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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

História Antiga





História antiga
Rui Alencar Nogueira


           
            Transmitiu-nos um Espírito iluminado, mercê de Deus, esta grande e incontestável verdade:
            "As religiões (erro imperdoável) todas em luta entre si, exclusivistas, quanto à posse da Verdade, e isso em nome do próprio Deus, aplicadas não em procurar, como deviam, a ponte que as ligue, mas em cavar o abismo que as separe; cada uma presa da ânsia de invadir sozinha o mundo todo, em vez de coordenar-se com as demais, colocando-se no nível que lhe corresponda pela profundidade da revelação recebida, mais não têm feito que recobrir de humanismo a originária Centelha Divina." (Do Livro "A Grande Síntese", edição da FEB).

            Recordo-me, diante disto, que há cerca de 10 anos servia eu numa guarnição do Norte do país e estava no meu posto, num sábado, quando o sargento da guarda veio à minha presença para comunicar a chegada de um sacerdote católico que pretendia confessar, ali mesmo, todas as praças de serviço naquele dia.

            Por minha vez, devo declarar que, então, ainda não chegara até o meu espírito a luz da Terceira Revelação e eu ainda desconhecia a tolerância e a mansidão para com os pobres irmãos em Deus e vivia, portanto, nas trevas e sob o conceito materialista dos fatos.

            Ainda perplexo, fui ao encontro do padre que se propunha realizar um dos atos do seu culto religioso dentro de um Quartel, contrariando as leis e os regulamentos militares em vigor, do Estado desde os tempos memoráveis da proclamação da República e este laicismo foi uma das grandes conquistas da democracia no nosso país.

             "- Tenho ordens do seu comandante para confessar os homens, disse-me ele. Sou o capelão militar. Não vê que uso na manga da batina as estrelas de Capitão?"

             "- Desconheço essa função militar, reverendo. O desejo é, em verdade, muito antigo, mas os fatos ainda não estão consumados. Traga esta ordem escrita, porque ela é absurda e não pode ser cumprida assim ... de boca!"
-
             "- Ora, tenente, mas que exigência tola! O senhor é muito moço! Ainda não compreende a vida. Eu poderei ser, um dia, seu superior. E, olhe, o senhor terá que me fazer continência!"
           
             "- Tudo é possível, não nego, porque o mundo caminha para frente... mas dá os seus passos para trás, e nós podemos voltar às ladainhas nas casernas, como no tempo do Império. Mas, vamos esperar. Por enquanto, a Lei é outra bem diferente."

            Meia hora depois, o comandante - homem católico e que fora um dos organizadores da chamada "páscoa dos militares", dela participando como comungante, chamou-me ao telefone.

            "- Tenente, o padre F... veio à minha residência queixar-se. O senhor exigiu uma ordem escrita para que ele pudesse realizar confissões aí no Quartel, embora seja amanhã o dia da nossa páscoa?"

             "- Perfeitamente, coronel - respondi-lhe. O regulamento neste particular é bem claro e não permite. O senhor concedeu a ordem escrita?"

            " - Não, meu filho, redarguiu paternalmente. Você cumpriu o seu dever. Muito bem! As nossas igrejas, realmente, estão bastante próximas e os que desejarem poderão ir a qualquer delas, com toda convicção, mas sem a obrigatoriedade. Esta, sim, é a verdadeira religião - um dos verdadeiros caminhos que nos levam a Deus. Obrigar o soldado a ser católico, meu filho, não é possível nem é doutrina de Cristo!"

            "- Mas, comandante ... "

             "- Não diga nada, tenente, porque a Verdade está ao alcance de todos e Deus nunca foi nem será privilégio de ninguém ... "

            "-  Obrigado, coronel, pela excelente lição."

            "- Boa tarde, rapaz! Continue cumprindo assim os regulamentos da nossa instituição. É uma forma de ser cristão... "

            Foi este um grande e belo exemplo de compreensão, de tolerância e de amor ao próximo, digno de ser imitado.        

            E agora posso dizer: "Meu velho comandante e amigo! Que na Pátria dos Espíritos, onde vos encontrais, possam os missionários divinos esclarecer-vos e iluminar-vos cada vez mais para que possais derramar fluidos benéficos e dar intuições acertadas aos que labutam nas fileiras desse mesmo Exército que tanto amaste e tanto servistes com dedicação e tão perfeita compreensão."
Reformador (FEB) Novembro 1948


domingo, 2 de dezembro de 2012

12. "À Luz da Razão" por Fran Muniz




12
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


A PROCISSÃO

            O catolicismo incorporou aos seus dogmas - a procissão - emprestando-lhe a grande, a extraordinária virtude de aplacar a ira do Senhor.

            Pensemos, porém, sobre isso com serenidade e logo se há de concluir pelo absurdo de mais esta pratica.

            A procissão. chamada de rogação foi instituída pelo Bispo de Viena do Delfinado no ano de 470, ao tempo em que grandes calamidades assolavam a sua diocese, reaparecendo mais tarde, no ano 590 – “quando Deus flagelava Roma com horrorosa peste, cujas pessoas atacadas por ela morriam espirrando; daí a tradicional saudação de Dominus tecum. (1)

             (1) Goffiné- Manual do Cristão, página 496.

            A nosso ver são as duas únicas coisas aproveitáveis da procissão, para muita gente: Uma é se ficar sabendo que o Deus católico já matou muitos romanos de peste e outra é conhecer a razão porque se diz ao vizinho: - dominus tecum!.. se é que espirra.

            Com os devidos agradecimentos ao Bispo do Delfinado.

            Diz a igreja ser a utilidade da procissão:

            1º - “A profissão pública da nossa fé;
           
            2º - Uma atração, em maior escala, das graças de Deus, concluindo-se que, se a oração de um só justo é tão poderosa, que não será a eficácia duma freguesia inteira, quando se sabe que Jesus Cristo Nosso Senhor está presente aos que oram unidos dois ou três?

            3º - É o meio mais próprio de remontarmos o nosso espírito a Deus e o mais capaz de inspirar-nos o firme propósito de sermos dignos membros da Igreja Católica. (2)

            (2) Obra Cit. pág. 197.

            Comentemos: Em primeiro lugar, Jesus tendo nos ensinado inúmeros meios para conseguirmos a salvação, nunca nos falou em procissões, pelo menos não é isso encontrado no Evangelho, nem pode deixar de assim ser, visto ter sido a procissão uma extravagância criada por conta própria da igreja, 470 anos depois de Cristo.

            Essa procissão foi iniciada com o propósito de combater a peste com que Deus flagelava Roma.

            Não sabemos se o mal foi debelado por esse processo mas, em compensação, vemos mais uma clamorosa heresia atirada ao Criador, considerado como bárbaro, por um povo ignorante.              

            Isso, porém, já não admira porque a igreja na Permissão do Juramento, diz: “Ele é uma obrigação entre todas a mais grave, porque toma-se o próprio Deus por testemunha, juiz e vingador.” (2)

            (2) Obra Cit. pág. 197.

            Esse hábito, aliás. é muito banal no Catolicismo. Para ele Deus é um títere que obedece aos caprichos de seus ministros.

            A procissão tem ainda por escopo. “demonstrar a nossa fé e a eficácia da oração. quando realizada por uma freguesia inteira.”

            E aqui, outra vez, se espezinha o preceito evangélico que não haverá demasia em repetir:

            “Quando orares não sejas como os hipócritas que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem vistos dos homens, mas entra no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai em secreto, etc.”

             Portanto,. a clareza destas palavras não deixa a menor duvida de que Jesus proibia as orações espalhafatosas e em publico, certo de que, elas assim seriam inúteis.

            A igreja, porém, supõe salvar a situação acenando com esta outra afirmativa do Nazareno:

            “Quando estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu aí estarei também.”

            Estudemos, pois, essa condição com sincera imparcialidade:

            Deve-se entender uma reunião em nome de Jesus quando ela forma uma cadeia compacta, constituída de um só pensamento, uma só vontade; quando os seus componentes se acham animados pelo verdadeiro sentimento de amor a Deus e ao próximo; animados pelo mesmo sentimento de caridade e finalmente com a humildade e mais possíveis virtudes ensinadas pelo Cristo para que a sua presença se possa realizar.

            Ora, será isso o que se encontra entre uma Freguesia que constitui a procissão?

            Precisamente não, porque vemos aí, incrédulos, indiferentes e até indignos; vemos discussões e controvérsias; vemos risos e chacotas; vemos idílios amorosos e vemos, não raras vezes, até conflitos e ferimentos, na prevenção dos quais, as procissões, geralmente, são guardadas por soldados de policia.

            Assim, pois, uma procissão não é nem pode ser uma reunião em nome de Jesus e, portanto, ele aí não poderá estar presente.

            Outro prestígio da procissão é o de ser o meio mais próprio para remontarmos o nosso espírito a Deus.

            Isto de modo algum pode ser exato, pois sabemos pelas próprias palavras de Jesus, que, para tanto conseguir é mister sacrifício maior de nossa parte, que assistamos e curemos os enfermos; que não demos satisfação excessiva à matéria, abandonando-nos aos gozos e vícios; que, com os necessitados se divida os nossos haveres; que, enfim, sacrifiquemos os interesses mais caros em favor do nosso próximo. Eis no que consiste, segundo as divinas palavras, o meio de ascendermos até Deus.

            Uma verdade, aliás, resulta da procissão, como a igreja assevera: É ser ela o meio mais capaz de inspirar aos seus adeptos o firme propósito de serem dignos membros da igreja católica.

            Lá isto é!

            Realmente. Haverá quem se recuse a elevar-se a Deus por meio de uma excursão agradável, de um divertimento onde a gente expõe toaletes vistosas, ornados de fitas e flores, cada qual se esforçando  pare conseguir um lugarzinho ao lado do santo ou do padre?

            Com tal condição tão simples, tão vulgar, quem não desejará ser católico?

            Há, todavia, uma classe que não o deseja: é a dos que só vêm nessas futilidades uma ofensa ao Criador.

            Reflitamos ainda sobre a ostentação das procissões e sejamos coerentes:

            Essas procissões de rogações eram realizadas antigamente por ocasião das epidemias, secas, cataclismos e outras calamidades, e tinham por objetivo implorar a Deus a graça de aplacar aqueles flagelos.

            Sabendo-se, entretanto, hoje, que tais fenômenos são resultantes das leis da natureza, contra os quais os homens se devem precaver, quanto seja possível, por meio da ciência e do trabalho, não será um absurdo supor que Deus deva derrogar as suas leis para satisfazer a um certo numero de indolentes e inimigos da instrução?

            Objetar-se-á: Visto serem estas leis que produzem os flagelos, não se deve reprovar a igreja na acusação que faz a Deus uma vez que por sua vontade é que isso se realiza.

            A resposta é facílima: Conhecemos nós, por ventura, todas as leis que regem o universo? Podemos nos furtar à suposição de que esses flagelos sejam para atenuar outros ainda maiores?

            E ainda seremos, dentro da boa lógica, levados a admitir que isso se produza em beneficio da própria Terra ou talvez em proveito da vida nos outros planetas.

            Pois o que é que representará, em relação aos inumeráveis mundos espalhados pelo infinito, o cataclismo que, em nosso meio, devaste uma cidade ou um país, fazendo milhares de vítimas?
           
            Que sabemos nós?

            Demais, tudo que dimana das leis divinas é sempre bom; o fato de não atinarmos com a razão de ser de um fenômeno não nos autoriza a exigir que Deus nos dê conta dos seus desígnios.

            Assim, em vez de acusar Deus, devemos lhe dar graças pela sabedoria das suas leis!

            Portanto, pedir ao Criador que modifique os seus objetivos, é absurdo grosseiro e irrisório, que atenta contra a sua infinita sabedoria.

            É verdade haver quem acredite que Josué mandou parar o sol e foi obedecido...

            As procissões, em suma, não passam de festividades e ajuntamentos, formalmente proibidos por inspiração dos espíritos emissários do Senhor.

            Leia-se o Antigo Testamento:

            “Quem requereu de vós estas coisas? incensos, festividades, ajuntamentos, que para mim são indignos? A minha alma aborrece as vossas calendas. As vossas solenidades se me tem feito molestas”. (1)

            (1) Provérbios, cap. IX, v. 10.

            Não há nada mais claro. Mas a igreja na sua pretensa sabedoria passou por cima deste e de todos os textos que lhe não convinham para a realização dos seus intentos.

            O que merece, porém, mais aprofundada observação são as célebres procissões do Corpo de Deus ou do Enterro.

            Essas são um positivo rebaixamento e o maior ultraje, imposto ao Divino Mártir do Gólgota.

            Do mesmo modo que os carnavalescos comemoram o deus Momo, o deus da orgia e do deboche, com procissões vistosas. fantasias alegóricas, figuras ridículas e grotescas assim entendeu a igreja, que Cristo, isto é, o seu Deus, também tem o mesmo direito e merece idênticas manifestações figuradas em procissões retumbantes e fantasmagóricas,  posto que menos concorridas e muito mais baratas que 05 préstitos de carnaval.

            Na procissão, a alegoria principal é a figura representando Cristo que é submetido a uma longa exposição num templo que lhe serve de câmara ardente e, durante a qual, permanece ao lado, uma bandeja para receptáculo de dinheiro oferecido pelos fiéis.

            Se o Cristo chegasse a ser sepultado, era de supor que esse dinheiro obtido com a sua morte servisse para as despesas do sarcófago. Assim não sabemos se esses donativos ficam para a igreja ou se serão destinados às filhas de Maria, que são os herdeiros mais próximos do morto.

            Finalmente, à hora convencionada, o suposto Deus é retirado para o também figurado enterramento. É' então conduzido numa padiola, mais ou menos ornamentada, ai que chamam andor, sobre o qual é Deus deitado e coberto com panos, mais ou menos rendados e bordados, segundo as circunstâncias financeiras da igreja.

            Segue-se, então, o acompanhamento, de acordo com a determinação do padre encarregado da direção.

            Há, aí, cânticos, orações. Dei gratias, Anjos cantores, ignorâncias, atraso espiritual e até mesmo o perdão para tais ofensas tão ingratamente assacadas ao Criador; porque Jesus, na sua inigualável bondade, mais uma vez mostrará a magnanimidade do seu coração, repetindo: “Pai perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem.”

            Há tanta semelhança entre os préstitos de Momo e as procissões religiosas, que só não se confundem de uma vez por faltar nestas os Zé Pereiras e o tintilar dos guizos que superabundam nas outras e mais a diferença de que naquelas campeiam as gargalhadas dos prazeres debochados e a loucura incontida da orgia desenfreada e nestas impera a demonstração fingida de certo cunho de tristeza adequada ao ato.

            Nas de Momo, faz-se a exposição de mulheres seminuas sobre palanques e tronos ornados de falsas pedrarias e nestas vemos a exposição do próprio Deus, representado numa figura grotesca sobre indecente padiola, ornada igualmente de bugigangas; naquelas finalmente se vê a glorificação do deus dos lupanares e nestas o frisante desrespeito ao boníssimo Jesus, em má hora aclamado Deus do Catolicismo.

            Mas a igreja não reflete, nem convém refletir nessas iniquidades porque seria decretar a falência do seu negocio e resolve que Deus deve ser comparado às banalidades terrestres e adorado pelo mesmo processo com as mesmas aparências, com que é adorado o deus da bacanal.

            Que desgraça para um povo que tanto rebaixa o seu Criador!

            Infelizmente o Catolicismo permanecerá ainda, por algum tempo, envolto nas densas brumas do erro a dominar um grande número de criaturas que, desconhecendo por completo o caminho da verdade, julgam encontrar nele a felicidade e a salvação.

            O tempo, porém, é um mestre incansável e há de raiar a época em que toda a humanidade despertará do narcótico a que está ainda submetida e sacudirá para sempre o jugo da inconsciência dos homens, para se consagrar inteiramente a Deus.

            Até lá, porém, procuremos nos convencer de que Ele está tão alto e tão longe que errônea há de ser toda a compreensão que fizermos a seu respeito. Nessas divagações bem nos parecemos com os astrólogos que fazem da Lua, de Marte ou do Sol uns mundos que cabem inteirinhos nas lunetas dos seus telescópios.

Natureza Fluídica do Corpo de Jesus





Natureza Fluídica
do corpo de Jesus
Victor Hugo, no livro ‘Les Vérités Eternelles.’
Tradução de Antônio Lima
in Reformador (FEB) Abril 1947.


Supondes que Jesus, ao descer sobre a Terra,
Se envolvesse em matéria igual à em que se encerra
O vosso corpo? Não, isso é inadmissível,
Pois viver entre vós assim fora impossível.
Era sua matéria o fluido imponderável,
Do corpo a natureza era leve e mutável,
E para se tornar entre vós aparente,
Ele, que ocupa Além um lugar eminente,
Teve de lançar mão de meios inauditos
Cujo segredo está lá nos céus infinitos.

Não suponhais também que, por ser diferente
Do vosso o corpo seu, a agonia pungente
Não lhe fosse cruel nem a morte. A amargura
Tanto a alma fere mais quanto mais ela é pura
E menos material, porque dos sofrimentos
O efeito é mais cruel, maiores os tormentos.
E eis porque Jesus de uma só vez sofria
Mais do que todos nós uma mesma agonia.
Seja Ele abençoado e Deus lhe dê a glória!
Nunca seja seu nome esquecido na História!
Para tanto sofrer era mister no mundo
Que n'Ele fosse o amor eternal e profundo!

Bendito amigo que és de toda a Humanidade,
Ó Cristo amado, em quem o farol da verdade
Resplende em toda a parte apontando as estradas
Por onde hão de passar as almas adiantadas
Para alcançar do Pai o poder e o direito
À gratidão de todo o Universo perfeito!
Amados querubins, que no espaço ilimitado
Tendes sofrido assim quanto eis-nos estimado,
Que nunca vos cansais de guiar-nos generosos
E tão esforçadamente aos cimos gloriosos,
Que já haveis atingido, ó Espíritos nobres,
Recebei dos que são vossos irmãos mais pobres
A mais terna expressão, a mais santa e solene,
Da nossa gratidão, que é profunda e perene!


As Três Pedrinhas




As Três Pedrinhas


            No alto do monte Kiskut, perto de Medina, na Arábia, viviam dois pastores: Mameiik, ancião de setenta invernos bem contados, e Ahmed-Nahra, no estouvamento dos seus belos dezoito anos.

            Certa noite, inquieto, Ahmed-Nahra bateu nervosamente à porta do velho. Cometera uma falta e temia sofrer-lhe as consequências. Apesar de a noite ir adiantada, achava-se Mameiik acordado, lendo, à luz vacilante de uma candeia, versículos do Livro Sagrado do Profeta. Interrompendo a leitura, pôs-se a ouvir Ahmed-Nahra, cujas palavras, no silêncio tumular daquela hora, estrepitavam, muito embora o rapaz as pronunciasse quase à meia voz.

            Todo esse tempo Mameiik permaneceu calado, sem fazer um gesto. Voltando a manusear o vetusto livro, procurou um trecho que se adaptasse à situação do jovem amigo. Leu-o em voz alta, vagarosamente, como que pretendendo gravá-la no coração irrequieto do traquinas.

            Cabisbaixo, Ahmed-Nahra suportou humildemente a admoestação, ouvindo as considerações de Mameiik, que conservava ainda o dedo pousado em certo ponto do sagrado eucológio (livro que contém rituais religiosos).

            E o velho começou a falar:

            - "Ahmed: Estás ficando um homem. É preciso que te habitues a sofrear os impulsos desordenados da tua natureza rebelde. A ocasião é propicia para começares vida nova, porque teu coração se encontra em sobressalto e receias a punição severa do cádi. Sirva-te de escarmento (exemplo) o que hoje te aconteceu. Deixa em paz as tamareiras de Abid- Amam e volta teus olhos para o Livro Sagrado do Profeta, onde está escrito o destino de cada um
de nós."

            Passando a mão espalmada pela cabeça do jovem, Mameiik confortou-o com um sorriso cheio de bondade. E continuou:

             - "Ahmed: Não tenho filhos; todos os membros da minha família já foram chamados por Alá. Todavia, não me encontro só, como imaginas, porque tenho a companhia das minhas melhores recordações, e a bênção do Profeta enche os meus últimos dias de vida. Sinto em volta de mim os amigos que os meus olhos não podem ver, mas que o meu coração percebe. Conheço todo o Livro sagrado e posso dizer-te tudo quanto ele contém, do começo ao fim, de trás para diante. Entretanto, Ahmed, isto não basta. É preferível trazer as Santas Palavras no coração - e não somente nos lábios - para que os nossos atos e dizeres não as contrariem.

            Após breve interregno, rematou:

            - "Em vez de invadires o pomar de Abid-Amam para roubar tâmaras, vem para cá, todas as noites. Ensinar-te-ei alguns dos mistérios do Livro Sagrado do Profeta; aprenderás a senti-la, a interpretá-lo, a ler, através da linguagem poética dos versículos, muitas vezes alegórica, o pensamento profundo e sutil que Alá soprou a Maomé. E, então, se fores fiel a esses ensinos, tua vida mudará para melhor, novos horizontes se desdobrarão ante os teus olhos. Aprenderás a compreender a Vida e a dar às coisas da Terra seu justo valor. Acharás as Santas Palavras do Livro Sagrado infinitamente mais doces do que os belos frutos maduros das tamareiras de Abid-Amam..."

*

            Assim fez Ahmed-Nahra. Longas e longas noites, do verão ao inverno, do inverno ao verão, frequentou ele a choça de Mameiik, estudando e aprendendo que as ambições do mundo são tolas e que somente nos deixamos seduzir por elas porque não estamos preparados espiritualmente para a vida. A lição do velho místico fora-lhe proveitosa.

            Três anos decorreram após aquela noite agitada e Ahmed-Nahra estava completamente modificado. Guardava bem vivas na lembrança as palavras de Mameiik:    

            -"Ahmed, Ahmed, meu filho, toma tento. Todas as graças do mundo não valem um momento de real tranquilidade. Os homens se esfalfam, brigam e se matam pelo poder, pela riqueza, pela dominação dos outros homens. Insensatos! Vai um dia ouvir o ulemá Abdul-ben-Abdullah e verás, Ahmed, como a vida é muito mais bela do que parece. Mas sua beleza é tão simples que a maioria dos homens não a enxerga nem compreende ... Vai ouvir Abdul-ben-Abdullah. Ele te dirá como alcançar a Paz Interior. Começa por não pensar mal nem fazer mal a quem quer que seja. Mas faze o bem a todos, indistintamente. Ser bom, além de constituir intransferível dever, é direito que o Espírito adiantado adquire, pois a bondade é índice seguro de elevação espiritual. Trabalha por, ti, ajudando os teus semelhantes, É fazendo pelos outros que nos ajudamos melhor. O primeiro passo para o bem é não fazer o mal. O segundo, é fazer e pensar sempre o bem."

            Quando o ex apreciador das tâmaras de Abid-Amam decidiu visitar a cidade de Meca, para realizar o seu "abdest" (purificação legal) e ouvir o sábio Abdul-ben-Abdullah, amigo de Mameiik, este lhe ofertou um alquicé (pequena capa) e uma sacola, dizendo conter três pedras pequeninas. As lágrimas visitavam os olhos do rapaz, na hora da despedida. Então, Mameiik lhe disse, docemente:

            -"Toma, Ahmed-Nahra, estas pedrinhas, Leva-as contigo onde quer que vás, para que te não esqueças de teus deveres."            

            Ahmed abriu o saquinho e segurou a pedra maior. Advertiu-lhe o velho:

            -"Essa pedra significa que a ingratidão do mundo é a mais comum das recompensas que podemos esperar do bem que fizermos. Isto quer dizer que não se deve fazer o bem senão por amor ao bem, ainda que nos façam mal; nunca, porém, para recebermos qualquer paga ou agradecimento."

            Ahmed enfiou de novo a mão na sacola e dela retirou outra pedra, um pouco menor que a anterior.

            -"Sábio Mameiik, e esta?"

            Mameiik olhou demoradamente para o jovem e tornou:

            -"Esta é a segunda pedrinha. Não é grande nem pequena demais. Quer dizer que deves sempre vigiar as tuas ações e controlar os teus pensamentos, evitando, excessos e deficiências. Ela representa o meio-termo. A verdadeira virtude está no equilíbrio. Foge dos elogios fáceis e abundantes, como das censuras e acusações levianas. Sê sóbrio, discreto, paciente, tolerante, Ahmed-Nahra ; sê justo."

            Ahmed, então, rebolcou a sacola pela última vez, procurando a derradeira pedrinha, que deveria ser a menor das três. Não a encontrando, olhou, surpreso, para Mameiik, que lhe prestou o esclarecimento final:

            -"Ahmed-Nahra, filho meu: A pedrinha que não encontras representa o que fizeste de bom até agora, em favor dos teus semelhantes... Não a vês, é certo, porque ela ainda é imaginária. Não importa, porém. Trabalha com o pensamento em Alá; faze o bem, de preferência a quem te fizer mal; serve ao teu próximo, com boa vontade e sincera alegria no coração, e, um dia, quando procurares de novo a pedrinha dentro da sacola, encontra-la-ás, porque ela crescerá simultaneamente com o teu progresso moral."

            Cinquenta anos depois, Ahmed-Nahra voltou ao alto do monte Kiskut, onde vivera com Mameiik.

            A cabeça branca era como que uma auréola de prata fulgurante. Trazia ele ainda, com acendrado carinho, a sacola com as duas pedrinhas que o velho amigo lhe dera. A terceira ele a encontrara, depois de anos de intensa labuta. Seu nome se fizera conhecido da Arábia inteira e era pronunciado com respeito geral.

            Dizem as crônicas daquele tempo que Ahmed-Nahra não pode trazer consigo a terceira pedra porque ela crescera tanto, tanto, que, então, já pesava algumas toneladas...

 por José Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Outubro 1947

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sábado, 1 de dezembro de 2012

11. "À Luz da Razão" por Fran Muniz



11
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


O JEJUM


            Antigamente, dizem-nos as Escrituras, a barbárie e a ignorância dos povos, arrastavam-nos à prática de atrocidades, persuadidos de que eles seriam agradáveis a Deus e nessa convicção imolavam animais, carbonizavam ou decepavam os próprios braços ou pernas, sacrificavam os filhos e até se deixavam devorar pelo fogo. Daí, também o sacrifício do jejum de alimentos, adotado em honra e louvor ao Senhor e que Jesus encontrou em uso nas seitas judaicas.

            Essa frivolidade passou a pertencer, exclusivamente, à igreja que a conserva nos seus arcanos, desde que Telesforo, bispo de Roma, plagiando-a das crenças antigas, a instituiu no ano 130, fazendo dela um preceito que impôs aos católicos como possante auxiliar na aquisição das graças do Céu.

            Cristo, se não proibiu diretamente esse hábito inveterado, foi, sem dúvida, porque tal costume não acarretava outro prejuízo senão as agruras da fome; e isto era já uma punição imediata à ignorância reinante. Além disso, o jejum era, então, uma forma de adoração ao Criador e, Jesus o proibindo daria causa a certa desconfiança sobre a eficácia dos demais preceitos verdadeiros, pelo que teria de lhes dar uma explicação aprofundada que eles, absolutamente, não compreenderiam naquela época.

            Não obstante, o Nazareno nunca o pregou positivamente e, se algumas vezes se referiu a ele, foi sempre dando um sentido diferente do que era compreendido.

            Temos a prova disso. Quando ele busca nesse preceito um ensejo para repelir a hipocrisia e o orgulho, demonstrando que tudo quanto se faz com ostentação, perde o mérito e a utilidade. Por isso, recomendou aos seus apóstolos não imitarem os hipócritas que simulavam tristeza para mostrar aos homens que jejuavam; mas, ao contrário, asseassem a cabeça e o rosto a fim de ser aquela ação voluntária conhecida somente por Deus que vê tudo quanto se passa em segredo.

            Esse conselho figurado evidencia que quando praticarmos um ato que nos pareça bom, não o devemos fazer com ostentação, chamando a atenção para ele.

            Tal modo de proceder está confirmado ainda nesta indicação referente á caridade: “Que a tua mão esquerda não saiba o que dá a direita.”

            Lembramos que jejum significa privação, abstenção, de qualquer coisa. Por conseguinte, existe jejum de passeio, de teatro, de jogo, de bebidas e de tudo quanto possa o individuo privar-se. Esta recordação se torna mister para que não seja considerado jejum somente a privação de alimentos como é entendido e ensinado pela igreja.

            O jejum de alimentos é um atentado à Lei da nutrição; infringi-la é depauperar o nosso sistema orgânico, sem outra coisa explicar senão um sacrifício inútil e expressamente proibido pelo Mestre, nestas palavras:

            “Misericórdia quero e não o sacrifício”

            Outro esdrúxulo preceito é o da substituição da carne pelo peixe em determinados dias da quaresma católica, cujo infrator incorre em gravíssimo pecado se não se premunir com uma pequena bula, indulgência essa concedida com muito sigilo e a preço módico.

            De sorte que o fim não é evitar ofensas a Deus, mas, tão somente rechear a bolsa da religião.

            No entanto, esse absurdo está denunciado pelo Mestre nesta frase:

            “Não é o que entra pela boca que faz imundo o homem. mas o que sai da boca é que o faz imundo.”

            Se este ensinamento for mostrado à igreja, veremos que ela descobre logo nele uma legalidade para receber o dinheiro da “bula” A igreja, tratando de interesses, é bem inteligente...

            Mas, retomemos ao jejum. Este preceito tomado segundo a letra, perde toda a importância, ao depararmos com a resposta de Jesus, quando os fariseus lhe perguntaram porque eles e os discípulos de João jejuavam e os apóstolos não faziam o mesmo:

            “Porventura, podem jejuar os filhos do Esposo, enquanto está com eles o Esposo? Mas, lá virão dias em que lhes será tirado o Esposo e, então, eles jejuarão.”


            Faremos notar que esse cognome de “Esposo” era, antigamente, dado ao jovem que contratava união com uma mulher hebraica para constituir família e, por isso, Jesus se apelidava de Esposo porque sua missão era também organizar a família cristã, protegendo-a e governando-a.

            Portanto, com aquela resposta se esclarece que os apóstolos, vivendo sob a proteção de Jesus, tornavam-se seus filhos e, por isso, não tinham necessidade de jejuar, isto é, de se absterem dos vícios e dos excessos para expiar faltas que eles não possuíam, porque o Esposo os protegia dos erros com os seus ensinamentos e exemplos.

            Mas, afirmou que eles jejuariam, isto é, teriam de passar por privações, logo que o Esposo os deixasse, porque, então, cairiam em erros e, a seguir, ficariam sujeitos às privações para repará-los.

            De outra feita, Jesus respondendo à arguição dos Apóstolos:.

            “Porque não pudemos curar o lunático e tu o pudeste?” - disse. para demonstrar os prodígios da fé:

            “Esta casta de demônios não se lança fora senão a força de oração e jejum.”

            Não se suponha, porém, que demônios sejam entidades com rabo, chifres e pés de bode; são espíritos perversos que animaram, na Terra, os corpos de criaturas criminosas e malévolas e que depois da morte do corpo levam consigo o mesmo instinto e assim, na erraticidade, procuram continuar os seus desejos malvados, agindo sobre as pessoas fracas que se deixam dominar por falta do jejum, isto é, por se não privarem dos apetites materiais supérfluos, dos maus pensamentos e dos vícios inveterados.

            Para cura-los, ou seja, para afastar esses espíritos rebeldes, é necessária a força da oração; mas a oração, não é o que se lê num livro aberto, em doses determinadas pela quantidade de padre-nossos e avemarias, nem a repetição de palavras harmoniosas e sonoras, saídas dos lábios, sem terem passado pelo coração. A oração é um conjunto da fé viva com o pensamento puro, imbuído no amor, na caridade e nas boas obras; nestas condições a oração atravessa o infinito, qual o éter, e vai direta aos pés de Deus que sabe discerni-la e valoriza-la . Eis a prece!

            Há, portanto, falta de consciência, nos ministros de Deus que, tomando tão ao pé da letra a significação do jejum, impõe semelhante desumanidade a quem só devia receber deles, caridade e conforto!

            Basta-lhes o sacrifício de ter de dividir com a igreja o pão obtido com o trabalho penoso e fatigante.

            Protestemos com veemência, contra esse absurdo imposto à credulidade alheia!

            Independente da fonte iluminativa do Evangelho, apele-se ainda para a consciência que nos dirá se é aceitável o jejum de alimentos como expressão de louvor a Deus.

            Certamente, não é possível a uma criatura se preocupar inteiramente com o Senhor, dirigindo-lhe o pensamento e dedicando-lhe a prece sincera do coração, no momento em que sente a torture da fome.

            Ainda mesmo reagindo contra a natureza, empregando toda a boa vontade e procurando até fruir o máximo prazer com semelhante sacrifício, é claro que a nossa atenção e o nosso pensamento são, forçosamente atraídos para esse ponto que nos reclama socorro.

            Assim sendo, não é intuitivo que, embora independente da nossa vontade, a intenção deixa de preencher o fim exclusivo para o qual está voltada?

            Ao passo que se estivermos com o corpo devidamente nutrido e asseado, de modo a nenhuma preocupação desviar o nosso pensamento,  poderemos, de melhor forma, nos dedicar ao Criador.

            Isto é tão lógico como ineficaz é o “jejum católico” para o agrado de Deus.

            Esse preceito, diz a igreja, ser também uma disposição preliminar e preponderante para os sacramentos da comunhão e da missa, a fim de que os comungantes e os padres possam tomar Deus ou Cristo, isto é, a hóstia; porque, dizem, essa refeição do alimento celestial, não deve ser precedida da alimentação material comum e grosseira.

            A nulidade de tal precaução já foi externada em capítulo precedente; pede-se tão somente agora que nos respondam com sinceridade: Os que se submetem a esse preceito esfaimado, leva-lo-ão a cabo incondicionalmente? Aquele que impõe a outrem tal sacrifício, cumpri-lo-á também de modo completo e absoluto?

            Não é provável: pelo menos existem sobejas provas do contrario, pois estamos observando todos os dias excessivos exemplos daqueles que pregam aquilo que absolutamente não cumprem. Confirma essa desfaçatez a costumeira advertência com que zombam dos incautos: “Faças o que eu digo, mas não faças o que eu faço”.

            São a esses que o Mestre na sua presciência se referiu, dizendo:

            “Observei-os, porém, não obreis segundo a prática das suas ações: porque dizem e não fazem; eles põem pesadas e incomportáveis cargas sobre os ombros dos homens. mas nem com os seus dedos a querem mover.”

            Não nos iludamos! O jejum, a que Jesus sempre se referiu, consiste na abstenção de pensamentos criminosos, na modéstia da satisfação das nossas necessidades materiais, na sobriedade dos nossos costumes, na regularidade dos nossos atos e na prudência de nossa conduta.

            Nesta elevada e justa acepção é que podemos compreender o jejum e, jamais, como no-lo apresenta a igreja, emprestando-lhe um sentido fútil e irrisório.