos Hebreus; a 2' Epístola de João; o Apocalipse de João, etc.

            Antes dessa época, os Evangelhos e os Atos apócrifos eram largamente espalhados e consultados entre os cristãos.

            Na Epístola de Barnabé (apócrifa), obra considerada autêntica por Orígenes e S. Clemente de Alexandria, no versículo 12, há: "O Senhor diz que a influência da carne dele é deles." Parece aí haver uma idéia docética, como pensa Harnack, se bem que outros não aceitem o mesmo.

            Serapião de Antioquia proibiu a leitura do Evangelho de Pedro, na suspeita de nele haver corruptelas por parte dos docetas, talvez por conter o versículo 10 uma referência a Jesus, na cruz, nos seguintes termos: "Mas ele permaneceu mudo, como alguém que não sente dor alguma."

            Exceto os Atos de Paulo, todos os demais Atos apócrifos - dizem os ortodoxos - encerram mais ou menos idéias docetistas. Alguns desses foram reunidos numa coleção, na segunda metade do século II, por Leucius Charinus que, segundo Santo Epifânio, bispo de Constância, fora um discípulo de João, o Evangelista, e tal coleção foi ainda assinalada pelo bispo de Astorga, no século IV.

            Nos Atos de João conta-se que, na Última Ceia, João, o apóstolo, encostando-se ao peito do Cristo, sentiu-o não resistente; ao ser sepultado, o corpo de Jesus estava por algum momento aparentemente sólido, e logo em seguida ele se tornou «imaterial e incorpóreo como se nada fosse». Ainda os mesmos Atos dizem que a crucificação foi somente em aparência, e que o Cristo apareceu a João, no Monte das Oliveiras, e lhe explicou o fato.

            Os Atos de Pedro relatam que Deus enviou seu Filho "através da virgem Maria". Considerando aparente a Paixão, diz que "o sofrimento que se manifestou na Paixão do Cristo foi totalmente diferente do que em geral se supõe".

            Os Atos de André relatam que Jesus é "imaterial, puro, imponderável", etc ...

            Nos Atos de Tomé, frequentemente é evidenciada a antítese entre matéria e espírito, de sorte que a expressão neles existente - "Jesus é espírito" parece conter uma ideia de fundo docético. S. Cirilo de Jerusalém, referindo-se ao termo espírito, diz que, de um modo geral, assim se denominava todo aquele que não possuía um corpo pesado e denso.

            Um ilustre sacerdote de Letchworth (Inglaterra), estudioso de tal assunto, observa que, fora esses pontos, de resto todas essas obras apócrifas falam de Jesus muito semelhantemente aos livros canônicos, convindo, entretanto, frisa ele, «sejam lidas somente nos círculos ortodoxos, não devendo parar em outras mãos, por causa de sua tendência herética».

            O nome geral de docetas foi dado a representantes de várias seitas, aos discípulos de Simão, de Menandro, de Saturnino, de Basílide, de Valentim, de Dositeo (discípulo de João, o Evangelista) etc., visto que todos eles concordavam na mesma ideia a respeito do corpo de Jesus, ainda que estivessem divididos sobre vários pontos de doutrina.

            Basílide, morto no ano 130, redigiu um comentário sobre o Evangelho, primeira obra desse gênero de que se tem conhecimento. Esposava ele ideias interessantes com relação ao porquê do sofrimento da Humanidade terrena. Dizia, então, que o homem sofre neste mundo porque sua alma pecou em vida anterior à sua atual união com o corpo, sendo essa união um estado de expiação de que ela somente sairia depois de se haver purificado em passando sucessivamente de corpo em corpo, até o cumprimento da justiça divina, que não dava outros castigos, mas que, contudo, não perdoava senão as faltas involuntárias. Era esta ideia reencarnacionista, clara, consoladora, que, anexada à teoria do corpo “aparente” de Jesus, recebia igualmente a pecha de heresia.

            Simão, o Mago, que se acredita ter sido aquele citado nos Atos dos Apóstolos, disse que Jesus viera entre os homens como um homem, se bem que não fosse de forma alguma um homem.

            No século H, Valentim, Bardesana, Apeles, Marinus e outros admitiam o corpo do Cristo, embora fosse um corpo espiritualizado, depurado, e que somente passou através de sua mãe, mas não foi formado por ela. Valentim ensinava que Jesus possuía um corpo «psíquico», especial, não sujeito à destruição e às leis normais da matéria. Nasceu de Maria, passando através dela, que permaneceu virgem, como a água passa através de um conduto, sem nada receber ou modificar, visto já possuir ele um corpo «lá em cima». Valentim afirmava ter recebido esta doutrina de um discípulo de Paulo.

            Heracleon, discípulo de Valentim, escreveu comentários sobre os Evangelhos de Lucas e de João. O comentário a respeito deste último era bem conhecido de Orígenes que, se bem não concordasse inteiramente com a exegese de Heracleon, considerava-a, pelo menos, com respeito.

            Bardesana, tido pelos Padres de sua época como homem cheio de talentos e virtudes, negara a ressurreição carnal. Reconhecia a imortalidade da alma, a onipotência e providência de Deus, e dizia que Jesus tivera um corpo espiritual. Parece haver crido na existência de satanás ou do demônio, que não era, porém, criatura de Deus, nem administrava parte alguma do mundo. Buscava Bardesana essa saída para poder explicar a origem do mal, que de Deus não poderia resultar. Para ele, o mundo e o homem foram criados por Deus, mas o homem, no princípio, não era um ser revestido de carne e, sim, uma alma unida a um corpo sutil e conforme à sua natureza. Essa era, pois, a alma que fora formada à imagem de Deus e que, enganada pelas astúcias do demônio, havia transgredido as leis do mesmo Deus, o que obrigara o Criador a expulsá-Ia do paraíso e a ligá-Ia a um corpo carnal, uma espécie de prisão, que Bardesana dizia serem as túnicas de pele com que Deus havia coberto Adão e Eva, depois do pecado.

            Malgrado essas ideias estarem eivadas dos sentimentos e da compreensão vigentes naquela época, são elas merecedoras de acatamento.

            Judiciosamente, em conclusão à doutrina esposada, Bardesana diz que a união a um corpo carnal é, pois, consequência do mesmo pecado e, em vista disso, Jesus, espírito puro, imaculado, não poderia ter tomado um corpo carnal. Igualmente, prosseguia ele, devido ao mesmo princípio, não ressuscitaremos com o mesmo corpo que temos sobre a Terra, mas, sim, com um corpo sutil e celeste, que deve ser a habitação normal de uma alma pura e inocente.

            Harmonius, filho de Bardesana, mais claramente que o pai afirmou a reencarnação. Marinus prosseguiu com o ensino dessas doutrinas.

            Segundo Apeles, Jesus realmente não nasceu da virgem Maria; todavia, não se manifestou sem um corpo real. Dizia, então, que Jesus, servindo-se do material das estrelas e "das mais altas substâncias da Natureza", compôs um corpo e nele habitou durante todo o tempo que passou neste mundo. Ressurgido depois de três dias, mostrou aos discípulos as marcas das mãos e o lado, a fim de convencê-los de que era ele mesmo em pessoa, em carne e osso, e não um fantasma - prossegue Apeles, argumentando. Após aparecer, durante quarenta dias, com essa carne, o Cristo, tendo rompido o laço que o prendia a semelhante corpo, restituiu a cada um dos elementos aquilo que lhes pertencia, retirando-se, em seguida, para o Pai. Assim fazendo, ele não quis conservar nada de estranho, pois apenas se servira daquela carne, momentaneamente, enquanto dela tinha necessidade.

            Em verdade, Apeles teve razão ao considerar o corpo de Jesus uma verdadeira carne e esta é a mesma impressão que temos com os Espíritos materializados, que às vezes se nos apresentam perfeita e legitimamente «carnais».

            Marinus e outros, seguindo a Bardesana, diziam que o Cristo possuíra um corpo "celeste", "astral", não tendo, pois, nascido de mulher.

            O docetismo radical, de que nos fala o teólogo protestante Harnack, negava toda a realidade do corpo de Jesus; este não nascera absolutamente em nenhum sentido, e durante toda a sua vida humana foi um perfeito fantasma.

            Embora Saturnino e Cerdo, os mais radicais, tenham aventado tais ideias, estas, bem analisadas, tinham razão de ser, pois Jesus não passara pelo nascimento normal na Terra e o seu corpo participara dos caracteres de um "corpo fantasma".

            Saturnino, gnóstico do século I, dizia, segundo Santo Ireneu, que o Salvador não foi nascido, foi incorpóreo, sem matéria real, sine figura, assemelhando-se a um homem aos olhos da Humanidade.

            Antes de continuarmos, devemos lembrar aos leitores que a maior parte das questões em estudo não provém dos escritos dos docetas, escritos que, embora produzidos, ou se perderam ou sofreram a destruição. Quase tudo o que relatamos nos foi legado por alguns dos primeiros Pais da Igreja (Inácio, Ireneu, Tertuliano, Hipólito, Epifânio, etc.) que se insurgiram contra tais ideias, e, assim, é bem provável que eles tenham, consciente ou inconscientemente, deturpado, algumas vezes, o sentido oculto do pensamento dos docetas.

            Cerdo (ou Cerdon) explicava que o "Cristo, o Filho do Deus Altíssimo, manifestou-se sem nascer de Maria, ou seja, sem nenhum nascimento na Terra à semelhança dos homens".

            Para Marcion, zeloso cristão, Jesus não fora, de maneira alguma, um homem, pois não tinha um corpo real; apareceu, ao contrário, “sob a semelhança de um homem” (Epístola aos Filipenses, 2 :7). E diz ainda: “O Cristo pareceu sofrer e ser sepultado.” Há também referências sobre Marcion em que este se baseia em Mateus, 12:48, na Epístola aos Romanos, 8 :3, além de outras passagens, em apoio do Docetismo.

            Contra Marcion escreveu Tertuliano, para provar que o Cristo não teve um “corpo fantástico”, embora este Padre acreditasse que os anjos possuem um corpo que lhes é próprio, passível de se transfigurar em carne humana, tornando-se, por algum tempo, perceptíveis aos homens, e com estes podendo manter relações visíveis.

            Ptolomeu, gnóstico cristão da escola de Valentim, de meados do século II, foi dos que mais circunscreveram as ideias docetistas. Dizia que o Cristo fora, de fato, um homem real, porém a sua substância ou natureza era apenas composta dos elementos psíquico e pneumático, isto é, do perispírito e do espírito propriamente dito, como hoje diríamos.

            O elemento psíquico, mesmo entre os filósofos não materialistas, tinha o sentido de um elemento de natureza física ou animal, formando como que o intermediário entre o espírito e o corpo, e constituía o princípio imediato da vida. O pneuma constituía o sopro imortal, o princípio espiritual da vida espiritual ou intelectiva. Ptolomeu dizia que a natureza psíquica de Jesus permitiu-lhe sofrer e sentir dor, ainda que nada possuísse de grosseiramente material.

            Abstinham-se os docetas da eucaristia, visto que não reconheciam representar a carne e o sangue de Jesus.

            Os ofitas continuaram com as mesmas ideias que, no século VI, foram retomadas por alguns eutiquianos e monofisitas.

            O Monofisismo surgiu em princípios do século III, amoldando-se às ideias apolinaristas (das quais trataremos mais adiante). No século VI, sofreram os seus adeptos as mais cruéis perseguições, sendo forçados a emigrar para o Egito. Nessa época, o Monofisismo dividiu-se em duas seitas, pois Juliano, bispo de Halicarnasso, discordando quanto à natureza do corpo de Jesus, afirmava, então, que era fazer injúria à sua divindade supor que o Verbo se unira a uma carne terrestre e corruptível como aquela dos homens “animalizados” e “mal-cheirosos”. O Cristo, em sua passagem pela Terra, tivera o seu corpo sempre incorruptível, como aquele de Adão antes da queda, e igual àquele que os outros o creem ter tomado após a ressurreição; foi sempre isento da corrupção e das enfermidades, bem como da punição do pecado. Completando os seus pensamentos, Juliano diz que, se o Cristo sofreu, o fez voluntariamente, para salvar os homens, mas não por efeito de sua natureza. Os que professavam esta doutrina foram chamados aftartodocetas, em contraposição com os corruptícolas. Procedendo do Egito, os incorruptícoIas espalharam-se por várias regiões, tendo sido dominantes na Armênia.

            O Maniqueísmo, que contém ideias docéticas, surgido no século III, sofreu muitas perseguições, conseguindo, contudo, espalhar-se pelo Oriente e pelo Ocidente, declinando somente no século XII, devido à violenta oposição da Igreja.

            Os maniqueus acreditavam na reencarnação, por julgarem-na indispensável ao progresso do espírito humano, visto que, alegavam eles, não é possível que todas as almas adquiram perfeita pureza no decurso de uma única vida mortal.       

            As almas que persistem no pecado, após certo número de revoluções, são então entregues aos demônios do ar, para serem alimentadas e domadas. Depois dessa dolorosa penitência, voltam as almas a outros corpos, como que para novas escolas, até que, tendo adquirido o grau de purificação suficiente, se transportam, atravessando a região da matéria, ao lugar a que os maniqueus denominam «coluna da glória». O Espírito Santo, que está no ar, assiste continuamente as almas, espalhando sobre elas suas preciosas influências.

            O maniqueísta Fausto, entre outros, descreve o corpo do Mestre como não sendo humano, mas, sim, formado de elementos celestiais.

            No século XII floresceu na França meridional a seita neomaniqueana dos albigenses. Admitindo, como os cátaros, os princípios antagônicos - o mau e o bom - diziam que Jesus não podia tomar um corpo genuinamente humano, porque viria debaixo do controle do princípio mau. Por conseguinte, seu corpo era de natureza celestial e com ele penetrou a pessoa de Maria; nasceu dela e sofreu, apenas aparentemente.

            Entendiam, ainda, que a redenção do Mestre não foi “operativa”, mas unicamente instrutiva.

            Inúmeros concílios católicos foram realizados com o fim de dar combate à doutrina dos albigenses, a qual, todavia, se propagava cada vez mais rapidamente. A convite do papa, organizaram-se cruzadas militares sob os auspícios de alguns países, as quais desbarataram os albigenses, cometendo as maiores atrocidades. A Inquisição, instituída para esse fim, prosseguiu no bárbaro trabalho de limpeza, e conseguiu, no começo do século XIV, o quase total desaparecimento dessa seita.

            Além de outras diversas seitas que encerravam ideias docéticas, alguns anabatistas foram docetas; Maomet, no Alcorão, veladamente parece referir-se ao corpo de Jesus, e chega a dizer que «Jesus, o filho de Maria, o Verbo e o Apóstolo de Deus, não foi crucificado senão em aparência»; e o próprio Budismo, numa de suas seitas, apresentou, com relação a Buda, tendência docética.

            Só agora escreveremos sobre Apolinário, visto que, ao que nos parece, suas ideias não interessam ao estudo a que nos propomos, como veremos.

            Alguns autores, ao tratarem do corpo de Jesus, referiram-se às concepções apolinaristas no que estas dizem ter sido impassível o corpo do Cristo, e que descera do céu ao seio da Virgem, mas que não nascera dela.

            Desejando comprovar a veracidade de tais afirmações, encontramo-Ias, de fato, no Grande Dicionário Universal do Século XIX, de Larousse, e em alguns outros dicionários talvez calcados nessa obra, que, sucintamente, sem trazer qualquer relação bibliográfica, nos pareceu ser a de que aqueles autores se serviram.

            Entretanto, estudando a vIda e a obra de Apolinário em outras Enciclopédias, teológicas ou não, que profusamente se referiram a esse bispo, citando a redação dos anátemas proferidos contra a sua doutrina, e com a apresentação final de extensa bibliografia, é desconcertante dizer nada havermos encontrado a respeito daquelas questões inseridas no “Larousse”. Infelizmente, por não possuirmos os livros indicados nas bibliografias como referentes a Apolinário, não pudemos verIficar a veracidade ou não da exposição oferecida pelo Grande Larousse. Esperamos, todavia, que outro estudioso mais paciente e dedicado esclareça essa dúvida.

            Apresentamos, pois, a síntese do estudo que levamos a efeito:

            Apolinário (o jovem), bispo de Laodiceia, nascido talvez a 300, e falecido em 390 ou 392, era filho de ApoIinárío (o antigo), com quem trabalhou na adaptação da Bíblia à literatura profana. Foi mestre de S. Jerônimo, que se julgou diante dele, assim como de Orígenes e outros Padres, “imperitíssimo comparado com eles”. Diz o autor da Vulgata que Apolinário escreveu inúmeros volumes sobre a Sagrada Escritura e que os trinta livros contra Porfírio foram muito admirados.

            Apresentou ele refutações ao Arianismo e ao Maniqueísmo, escreveu algumas obras em verso e fala-se de uma versão poética da Bíblia, produzida, parece, somente por ele, sem o auxílio do pai, como pensam alguns autores.

            Sócrates, o Escolástico, referindo-se a ele, disse: "foi um sábio em ciência". S. Basílio diz que "devido ter ele grande facilidade em escrever, sobre qualquer assunto, conseguiu encher o mundo com seus livros".

            Acredita-se ter sido 360 o ano em que Apolinário iniciou o ensino de uma nova concepção a respeito da natureza do Cristo. Sofrendo a oposição da Igreja, desta por fim se separou, surgindo assim a seita dos apolinaristas.

            Mesmo depois de seu afastamento dos Pais ortodoxos, estes continuaram a tratá-Io com respeito e até com certa afeição.

            Santo Epifânio conta que ele próprio, bem como Santo Atanásio e "todos os católicos", muito amaram o “ilustre e venerável ancião Apolinário de Laodiceia”, e que, ao ouvirem falar de sua heresia, não puderam acreditar que tão grande homem houvesse caído em semeIhante erro.

            O Sínodo de Alexandria (362) parece ter conhecimento das ideais de Apolinário, rejeitando-as, não mencionando, porém, o nome do autor. No Sínodo romano (374), foi Apolinário julgado herético e condenado, não sendo, contudo, nominalmente incluído nos cânones. Outras reuniões eclesiásticas condenaram a doutrina apolinarista. O Sínodo de Antioquia (378) lança o anátema contra aqueles «que dizem que o Verbo de Deus habitou na carne humana, em substituição à alma racional e inteligente». O papa Dâmaso, no Concílio de Roma (380), lança idêntico anátema. O primeiro cânon do Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) registra também a condenação.

            Serviu-se Apolinário, para sua concepção, dos três elementos componentes da natureza humana, segundo a Escola neoplatônica, a saber: o corpo; a alma “anima animans”, princípio que atua e informa o corpo, sendo Comum aos homens e aos animais, tornando-os em seres vivos; e a mente ou espírito, agente do pensamento, da razão, da consciência, da vontade livre, em síntese: a essência da personalidade humana. Em apoio dessa divisão, citava passagens das Escrituras, como por exemplo a «Primeira Epístola aos Tessalonicenses, 5 :23 – “e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados completos, irrepreensíveis”. Desses três elementos, o corpo  e a alma formavam o ser “natural” (a máquina, teria dito PIatão) controlado e guiado pela razão ou espírito. Mas - comentava Apolinário - o espírito no homem é transformável, falível, cheio de pecados inerentes à natureza humana e, por isso, não deve tomar lugar no Cristo, o que tiraria o valor à Redenção.

            Raciocinando ontológica e psicologicamente, Apolinário criou, então, a doutrina que admitia, na pessoa do Cristo, o corpo humano e a alma, mas não a mente racional humana. Esta é o Logos ou este lhe toma o lugar, tornando-se, assim, o centro racional ou espiritual.

            Atribuiu-se a Apolinário o haver sustentado que a divindade (Logos) sofrera, morrera, etc.; porém, isto são mais consequências tiradas dos princípios de Apolinário que propriamente opiniões do bispo, comentam estudiosos católicos.

            Baseando-se em algumas passagens do Novo Testamento, para Apolinário foi Jesus realmente um ser de natureza humana, por possuir alma e corpo, embora controlado e guiado pelo Espírito divino que lhe constituía a natureza divina. O Cristo não foi, pois, um Homem-Deus e sim um ser partilhando do homem e de Deus; nem inteiramente homem, nem inteiramente deus.

            Os Padres ortodoxos contemporâneos, rejeitando a teoria de Apolinário, não estão muito interessados, declara um escritor eclesiástico, sobre a verdade ou a inverdade contida na exposição de que a natureza humana consiste de três elementos, questão que foi levantada na Idade Média, e que tem suscitado veementes discussões entre os teólogos. Os primeiros contraditores do Apolinarismo escandalizaram-se principalmente com a asserção de que ao Cristo faltou um elemento de completa natureza humana.

            Diante de toda essa análise, podemos concluir que Apolinário foi um trabalhador cristão, admirado por seus contemporâneos, e que a sua doutrina; nada tendo a ver com a do corpo fluídico de Jesus, foi fruto natural da época, quando diferentes ideias surgiam no afã de explicar a tese católica da união divina à humana.

            Dissemos acima que Apolinário combateu o Arianismo, doutrina do presbítero Ário, apresentada no princípio do século IV, contrária à da S. S. Trindade, e que chegou a abalar os alicerces do Catolicismo dominante, que desapareceria se não fossem as lutas e perseguições violentíssimas movidas contra os sectários da doutrina mencionada. Baseado nos Evangelhos, Ário dizia que, se o Filho está subordinado ao Pai, não é, pois, absolutamente Deus; não é consubstancial com o Pai, portanto não coeterno com Este, não O igualando em dignidade e poder. Logo, Jesus não é eterno e sim, concluía Ario, uma criatura gerada antes da criação do mundo por ato da vontade de Deus, e deste não tem a mesma essência ou natureza, apesar de ser a criatura tipo, a mais perfeita. Esta perfeição é tal - considerava Ário - que, para os terrestres, Jesus poderia ser mesmo um Deus. A doutrina arianista reapareceu, sob outros nomes, nos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como, em parte, qual a do Docetismo, foi revelada, revivescida, pelos Espíritos que nos trouxeram a Terceira Revelação.

            Com a ânsia espontânea e nobre de esclarecer a Humanidade, aqueles homens foram incompreendidos e passaram a sofrer as perseguições dos que se sentiam com o privilégio da iluminação de Mais Alto. Que esses exemplos de incompreensão cristã, do passado, não revivesçam, perturbando a marcha evolutiva do pensamento humano. Os homens de responsabilidade doutrinária deverão reconhecer a necessidade de nos respeitarmos uns aos outros, lembrando-nos de que o livre-arbítrio, ou melhor, a liberdade de crença é uma das maiores, senão a maior conquista do século, por permitir a cada um procurar as luzes que o auxiliem a vencer a jornada terrena e satisfaçam à inteligência e ao raciocínio próprios.

            O professor de Escritura Sagrada, Arendzen, de uma das Universidades inglesas, num estudo do Docetismo, anota um renascimento de idéias docéticas em círculos espiritistas, embora - diz ele - menos fantásticas e extravagantes que as do passado. Sim, confirmamos nós outros, a obra de Roustaing ressuscitou o pensamento fundamental do Docetismo - o corpo fluídico de Jesus. Cumpriu, destarte, o Paracleto uma das facetas do seu infindo programa esclarecedor, e, realmente, sem qualquer extravagância.

            Ao deliberar a confecção deste trabalho, assaltou-nos apenas o desejo de trazer uma explanação menos imperfeita das ideias que se prendem ao Docetismo, visto que este termo é encontrado em importantes obras espíritas e comumente é referido nas conversações entre espiritistas.

            Trabalho sem valor, já o sabemos; todavia esperamos que outros, mais cultos e dispondo de obras cuja raridade não nos ensejou um estudo mais profundo, possam melhor desenvolver o assunto, trazendo-nos as luzes a que todos aspiramos.

BIBLIOGRAFIA

Grand Dictionnaire Universel du XIXe Siêcle - M. Pierre Larousse.
La Grande Encyclopédie.
The Catholic Encyclopedia - Various editors.
Encyclopedia of Religion and Ethics - Edited by James Hastings.
Encyclopédie Théologique - Publiée par M. L'Abbé Migne.
EncicLopedia Universal Ilustrada.
Dictionnaire de Théologie Catholique - G. Barellle.
Philosophumena ou Réfutation de toutes les hérésies – Hippolyte de Rome.
Dicionário Universal das heresias, Erros e Cismas – Antônio Gomes Pereira
El Legado de Egipto – Publicação da Universidade de Oxford.



Zêus Wantuil

Apêndice sob título ‘Docetismo’
 in “Elos Doutrinários” (FEB)  3ª Ed 1978


[1] Por outro lado, temos de refletir sobre os fatos hoje conhecidos da exteriorização da sensibilidade e da sua anulação, como vemos nas práticas de hipnotismo. Com seu ilimitado poder sobre a matéria e o magnetismo, mesmo que tivesse um corpo material, gerado, Jesus poderia torna-lo insensível, como fazem hoje médicos e dentistas em operações cirúrgicas. Portanto, o argumento que considera a dor como condição necessária à missão de Jesus é inconsistente, como tantos outros que pretendem igualar aquele Espírito sublime aos nossos de calcetas do pecado e da dor. - I. G. B. (Do blog: I.G.B = Ismael Gomes Braga)