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domingo, 7 de dezembro de 2014

5d AntiCristo senhor do mundo



5d


            Tratando do movimento reformista, não devemos omitir uma referencia à preponderante figura do seu principal colaborador doutrinário. Falamos de Filipe Melanchton que, dotado de grande serenidade de espírito, conciliador por natureza e tendo recebido primorosa educação intelectual, que os estudos clássicos haviam consolidado, estava destinado a ser o elemento, em certos casos, ponderador do extremismo de Lutero e dos tumultuários excessos de linguagem a que este se entregava. Em seus Lugares Comuns expôs claramente a doutrina reformada, sustentando que a justificação se faz perante Deus unicamente pela fé, a qual é determinada pela graça, independentemente da vontade do homem.

            Foi ele o principal autor da "Confissão de Augsburg", formulada perante a dieta, que aí se reuniu em 1530, convocada e presidida por Carlos V, contendo as afirmações fundamentais do novo Credo e dividida em três partes. A primeira versava sobre os pontos gerais não contestados; a segunda sobre os artigos que os luteranos admitiam parcialmente; a terceira sobre as cerimônias e os usos em que diferiam da igreja romana, como a supressão do cálice, o celibato dos padres, a missa como sacrifício, a confissão particular, os votos monásticos, os jejuns e o poder episcopal.

            "Melanchton, assustado com a desordem, que ameaçava a sociedade, e com a tirania secular, que prometia suceder a abolição do governo eclesiástico, redigiu a Confissão nos termos que lhe pareceram mais conducentes a aproximar os dissidentes; não obstante, foi corrigida e remodelada muitas vezes."

            Já anteriormente, quando em 1527, Lutero, persuadido de que a sua interpretação da Escritura era a verdadeira, publicara a ‘Instrução para os Pastores’, como regra ele fé, prevalecendo-se do ascendente que sobre ele exercia, Melanchton, sempre conciliador, modificou alguns dogmas, como a negação do livre arbítrio e a ineficácia das boas obras. "O seu Corpus Doctrinae Christianae ficou sendo considerado pelos protestantes como um dos seus livros simbólicos".

            Duas outras personalidades surgiram nessa época, a intervir de modo preponderante no movimento reformista, não devendo ser, por isso, igualmente omitidas na breve resenha que dele nos temos proposto fazer: Ulrich Zwinglio e João Calvino, cuja atividade, iniciada na Suíça, enquanto a de Lutero se exercia particularmente na Alemanha, irradiou mais tarde pela França e a Itália.

            Mas a Reforma não estava destinada a ser unicamente um movimento de retificação e de renovação religiosa: correspondendo à ânsia de liberdade que trabalhava os espíritos, fatigados de opressões tanto da parte dos príncipes e reis como da monarquia pontifícia, os seus efeitos deviam simultaneamente refletir-se na esfera político-social. A vulgarização da Biblia posta em prática por Lutero, levando ao conhecimento do povo os princípios igualitários do Evangelho, suscitou legítimas reivindicações, que tiveram infelizmente um
epílogo sanguinolento.

            "Proclamada a liberdade religiosa - observa o historiadoros homens dos campos, que encontravam no Evangelho Deus e o rei, mas não a nobreza, e liam nele que todos os homens são iguais, quiseram também conquistar a liberdade civil e queixaram-se acerbamente dos pequenos senhores, que os oprimiam, a exemplo dos grandes. Cristovão Schappler, eclesiástico suíço, formulou os seus agravos e as suas reclamações em doze capítulos, a um tempo moderados e ousados: devia ser licito à gente do campo eleger padres encarregados de lhe anunciar, em toda a pureza, a palavra divina. Se até então haviam tolerado que os tratassem como escravos, apesar de resgatados pelo sangue do Cristo, não queriam mais semelhante tratamento, a não ser que os convencessem, com a Escritura, de que estavam em erro."

            Como não fossem atendidos, apesar da justiça de suas reclamações, e o próprio Lutero, convidado a servir de árbitro entre eles e os senhores, depois de haver exortado os senhores a serem justos e pregado aos vilões o dever do sofrimento e da servidão resignada, se tivesse colocado do lado do poder, "de que já participava", os camponeses se sublevaram em massa e cometeram excessos. As suas desordenadas legiões foram, todavia, facilmente desbaratadas pelas tropas regulares dos nobres e passadas a espada. Morreram cem mil pessoas que usavam a cruz branca, praticaram-se cruéis atrocidades e os chefes do movimento tiveram que expatriar-se, prosseguindo contudo as agitações parciais que convulsionavam a sociedade civil.

            "Essas tempestades populares - observa ainda o historiador - não eram tanto resultado da Reforma como efeitos das mesmas causas que a haviam produzido; todavia Lutero assustou-se, deixou de querer ser popular, fez causa comum com os príncipes e sustentou abertamente a monarquia. Ao eleitor Frederico, o Sábio, seu protetor moderado, havia já sucedido João, o Constante, e esse príncipe o auxiliou sem restrições: aboliu nos seus Estados a jurisdição eclesiástica e entregou o governo da Igreja nacional a uma com missão de padres seculares."

            Diferentes foram a feição e as consequências políticas resultantes das doutrinas pregadas por Zwinglio e, em seguida, por Calvino, como o veremos adiante.

            Sendo, ao começo de sua insurgência, cura de Glaris, Ulrich Zwinglio, indignado com a idolatria de que era objeto a imagem da Virgem de Einsiedeln e com o anúncio da indulgência plenária afixado em cartazes nessa povoação, entrou a pregar contra semelhantes práticas. Nomeado pastor de Zurich, declarou que se cingiria exclusiva e integralmente ao Evangelho; declamou contra os maus costumes, a venalidade do clero e a autoridade opressiva da Igreja e expulsou o frade Bernardo Sansão que se apresentara na cidade para vender indulgências.

            Admoestado pelo bispo de Constança, declarou que repelia toda e qualquer decisão dos homens em assuntos de fé e que não admitia nenhuma satisfação perante Deus, a
não ser aquela que fora dada por Jesus Cristo.

            Essa vigorosa propaganda agitou os cantões suíços, formaram-se dois partidos e foram publicamente debatidos muitos ritos e dogmas fundamentais, sendo afinal proibidas as procissões, os órgãos, a adoração da hóstia e a extrema unção.

            "Os reformadores suíços - assinala o historiador - iam, pois, muito adiante de Lutero, que conservou diferentes práticas religiosas como as imagens, as velas, os altares, o pão ázimo, a confissão auricular. Lutero queria conservar na Igreja tudo que lhe não parecia expressamente contrário à Escritura: Zwinglio suprimia tudo que se não podia provar com o seu texto. Um queria ficar com a Igreja de todos os séculos, depurando-a do que repugnava à palavra divina; o outro voltava aos tempos apostólicos e transformava a Igreja com a pretensão de faze-la volver ao estado primitivo."

            As consequências políticas dessas divergências foram diametralmente opostas. Lutero, conservador, pregando num país de príncipes, sustentou as ideias de absolutismo, favoreceu a usurpação dos bens do clero e, na jurisdição mista; considerou a autoridade eclesiástica uma instituição humana e um atributo da soberania; Zwinglio, republicano e radical derribava o poder das igrejas, mas, em vez de o dar aos príncipes, o restituía ao povo.

            Da teoria passou-se aos fatos. Exaltaram-se os ânimos e os dois partidos religiosos, de cujo embate veio finalmente a resultar a divisão dos cantões em católicos, reformados e mistos, pegaram em armas, um constituindo a "Liga para defesa da Religião", sob o patrocínio de Fernando, rei dos romanos, o outro organizando a "Confraria Cristã", dirigida por Zwinglio. Feriu-se uma batalha em Capel, aí morrendo Zwinglio, "que havia trocado a espada da palavra pela de ferro e o púlpito por um cavalo."

            Os católicos processaram o cadáver do reformador e o fizeram em pedaços; mas um dos vencedores exclamou: "Fosse qual fosse a tua crença, foste um leal e sincero confederado. Deus receba a tua alma."

            Mais afortunado que Zwinglio - se é fortuna conservar-se a vida terrestre, maculando-a de atrocidades - Calvino, tendo abraçado em 1534 a Reforma, já triunfante, e propendendo para a orientação radical de Zwinglio, pôs-se a interpretar a Bíblia segundo o seu modo de ver. "Se, porém, abominava a corrupção da igreja, também o indignou a desordem produzida pelos reformadores e empreendeu por termo a essa desordem. Ao período, portanto, de emancipação de Lutero seguiu-se o período organizador de Calvino, que pretendeu reconstituir a Igreja."

            Indicado para essa missão por suas qualidades de caráter, sem os rasgos geniais, a violência e as ingenuidades de Lutero, nem a inabalável convicção de Zwinglio, mas possuindo a lógica inflexível do organizador, fez-se o medianeiro entre o papismo de um e o radicalismo do outro e publicou em francês elegante a Instituição da Religião Cristã, obra que se espalhou nas classes ilustradas e, com o Catecismo publicado em 1538, veio a constituir o sistema doutrinário calvinista.

            Instalado em Genebra, que tornou-se em poucos anos a Roma do protestantismo, desenvolveu uma ação implacável contra os dissidentes do sistema que recebera o seu nome. Tendo Lutero demolido a monarquia católica, ele, por sua vez, derrubou a aristocracia luterana e, auxiliando as ideias republicanas de Genebra, aboliu o episcopado e confiou a escolha dos ministros à comunidade religiosa. Estabeleceu um Consistório, composto dos pastores, para administrar as coisas da religião e corrigir os costumes. "Assim chegava ao governo democrático, porém, ao contrário de tudo quanto se havia feito antes, subordinou o poder civil ao religioso, preparando um centro para os revolucionários futuros. O efeito do calvinismo, não moderado por nenhuma autoridade, devia ser, portanto, maior, e maior também a cultura intelectual. Daí uma infinidade de seitas e a emissão de tantas ideias políticas.

            A correção dos costumes, confiada ao consistório, produziu uma verdadeira inquisição, pois que até violava os segredos das famílias, dando lugar a denúncias e a severas penalidades por motivos, algumas vezes, insignificantes. Levando ao máximo extremo os seus rigores, Calvino fez proibir todos os espetáculos, as danças, a alegria estrepitosa, os divertimentos patrióticos.

            A mesma intolerância que o levava a crer que só devia existir uma Igreja e essa única devia ser a sua, levava Calvino a proferir, "com uma cólera fria e prosaica, as mais violentas injúrias contra quem sobressaía, na primeira plana, entre os reformados. Logo que implantou a sua profissão de fé, fez dela uma arma para condenar como impostores os outros inovadores, que pela sua parte o excomungaram. Além disso, pois que essa profissão tinha sido adoptada como lei do Estado, quem a não aceitava era rebelde". Puro regime inquisitorial.

            Dessa feroz intransigência foi vítima, entre outras personalidades ilustres, Miguel Servet, médico, astrólogo, editor de Ptolomeu. "Tendo-se aplicado aos estudos religiosos, numa época em que cada qual proclamava um sistema de teologia, quis ser também reformador e publicou um livro intitulado De Trinitate Erroribus, etc. Christianismi Restitutio, no qual acusava Roma de ter convertido Deus em três quimeras. Os católicos o toleraram na Itália. Calvino, porém, não lhe pode perdoar umas cartas em que ele chamava às suas razões insulsas e lhe perguntava: unde tibi auctoritas constituenti leges? - Quando, ao cabo de sete anos de espera, o pode haver às mãos, teve-o preso muito tempo, infligindo lhe maus tratos. Servet pediu baldadamente que lhe dessem um advogado, que abreviassem as delongas do processo, verdadeira tortura moral, a mais cruel de todas. Pediu a Calvino a esmola de uma camisa; recusaram-na. Afinal, foi queimado vivo, em nome de uma religião que rejeitava a autoridade, e, como se as chamas não bastassem, ultrajaram-lhe até a coragem com que vira avizinhar-se a morte (1553)."

            Todos os cantões reformados aplaudiram a execução e pediram que ele separasse por essa forma o trigo do joio.


5c AntiCristo senhor do mundo

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            Era inevitável. Uma vez que a igreja, pela obstinação dos seus ministros, se mostrava refratária aos métodos suasórios com que o Senhor havia procurado reintegra-la em sua missão apostólica e tutelar da cristandade, cumpria recorrer ao processo revolucionário, contanto que cessassem de vez os abusos, prevaricações e escândalos que, em assustador crescendo, ameaçavam de soçobro a ideia cristã no espírito do próprio povo.

            Abramos ainda uma vez a história e registremos o seu depoimento relativo às preliminares da Reforma.

            "Quem refletir na profunda corrupção de uma sociedade que, tendo perdido os sentimentos cavalheirosos, não havia adquirido ainda a serenidade da razão - comenta o historiador, numa judiciosa síntese dos acontecimentos e da situação geral dos espíritos, no começo do século XVI; - quem pensava, se assim se pode dizer, na paganização dos costumes, das artes, da politica, das letras e do culto, não podia desconhecer a evidente necessidade de uma reforma. Precisava dela especialmente a Igreja, que ainda exercia poderosa influência sobre os espíritos. As chaves de S. Pedro eram ambicionadas, não por abrirem as portas do céu, senão por serem de ouro. Os cardeais nomeados por favor, por condescendência com este ou aquele príncipe ou por dinheiro, não se faziam santos, como dizia Belarmino, porque queriam ser santíssimos. A importância das famílias, e não o merecimento, determinava a escolha dos pastores; a corte de Roma cuidava antes de tudo de tirar proveito das vagaturas e das colações e de multiplicar os direitos de chancelaria. Outro tanto faziam quase todos os bispos, para engrossarem os rendimentos da diocese; por dinheiro conseguiam que lhes dessem coadjutores, o que era um meio de transmitir os bispados aos aderentes ou, como então se dizia, aos sobrinhos; se algum resignava a mitra, conservava a colação dos benefícios, ou determinadas rendas.
            "Como se davam prelaturas aos ricos a título de benefícios, introduziu-se a ubiquidade, isto é, a faculdade de cobrar os proventos desses benefícios em qualquer lugar de residência; desse modo o mesmo indivíduo podia ser cardeal de uma igreja em Roma, bispo de Chipre, arcebispo de Gloucester, primaz de Reims, prior da Polônia e, ao mesmo tempo, tratar na corte do rei cristianíssimo dos negócios do imperador.
            "Em vez de residirem na diocese, ocupados com a direção do rebanho espiritual, bispos sem capacidade, mais amigos da boa vida que de bem viver, abandonavam-na aos vigários, chamados sufragâneos, para que essa delegação lhes ficasse pouco dispendiosa, fiavam-na de frades mendicantes, que não gastavam nada em luxo e não recebiam retribuição. Esses religiosos, apesar de já terem muitos privilégios, ainda os alcançaram mais de Sixto IV, que chegou a ameaçar com a deposição os párocos que lhes não obedecessem ou de qualquer modo os molestassem. Foram encarregados da venda das indulgências, mas as próprias vantagens, que lhes advinham do bom conceito em que eram tidos, comprometeram a sua respeitabilidade, e a sua ordem tornou-se tão mundana como as outras. Intrigava-se, para lhe alcançar as dignidades; "perpetravam-se assassínios, não somente com veneno, senão às claras, a faca, a espadeirada, para não dizer a tiro."

            A esse tristíssimo papel - comentemos - fora reduzida a Ordem franciscana, com tão elevado objetivo fundada pelo seráfico patriarca! Mas para isso é que o Espírito do mal sugerira à cúria romana submete-la ao mesmo regime das antigas ordens. Com o fim de a aniquilar, como se vê.
           
            Prossigamos contudo a transcrição:
           
            "Na Alemanha, especialmente, os filhos das famílias ilustres monopolizavam os bispados e levavam para a igreja as paixões e os costumes seculares. Alguns prelados, que ao mesmo tempo eram príncipes, descuravam e desprezavam o povo, que ficava sem alimento espiritual e se escandalizava com os desregramentos de tais pastores e com a opulência que via empregada em fins inteiramente diferentes daqueles a que a tinham destinado a Igreja e os devotos.
            "Durante a Idade Média algumas vozes clamaram contra o demasiado poder dos pontífices, e assim fizeram Arnaldo de Brescia e os albigenses; mas os inovadores foram pouco atendidos. Todavia a autoridade pontifícia tinha sido abolida e desprestigiada pela transferência da Santa Sé para Avignon e pelas contendas com Felipe, o Belo e outros reis."
            "Obedecendo à tendência geral do século para constituir principados sobre as ruínas das repúblicas e das comunas, querendo tirar vantagens mundanas do poder espiritual, os papas aplicavam-se avidamente a promover os seus interesses temporais; para assegurarem à família elevadas posições, afagavam os poderosos, cuja oposição temiam, e ao mesmo tempo oprimiam os fracos, para os explorar. Assim foi que puseram em ação essa política vergonhosa, tecida de fraudes e violências, que serviu para fortalecer a sua autoridade terrestre, em detrimento dos pequenos senhorios da Romanha. Vimos Alexandre VI dar exemplos detestáveis; se, porém, como homem foi perverso e, como papa, escandaloso, é força confessar que algum bem fez como príncipe, embora por meios indignos, e que os contemporâneos o aplaudiram, por ter reprimido as múltiplas tiranias locais."

            Passemos em silêncio sobre as façanhas de Júlio II, para de preferência nos determos no pontificado de Leão X que, entre outros característicos dignos de nota, apresenta o interesse de ter tido, por último, que enfrentar a agitação provocada pela Reforma.

            De par com certas predileções mundanas, bem pouco adequadas à espiritualidade de suas funções, prestou contudo esse papa alguns serviços à igreja. "Esforçou-se por fazer desaparecerem da Boêmia os restos dos hussitas, propagou o catolicismo entre os russos, fundou igrejas na América, procurou converter os abissínios, além disso conseguiu sufocar o cisma com que o sínodo de Pisa ameaçava a Igreja, fez abolir a pragmática sanção na França e diligenciou ligar os príncipes cristãos, para os opor aos turcos. "

            "Mas - adverte o historiador - o paganismo tinha invadido a corte pontifícia, onde se favoreciam todos os homens de merecimento, sem se curar do uso que faziam do seu talento. Bembo escreve da chancelaria apostólica que Leão X foi elevado ao pontificado "por mercê dos deuses imortais". Nos seus versos, o gozo de ver a sua dama parece-lhe mais doce que os prazeres dos eleitos nos céus; chama "colégio dos augures" o colégio cardinalício", etc.
            "É raro - acrescenta - o não influir a forma sobre as ideias; o brilho da antiguidade tinha causado tal deslumbramento que já se não via o Cristianismo. Generalizara-as uma preguiça zombeteira e voluptuosa, a que repugnava o trabalho de pensar e para a qual a filosofia era a indiferença superficial, acompanhada pela alegria dos banquetes e pelos prazeres das artes. Os costumes nem queriam parecer regra dos Bembo, monsenhor della Casa, o cardeal Hipólito D’Este e muitos outros tinham filhos e não os escondiam. O cardeal Bibiena tinha mandado construir sobre o Vaticano uma vila ornada de ninfas voluptuosas, pintada pelo famoso Raphael; felicitava-se por Julião de Médicis levar para Roma a princesa sua esposa. Toda a cidade exclamava, diz ele: "Louvado seja Deus de ora avante! porque só aqui faltava uma corte de damas, e essa princesa há de ter uma , o que tornará perfeita a cruz romana". Dirigia todas as magnificências da corte de Leão X, os divertimentos do carnaval e as mascaradas.
            "Foi ele que fez com que o papa mandasse representar a Mandrágora, de Machiavel, e a sua Calandra, cujas cenas, que até num prostíbulo pareceriam licenciosas, fizeram rir muito Leão X, Isabel d 'Este e as damas mais elegantes de Itália?"
            "Ronsard, Montaigne, Bodin, Maquiavel, etc., só têm admirações para a civilização anterior ao Cristianismo. Erasmo invoca o nome de Sócrates, e Mancílio Ficino acende uma lâmpada diante do busto de Platão. Ia-se mais longe ainda: por dedicação à antiguidade, Pedro Pomponacio, mau filósofo e insignificante lógico, mas falador engenhoso e animado, sustentava que as almas eram mortais. Em Roma, "quem não tinha a cerca dos dogmas da Igreja alguma opinião errônea e herética não parecia gentil-homem e bom cortezão."
            "Por uma parte havia afetação de conhecimentos e costumes clássicos, por outra, nos púlpitos e nas reuniões eclesiásticas imperava a ignorância. A teologia tomava quase sempre o lugar do Evangelho; os sermões eram de um gosto detestável; os pregadores misturavam o profano com o sagrado, o jocoso com o sério, e buscavam o novo, o extravagante, o surpreendente."
            "Entre o povo espalhavam-se pregadores vulgares, que lhe ensinavam erros, superstições e terminavam invariavelmente as prédicas pedindo dinheiro."
            "O alto clero, absorvido por cuidados inteiramente mundanos, não pensava em instruir-se nas coisas da fé, que era obrigado a defender e a conservar impoluta; os eclesiásticos de categoria inferior, como sempre, regulavam o seu procedimento pelo dos chefes. Os conventos, outrora centros de atividade, estavam submersos no torpor da velhice e no relaxamento da opulência. A imprensa deixara desocupados os muitos frades que copiavam manuscritos, e eles, na sua ociosidade, puseram-se a discutir, com pouca arte e muitas sutilezas, questões de medíocre importância, ao passo que a literatura nascente criticava as inépcias escolásticas que tinham ocupado o lugar da verdadeira ciência."

            E, ao mesmo tempo que a dúvida erudita, naquele século de renovação, contribuía para lançar maior perturbação nos espíritos, a crítica irreverente se desenvolvia, vergastando os vícios da corte de Roma e os abusos que se tinham introduzido na igreja, com uma liberdade que constituía "circunstância notável nessa época", não obstante os crescentes rigores da Inquisição. "Dante e Petrarca atacavam com grande violência aqueles abusos e, todavia, não incorreram na menor censura: os seus livros nem sequer foram proibidos . As novelas circulavam, cheias de argúcias e de aventuras escandalosas atribuídas aos frades."

            Para agravar esse estado de anarquia das inteligências e desmoralização geral, surgiu, como nota, de certo modo, culminante, o fato da venda das indulgências, ignóbil comércio, que ofereceu a Lutero o decisivo pretexto para o rompimento das hostilidades.

            A venda das bulas de indulgência - refere o historiador - tornou-se um dos mais pingues rendimentos da cúria. O povo via no dinheiro que dava o preço da coisa santa, os frades encarregados da cobrança encareciam profundamente a virtude do perdão, e a percentagem, que recebiam,  do produto da venda lhes estimulava o zelo. Os concílios de Latrão, de Viena e de Constança haviam decretado severas penalidades contra esse tráfico; mas Leão X o praticou em escala maior que nunca, para ocorrer às enormes despesas da sua corte e habilitar-se para duas grandes empresas: uma cruzada contra Selim e a construção de um suntuoso templo."
            "João Tetzel, dominicano de Pirna, encarregado pelo arcebispo eleitor de Mogúncia de cobrar na Alemanha o rendimento das indulgências, desempenhou-se da incumbência de modo escandaloso: atravessou a Saxônia com caixas cheias de cédulas já assinadas. Quando chegava a alguma povoação, arvorava uma cruz na praça e apregoava a sua mercadoria: Comprem, comprem, dizia o especulador, porque ao som de cada moeda que cai no meu cofre sai uma alma do Purgatório.  O povo acudia em tropel a trocar talcos e sequins por indulgências. O negócio fazia-se até nas tabernas; só de Freyburg levou Tetzel dois mil florins, com extremo desprazer do eleitor da Saxônia e profunda indignação das pessoas verdadeiramente religiosas.

            "Essa Indignação animou Martinho Lutero a levantar o estandarte de uma revolução religiosa".


5b AntiCristo senhor do mundo


5b

            A história da Igreja cristã, nestes dezenove séculos decorridos, tem sido uma flagrante representação objetiva da alegoria expressa na parábola do joio entre o trigo, com exclusão apenas do desfecho, que os sinais do tempo presente anunciam aproximar-se, mas cuja integral consumação à exiguidade da visão humana ainda se afigura vir distante.

            Os que se preocupam, moralistas e pensadores, com os alarmantes sintomas de dissolução moral, que é a característica de nossos dias, consequente da irreligiosidade que por toda parte predomina, gerando o excessivo culto da matéria e a vertiginosa corrida a todos os seus gozos, reconhecem a necessidade de uma renovação religiosa, que restitua aos homens o sentimento de seus deveres e de suas responsabilidades, inerente à crença em seus destinos imortais. Alguns., ou seja obnubilados pelo espírito de sectarismo, ou por deficiência de apreciação, que lhes não consente discernir a verdadeira significação da sobrevivência da igreja romana a tantas vicissitudes seculares, entendem que a volta dos desertores do rebanho católico ao seu grêmio, de par com a conversão, dos indiferentes ao seu credo, resolveria o angustioso problema contemporâneo. Outros, ponderando unicamente os graves erros durante séculos acumulados por essa igreja, o seu espírito reacionário e intolerante, reconhecem-na falida em sua missão espiritual e só têm para ela palavras de condenação.

            No alvitre ilusório dos primeiros, como no radicalismo, condenatório dos segundos, há - repetimos – deficiência de apreciação. Para julgarmos com justiça a igreja, no curso de suas realizações e de suas graves delinquências, através a história, cumpre discernir as duas modalidades que nela se acham nitidamente representadas c se não devem confundir num mesmo julgamento. Uma é o partido politico, formada pelo seu corpo administrativo, a outra a família cristã propriamente dita, subordinada contudo à direção daquele.

            O primeiro, chefiado pelo papa e composto não somente do alto clero que constitui a corte pontifícia, mas de todo o exército eclesiástico, disciplinado e obediente, é o responsável pelos abusos, prevaricações e atentados contra a doutrina do Senhor, que teria definitivamente impopularizado, causando a sua ruína irreparável e fazendo soçobrar a própria igreja, se não tivesse esta sido, em todos os tempos, sustentada pelos sentimentos religiosos da família cristã.

            Sobre esta, de que - apressemo-nos a acrescentar - têm feito no passado e ainda hoje fazem parte os prelados de todas as categorias, verdadeiros crentes, portadores das virtudes cardiais - humildade, fé e caridade - é que o Espirito do Senhor se tem difundido, mantendo a estabilidade da sua Igreja, composta não apenas - cumpre ainda advertir - de cristãos professos, mas de todos os homens de boa vontade que, mesmo não pertencendo a nenhuma confissão religiosa, dotados, porém, de coração puro e consciência reta, praticam por toda parte o bem, na ordem moral, sem cogitar de retribuição. Ainda que se nos afigure limitadíssimo o seu número, esses pertencem de facto à Igreja invisível do Cristo, cujos membros se distinguem pelas boas obras e não por quaisquer insígnias exteriores.

            O partido politico, ao contrário, que tem o seu quartel general no Vaticano e representação diplomática em todos os países, preocupa-se antes de tudo com o domínio temporal, só pela violência se deixou despojar dos Estados pontifícios, sem de todo renunciar à sua restituição - teremos ocasião de ainda fazer a isso nova referência - corteja a força e foi, em todos os tempos, aliado dos poderosos, em detrimento dos humildes. É, numa palavra, e não parece resolvido a deixar de ser, uma potência exclusivamente mundana, fazendo da religião, que explora e em cujos dogmas finge hipocritamente acreditar, apenas o pretexto para ostentação do seu poderio e satisfação de suas insaciáveis ambições. O "tesouro de S. Pedro" - que de resto "não possuía ouro nem prata" - é o alicerce da sua grandeza, embora pretenda, para iludir o mundo, ser o depositário das "chaves elo reino dos céus" e o representante de Deus, com poderes para absolver e condenar os homens.

            Enquanto a ideia cristã é imperecível, vive no coração dos crentes, como chama divina alimentada pelo próprio Cristo, e há de regenerar as sociedades humanas, sob a modalidade renovada de que oportunamente nos ocuparemos, o partido politico, ou a igreja de Roma - verdadeira criação do AntiCristo, que a tem subjugada ao seu império - encontra-se em face do seguinte dilema, cujo imperativo só a obstinada cegueira dos seus orientadores não permitirá reconhecer: ou, para salvar-se do naufrágio e sobreviver, terá que radicalmente modificar-se, voltando á edificante simplicidade e às austeras virtudes dos primeiros tempos apostólicos, ou terá que desaparecer, em época talvez distante, mas inevitável, arrebatada no tufão demolidor que, desencadeado na esfera político-social - e os seus rumores crescem dia a dia - terminará por derrubar os derradeiros tronos, que a esse tempo existirem sobre a terra.

            Ora, essa igreja ou, indiferentemente, esse partido político, adversário natural do Cristianismo, de que é a antítese, não parece resolvido a aceitar melhor no futuro; do que o fez no passado, as suasórias lições que o Senhor; em sua longanimidade, lhe tem enviado.

            Com o apostolado franciscano, que devia ser para essa igreja, como o foi para a cristandade, uma fonte de regeneração, já vimos de que modo se conduziu ela. Depois de ter apunhalado de desgostos o patriarca, deturpando a sua obra e fundindo-a por último no mesmo regime de quase completa esterilidade das antigas ordens, limitou-se, como. hipócrita compensação, a canoniza-lo e erigir-lhe, com desrespeito à humildade de sua vida, uma suntuosa basílica.

            Aniquilada aquela generosa iniciativa, recrudesceu a dissolução de costumes, e a decadência do pontificado, que se vinha acentuando desde o começo do século XIV, veio a atingir o seu período culminante com o grande cisma do ocidente, que se declarou, como vimos, em 1378.

            O concílio de Constança, convocado em 1414 não somente para pôr termo ao cisma e restabelecer a autoridade pontifícia, mas para tomar medidas radicais que restaurassem a disciplina eclesiástica e pusesse cobro aos desregramentos do clero, foi, quatro anos depois - em abril de 1418 - encerrado pelo papa Martinho V, eleito depois da sua abertura, sem terem sido feitas as reformas reclamadas.

            Ao contrário disso, porque João Huss, que se fizera intérprete dos clamores populares, prosseguisse em sua moralizadora propaganda, o escolheu para vítima de sua criminosa incoerência e, como precedentemente o recordamos, tornou-se cúmplice da sua execução. Porque o movimento reformador, segundo o atesta a historia, "tinha-se manifestado de três modos: dentro da própria igreja, nos conselhos dos príncipes seculares e no seio do povo. Os reformadores mitrados, entretanto, e o reformador secular, Segismundo, deram-se as mãos para condenar e supliciar o revolucionário popular".

            Preso, por ordem do papa João XXIII, que a esse tempo (1415) exercia o pontificado e contra quem, de resto, o concílio formulara "acusações porventura mais graves e afrontosas que todos os vitupérios de João Huss", foi este, depois de uma simulada proteção do imperador, entregue ao braço secular, perecendo intrepidamente na fogueira. A mesma sorte coube, pouco depois, ao seu discípulo Jerônimo de Praga, com quem ocorreu o conhecido incidente do camponês que, no momento do suplício, chegava, com fanático zelo, mais lenha à fogueira, provocando esta serena exclamação do condenado: "Santa simplicidade! Peca mil vezes mais quem dela abusa!"

            Encerrado, como dissemos, o concílio em 1418, sem terem sido tomadas as medidas reclamadas pela situação anárquica da igreja, o papa Martinho V convocou outro para Basiléia, morrendo, porém, logo depois. O concílio foi aberto em 23 de julho de 1431 por ordem do papa Eugenio IV, que pretendia "extirpar as heresias, estabelecer perpetua paz entre as nações cristãs, pôr termo ao secular cisma dos gregos e reformar a igreja". Assustado, porém, com a excessiva atividade dos membros do concílio, apressou-se em adia-lo. A assembleia contudo prosseguiu em seus trabalhos, citou Eugenio IV para comparecer, acusou-o de desobediência e declarou-se superior a ele.

            Nesse ambiente agitado foram votadas várias reformas moralizadoras, mas o dissídio prosseguiu, agravado por novos incidentes, que omitimos, só vindo a terminar o grande cisma do ocidente em 1449 e restabelecer-se a paz na igreja, com a ratificação, pelo papa Nicolau V, da concordata firmada por Felix V com Frederico III e mediante proposta deste. Paz, em verdade, transitória, que melhor se denominaria trégua, pois que, não tendo sido postas em prática as medidas radicais tendentes à moralização dos costumes eclesiásticos, prosseguiram os desregramentos, até que no começo do século XVI, isto é, aos albores já da Renascença, estalou a grande crise.


5a AntiCristo senhor do mundo



5a

V. Escopo do apostolado franciscano menosprezado pela Igreja.
- Crescimento paralelo do "trigo" e do "joio". - O partido político e a família cristã.
- Novo movimento de reação, tendente a restabelecer e popularizar o Evangelho. - Martinho Lutero e a Reforma. O AntiCristo não renuncia ao seu predomínio.
- Excessos e frutos do fanatismo. - Deficiência do movimento reformista.
- O reino dividido.

            Foi verdadeiramente uma rajada de luz, vinda do Alto, a passagem de Francisco de Assis pelos flancos da igreja romana. Porque ele, de fato, nunca pertenceu a essa igreja, de que apenas, como o próprio Cristo, veio a tornar-se prisioneiro, desde que aos sagazes detentores da direção espiritual da cristandade pareceu conveniente se apropriarem do nome e da vida gloriosa do santo, para enriquecerem de imerecida auréola a instituição que vinham profanando com suas paixões desordenadas.

            A ação do patriarca foi exercida paralelamente e não dentro da própria igreja. A razão é fácil de compreender-se.

            O Senhor Jesus havia prometido à humanidade, simbolicamente representada em seus apóstolos, reunidos em torno da Ceia pascal: "Não vos hei de deixar órfãos". Quando, portanto, depois de haver feito a sua redentora doutrina triunfar de todas as vicissitudes, desde as ferozes perseguições iniciais à sua adoção por Constantino como religião do Estado e, através as múltiplas agitações e controvérsias dos séculos seguintes, não obstante as alterações na letra e no espírito que a animava, tornar-se o fundamento estrutural das sociedades ocidentais, quando - repetimos - a viu conspurcada e quase desaparecida em seus frutos de regeneração, pela mistura com as ambições politicas e o desregramento de costumes ostentado pelo clero e contaminando o próprio povo, destacou o seu Enviado, infundiu-lhe o seu espírito e, por ele, operou os prodígios de ressurgimento cristão, que deviam restituir à Igreja, com idênticos caracteres, o esplendor dos primitivos tempos.

            Desde o período apostólico o mundo, com efeito, não tornara a presenciar igual movimento de vitalidade religiosa e efusão do espírito divino, como durante a vida do excelso patriarca, sobretudo - como precedentemente o assinalamos - nos dez primeiros anos que se seguiram à fundação da Ordem dos irmãos menores. E, se os fiéis companheiros, de que se rodeou, porfiaram em diligentemente o imitar, Francisco de Assis foi, realmente, por sua estatura de verdadeiro missionário, o centro irradiado  desse movimento de renovação.

            O seu apostolado, fundado intencionalmente na Pobreza, foi uma obra de amor e de humildade. Tanto como de pureza espiritual e de renuncia. Para corrigir os vícios dos serventuários do altar, envilecidos em suas desvairadas ambições de ouro e de mundano poderio, para edificar a cristandade, extraviada pela conduta de seus pastores infiéis e restituir à doutrina o prestígio de seus postergados mandamentos, que melhor e mais oportuno remédio que o contraste daquela vida de indigência material, duplicada de excelsas virtudes morais, oposto às falaciosas opulências do clero e aos seus costumes dissolutos. A incredulidade e ao sórdido materialismo, que haviam terminado por implantar-se no seio da igreja, importava contrapor a fé em que se abrasava o santo, a certeza da vida imortal de que ele, por antecipação, participava, e os dons do espírito que através de seus atos fluíam da divina Fonte e o tornavam um veículo irradiador do saneamento de almas e de corpos, como em tão grande abundância o atestaram os testemunhos de seus contemporâneos que determinaram a abreviação do prazo para sua canonização, nos termos a que aludimos no anterior capitulo.

            Posto assim diante da igreja, como exemplo vivo das potências realizadoras do Espírito, inspirado no amor e na humildade, ao mesmo tempo que transportado na fé que animava o seu instituidor, o escopo do apostolado franciscano, evidentemente suscitado pelo Senhor Jesus, era restaurar em seus fundamentos a Igreja, na iminência de ruína, e restituir-lhe a função de remodeladora dos costumes e orientadora das sociedades humanas em o rumo de seus destinos espirituais.

            Não se tratava certamente de uma brusca subversão na estrutura orgânica e exterior da igreja, que subitamente a transformasse numa vasta confraria, rigidamente plasmada nos moldes franciscanos. O que o trabalho dos séculos realizara, só poderia ser modificado por uma gradual substituição, inflexivelmente prosseguida. A reforma devia operar-se energicamente, sim, mas de dentro para fora, isto é: cumpria que, desde o pontífice aos prelados da menor categoria, o clero antes de tudo se convertesse novamente ao Evangelho, cujos preceitos havia desertado, e, adotando um teor de vida irrepreensível, desse testemunho dessa conversão. À libertação interior do apego aos bens materiais, seguir-se-ia o complemento exterior da abolição do luxo na corte pontifícia e nas cerimônias do culto, uma e o outro cingindo-se a proporções de modéstia e de simplicidade, que lhes não diminuiriam o prestigio, antes o exalçariam, fazendo-o de preferência consistir na prática de virtudes e na sobriedade, que as coisas sagradas, por sua natureza, exigem.

            Da eficácia desse programa, tendente a promover o rejuvenescimento e a prosperidade espiritual da igreja, o melhor testemunho ali estava na vitalidade, por toda parte suscitada pelo apostolado franciscano. Em lugar, portanto, de o absorver e deturpar em seus caracteres substanciais, como o terminaram por fazer os pontífices romanos, chegando alguns, em sua desvairada cegueira, segundo o vimos precedentemente, a abrir luta com os irmãos menores, aos quais pretendiam negar o direito de ser pobres, por mais esse motivo impopularizando a própria cúria, o que lhes cumpria, para honra e salvação desta, era assegurar ao patriarca a liberdade de ação que desejava, a fim de ampliar aos extremos limites a sua obra regeneradora.

            Mas para isso era necessário que não houvessem eles perdido o senso de sua missão e de suas responsabilidades. Ora, um dos efeitos, sem dúvida o principal, da ação inibitória do AntiCristo, que se vinha, de séculos, exercendo no ânimo dos responsáveis pela direção da cristandade era - como o é em todos que têm o infortúnio de padecer essa influência - gerar primeiro a dúvida e, em seguida, a descrença na própria existência de Deus. Sim, o alto clero e, em grande número, os seus inferiores hierárquicos haviam perdido a fé. Procediam, pelo menos, como filhos do século e materialistas consumados. Daí o seu desregrado apego às coisas deste mundo, únicas em que acreditavam. Daí os escândalos, de que fora teatro a corte pontifícia, sobretudo em Avignon, e os excessos de tantos papas, que muitas vezes faziam relembrar os truculentos desvarios dos césares romanos.

            Para essa descrença em Deus muito contribuiria certamente um falso raciocínio sobre a impunidade com que perpetravam e viam outros iterativamente perpetrarem tamanhos e tão escandalosos ultrajes à doutrina do Senhor, cuja guarda e difusão lhes fora confiada. Se Deus existisse -  raciocinariam eles - já teria, suscitando aterradores cataclismos, fulminado os que desonram a Sua Casa. Se o consente, é que não existe ou, pelo menos, lhe são indiferentes as coisas d'este mundo. Tratemos, pois, de gozar o mais possível, sem nos preocuparmos do que virá depois.

            Insensatos, que até haviam perdido, com a fé, o senso interpretativo das próprias Escrituras. Porque há no Evangelho uma parábola que, de um lado, exprime profética visão do que sucederia ao Cristianismo e, do outro, constitui um comovedor testemunho da longanimidade de Deus, em face da fragilidade e extravios de suas criaturas - homens e Espíritos. É a parábola do joio entre o trigo, referida pelo Senhor Jesus em seguida à do semeador.

            "O reino dos céus - disse Ele - é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo. Mas, enquanto os homens dormiam, veio o seu inimigo, semeou joio no meio do trigo e retirou-se. E quando a erva cresceu e deu fruto, então apareceu também o joio. Chegando os servos do dono do campo, lhe disseram: Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde, pois, vem o joio? Respondeu-lhes: Homem inimigo é quem fez isto. Os servos continuaram: Queres então que vamos arrancá-lo! - Não, respondeu ele, para que não suceda que, tirando o joio, arranqueis juntamente com ele também o trigo. Deixai crescer ambos juntos até a ceifa, e no tempo da ceifa direi aos ceifeiros: Ajuntai primeiro o joio e atai-o em feixes para o queimar, mas recolhei o trigo no meu celeiro."

            A significação espiritual dessa parábola foi dada pelo próprio Cristo aos seus discípulos, que a solicitaram, em termos restritivos, apropriados a sua capacidade, mas que podem ser, nalgumas expressões, ampliados e esclarecidos, consoante o adiantamento das inteligências e os dados da Revelação nova, que vem preparar os novos tempos.

            Explicou, pois, o Senhor aos seus discípulos:

            "O que semeia a boa semente é o Filho elo homem; o campo é o mundo; a boa semente são os filhos do reino; o joio são os maus filhos. O inimigo, que o semeou, é o Diabo; o tempo da ceifa é o fim do mundo e os ceifeiros são os anjos. De maneira que, assim como o joio é ajuntado e queimado no fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os seus anjos e eles tirarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha de fogo. Alí haverá o choro e o ranger de dentes. Então resplandecerão os justos como o sol no reino de seu Pai. O que tem ouvidos de ouvir, ouça."
           
            Agora a ampliação interpretativa. O Senhor Jesus semeou no mundo, sancionando-a com o exemplo e o martírio, a sua doutrina redentora. Com ela converteu e tem, ao longo dos séculos, convertido pecadores em discípulos, ou filhos da luz, participantes do seu reino, ao mesmo tempo que sublimado nessa categoria os espíritos consideravelmente evoluídos, que tem enviado à Terra, com a missão de acelerar, pelo exemplo de suas virtudes, o adiantamento espiritual da humanidade; legítimo trigo por Ele semeado no terreno inculto deste mundo. O AntiCristo, porém, infatigável em suas reacionárias investidas, aproveitando o sono dos encarregados de velar pela sementeira, isto é, a falta de vigilância introspectiva dos pastores religiosos, tem não somente suscitado falsas doutrinas, mas estimulado os vícios e paixões nos próprios que ouviram a palavra do Evangelho, sem, todavia, como na parábola do semeador, anteriormente referida pelo Mestre, lhe guardar fidelidade, antes conspurcando-a com suas violações e só exteriormente adotando as insígnias de cristãos.

            Aproxima-se, porém, o fim do mundo, por essa expressão devendo entender-se não o aniquilamento catalítico do globo, mas o fim do velho mundo moral ou - equivalente-
mente - a terminação do ciclo desta civilização estrepitosa e materialista, irreligiosa, portanto, que se ostenta em nosso século, para ceder lugar a uma nova era, de espiritualização da humanidade, em que, aproveitadas todas as maravilhosas conquistas da ciência, para beneficio de todos e não apenas de uma minoria de favorecidos, o Evangelho será restabelecido em espírito e verdade, no esplendor de seus ensinamentos. Era de ascensão da Terra na hierarquia sideral, passando de esfera expiatória á categoria de mundo de regeneração, não sendo inadmissível - acrescentemos incidentemente - a ocorrência de alguns cataclismos parciais, que modifiquem, melhorando-as, as suas condições de habitabilidade, os Espíritos que, por sua obstinação no mal, se tornarem indignos de aqui voltar ou, conforme a sua rebeldia, de sequer permanecer em a nossa atmosfera, serão retirados pelos anjos do Senhor e conduzidos a planeta, ou sistema planetário, em formação - verdadeira fornalha ígnea, como o foi o nosso - em cujo ambiente, saturado de gazes asfixiantes, aguardarão, entre "choro e ranger de dentes", a época de baixarem a tomar novos corpos, para recomeço de evolução, que se tornaram incapazes de prosseguir na Terra, então regenerada. Os justos, que nela permanecerem, nela implantarão, com a Lei do Cristo, fiel e universalmente observada, o reino de seu Pai, isto é, de justiça, de paz e de fraternidade. E, como o sol, em sua deslumbradora irradiação física, resplandecerão eles de virtudes nesta morada, tornada então celestial.

            Esta, segundo os dados da Revelação nova, a significação espiritual do julgamento.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Espíritas pela segunda vez


Espíritas
pela segunda vez

de   Carlos Lomba
por W Vieira
Reformador (FEB) Setembro 1963

            O número dos reencarnados detentores de conhecimento anterior do Espiritismo aumenta e aumentará a cada dia.

            Quanto mais a individualidade consciente mentalize o mundo espiritual numa vida física, mais facilidades obtém para lembrar-se dele em outra.

            A militança doutrinária, o exercício da mediunidade ou a responsabilidade espírita vincam a alma de profundas e claras percepções que transpõem a força amortecedora da carne.

            Os princípios espíritas, a pouco e pouco, automatizar-se-ão no cosmo da mente, através de reflexos morais condicionados pela criatura, assentados no sentimento intuitivo da existência de Deus e no pressentimento da sobrevivência após a morte que todos carregam no imo do ser.

            Daí nasce o valor inapreciável da leitura, da. meditação e da troca de ideias sobre as verdades que o Espiritismo encerra e a sua consequente realização no dia-a-dia terrestre.

            Estudar e exercer as obrigações de caráter espírita é construir para sempre, armazenar para o futuro, libertar-se de instintos e paixões inferiores, rasgar e ampliar horizontes e perspectivas que enriqueçam as ideias inatas, destinadas a se desdobrarem quais roteiros de luz, na época da meninice e da puberdade, nas existências próximas.

            A maior prova da eternidade do Espiritismo, nos caminhos humanos, é essa consolidação de seus postulados na consciência, de vida em vida, de século em século, esculpindo a memória, marcando a visão, desentranhando a emotividade, sulcando a inteligência e plasmando ideias superiores nos recessos do espírito.

            A Terra recepciona atualmente a quinta geração de profitentes do Espiritismo, composta de número maior de criaturas que receberão a responsabilidade espírita pela segunda vez. Esse evento, de suma importância na Espiritualidade, reclama vigilante dedicação dos pais, mais viva perseverança dos médiuns, mais acentuada abnegação dos evangelizadores da infância, maior compreensão de todos.

            Um exemplo de alguém, uma página isolada, um livro que se dá, um fato esclarecedor, uma opinião persuasiva, uma contribuição espontânea, erigir-se-ão, muita vez, por recurso mais ativo na excitação dessas mentes para a verdade, catalisando lhes as reações de reminiscências adormecidas, que ressoarão à guisa de clarins na acústica da alma.

            Amigo, o Espiritismo é a nossa Causa Comum.

            Auxilia os novos-velhos mergulhadores da carne, divide com eles os valores espirituais que possuis. Oferece-lhes a certeza de tua convicção, a alegria de tua esperança, a caridade de tua ação.


            Se eles descem à tua procura, é indispensável recordes que esses companheiros reencarnantes contigo e o teu coração junto deles "serão conhecidos", na “Vida Maior", "por muito se amarem".

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O Tempo do Senhor


O tempo do Senhor
Irmão X
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Janeiro 1962

            No lar dos apóstolos em Jerusalém, era Tiago, filho de Alfeu, o mais intransigente cultor dos princípios de Moisés, entre os seguidores da Boa Nova.

            Passo a passo, referia-se à alegação do Cristo: “eu não vim destruir a Lei...” e encastelava-se em severa defesa do moisaísmo, embora sustentasse fervorosa lealdade à prática do Evangelho.

            Não vacilava em estender braços generosos aos irmãos infelizes que lhe recorressem aos préstimos; contudo, reclamava estrita obediência à pureza dos alimentos, às posturas do hábito, às festas tradicionais e à circuncisão. Mas, de todos os preceitos, detinha-se particularmente na consagração do chamado “dia do Senhor”.  Para isso, compelia todos os companheiros ao estudo e à meditação, à prece e ao silêncio, cada vez que o sábado nascesse, conquanto fossem adiados importantes serviços de assistência e socorro aos necessitados e enfermos que lhes batiam à porta.

            Dominado de zelo, o apóstolo notara a ausência de Zorobatan ben Assef das orações do culto, com manifesto pesar. Zorobatan, o vendedor de lentilhas, fora-lhe colega de infância na Galileia; no entanto, desde muito vivia nos arredores da grande cidade, viúvo e sem filhos, prestando desinteressado auxílio ao movimento apostólico. Amanhava pequeno campo e negociava os produtos colhidos, depondo a maior parte dos lucros na bolsa de Simão Pedro, para as garantias da casa; entretanto, se vinha à instituição, suarento e cansado, nas horas de trabalho exaustivo, era ele, nos instantes da prece, o faltoso renitente.

            Várias vezes Tiago mandara portadores adverti-lo, mas, porque a situação se mostrasse inalterada, por mais de seis meses, deliberou ele próprio repreendê-lo, em pessoa, no ambiente rural.

            Sobraçando grande rolo com apontamentos do Pentateuco, junto de André, o fiel defensor da Lei, na ensolarada manhã de um sábado de estio, varava trilhas secas e poeirentas, em animada conversação.

            A certo trecho, falou-lhe o companheiro, sensato:

            - Consideras, então, que um crente sincero, qual Zorobatan, seja passível de reprimenda, simplesmente porque não nos partilhe as assembleias?

            - Não tanto por isso - volveu Tiago, dando ênfase aos conceitos. - Ele não apenas nos esquece o refúgio, mas também foge de respeitar o terceiro mandamento. Empregados e vizinhos do seu campo avisam-me, cada semana, que ele passa os sábados inteiros em atividade intensiva, recebendo auxiliares adventícios, que lhe revolvem os celeiros e as terras.

            E o diálogo continuou:

            - Não se trata, porém, de abnegado amigo das boas obras?

            - Sem dúvida. E creio igualmente que a fé sem obras é morta em si mesma; contudo, a Lei determina seja santificado o tempo do Senhor.

            - E o próprio Jesus? Não curou nos dias de sábado?

            - Não podemos discutir os desígnios do Mestre, de vez que a nós nos cabe reverenciá-lo tão somente... Se ele mesmo lia os Sagrados Escritos nas sinagogas, nos dias de repouso, ensinando-nos a orar, não vejo, como desmerecer as veneráveis prescrições.

            André silenciou alguns instantes e voltou a observar:

            - Se uma de nossas crianças caísse no poço, em dia de sábado, não deveríamos salva-la?

            - Sim - concordou Tiago -, mas, nos sábados subsequentes, ser-nos-ia obrigação prender todas as crianças em recinto adequado, para que a impropriedade não se repetisse.

            - E se fosse um animal de trabalho, um burro prestimoso por exemplo, que viesse a tombar em cisterna profunda? Seria lícito deixá-lo morrer à míngua de todo amparo, porque o desastre ocorresse num dia determinado para o descanso?

            - Não hesitaria em socorrer o burro - disse o interlocutor, solene -, mas vendê-lo-ia, de imediato, para que não voltasse a ocasionar transtorno semelhante. 

            Nesse ponto do entendimento, a pequena casa de Zorobatan surgiu à vista.

            No átrio limpo e singelo, erguia-se mesa tosca e, junto à mesa, magras mulheres lavavam pratos de madeira. Velhos doentes arrastavam-se em torno, enquanto meninos esquálidos traziam frutos do depósito de provisões.

            Apesar da pobreza em derredor, todos os semblantes irradiavam alegria.

            À curta distância, Tiago viu Zorobatan que vinha do interior, carregando enorme vasilha fumegante.

            Surpreendido, escutou-lhe a palavra, chamando os presentes para a sopa que oferecia, gratuita, ao mesmo tempo que tornava à cozinha para buscar nova remessa.

            Sentaram-se todos os circunstantes, nos quais o apóstolo anotou a presença de aleijados e enfermos, viúvas e órfãos, que ele próprio já conhecia desde muito.

            Aproximou-se, no entanto, da porta e esperava que o amigo regressasse ao pátio, de modo a exprimir-lhe a desaprovação que lhe rugia n’alma, quando viu Zorobatan sair da intimidade doméstica, arfando de fadiga, ao peso de recipiente maior. Dessa vez, porém, um homem de olhar brando vinha, junto dele, apoiando-lhe as mãos calosas, para que o precioso conteúdo não se perdesse.

            O visitante, irritado, dispunha-se a levantar a voz, quando reconheceu no ajudante desconhecido o próprio Cristo que ele, só ele Tiago, conseguia ver...
           
            - Mestre!..    exclamou entre perplexo e constrangido.
           
            - Sim, Tiago respondeu Jesus sem se alterar -, agradeço as preces com que me honram, mas devo estar pessoalmente com todos aqueles que auxiliam os nossos irmãos por amor de meu nome...


            Com grande assombro para André, o velho apóstolo, em pranto mudo, largou o rolo da Lei sobre um montão de calhaus superpostos, segurou também a panela e começou a servir.