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quinta-feira, 11 de junho de 2020

Somos da verdade?



Somos da verdade?  
por João Marcus  (Hermínio Miranda) 
Reformador (FEB) Outubro 1975

            Da casa de Caifás, conta João (18:28), levaram Jesus ao pretório. Era já madrugada. Os judeus não entraram para não se contaminarem, pois ainda tencionavam comer o cordeiro pascal. Pilatos veio. A cena que se desdobra ê majestosa, e os diálogos têm uma riqueza intemporal.
            - Que acusações trazem contra este homem? pergunta Pilatos.
            - Se não fosse um malfeitor não o teríamos trazido a ti.
            - Levai-o e julgai-o vós mesmos, segundo a vossa Lei.
            - Não podemos matar ninguém.
            Pilatos retomou ao pretório e se dirigiu ao acusado:
            - És tu o rei dos judeus?
            - Dizes isso por ti mesmo ou o que os outros disseram de mim?
            - Por acaso sou judeu? Teu povo e os sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste?
            - Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, minha gente teria lutado para que eu não fosse entregue aos judeus, mas meu reino não é daqui.
            - Quer dizer que tu és rei?
            - Sim. Tu o dizes, sou rei. Para isto nasci e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
            E Pilatos, sem esperar resposta, e como se falasse consigo mesmo, perguntou:
            - Que é a verdade?
            E voltando aos judeus, declarou que não via crime naquele homem.

*

            O momento é grave e solene. É chegada a hora, e o testemunho supremo se aproxima. Nada mais há a ocultar. Antes, não. Era preciso primeiro pregar a palavra, divulgar a mensagem das alturas, desvendar os mistérios do amor, acender as candeias da esperança, levantar os paralíticos, trazer de volta os próprios mortos, aquecer o coração dos solitários. Agora, tudo estava dito e feito. Mesmo a sua condição de Messias era já conhecida entre os que o seguiam, e a hora chegara de reconhecer, ele próprio e publicamente, a sua condição.
            - Sou rei.
            Viera exatamente para isso: dar testemunho da verdade. E, mais uma vez, o mundo não estava preparado para recebê-la e compreendê-la, porque, como de outras vezes, a verdade contrariava interesses poderosos, punha em risco confortáveis posições de mando, dizia coisas que as consciências anestesiadas não queriam ouvir. A verdade é isso.
            É também nesse episódio que o Cristo não apenas confirma o seu messianato, mas também assegura aos que ainda o duvidassem que não buscava o poder político, como esperavam muitos e temiam outros. Se assim fosse, sua gente teria lutado por ele. Nesse mesmo ponto, transmite ele outra informação preciosa, que precisa ser relembrada insistentemente:
            - Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
            Os exemplos dessa hora dramática continuam a chamar nossa atenção para os mistérios e segredos da natureza humana. É a fraqueza dos que se julgam fortes e condenam o semelhante à destruição, pensando destruir lhe também as ideias. É a fraqueza dos poderosos que, podendo estender a mão àquele que a turba deseja esmagar, compactuam com a massa inconsciente e concedem a vida preciosa que não lhes pertence. É a fraqueza dos donos da verdade, que açulam multidões e lavam as mãos dos crimes que se cometem por sua inspiração mal a visada.
            Por outro lado, vemos a grandeza daquele que parece esmagado, mas, mesmo assim, confirma sua realeza para informar que não busca esse poder que condena, que destrói, que sufoca, que não recua nem diante do crime. Seu reino é outro, de compreensão, de amor, de renúncias inconcebíveis e anônimas. É a grandeza daquele que marcha para o testemunho, melancólico, por certo, mas sem recuos, sem temores, sem recriminações, porque a hora é chegada. É a grandeza daquele que, dispondo também de forças, não as levantou nem mesmo para defender sua vida, muito menos para o assalto ao poder temporal. É a grandeza sutil daquele que sabe em seu coração que não adianta colher o fruto antes que esteja maduro, pois somente ouvem a sua voz os que também, como ele, longe de serem donos da verdade, colocam-se como seus servidores, embora em planos diferentes e afastados.
            Essas posições humanas reproduzem-se a cada momento, ao longo dos milênios. E, mais uma vez, a Doutrina dos Espíritos repete a lição, informando que seu reino não é deste mundo, que não busca o poder temporal nem a arregimentação descabida, pois somente ouvem a voz da verdade aqueles que estejam ligados a ela.
            Os Espíritos renascem e esquecem. É preciso que alguém lhes venha recordar as belezas da verdade eterna. Não é sem razão que Platão dizia que aprender é recordar. Até mesmo ele, o grego ilustre, precisou recordar-se para que toda a força do seu gênio pudesse desdobrar-se na sublime filosofia do espírito imortal e reencarnante. A esses que vêm marcados pela verdade, não ê preciso gritar em praça pública, nem agarrar pelo braço, nem prometer fatias de poder dentro do movimento, ou posições de brilho e destaque no seio da comunidade: eles estão prontos. Uma só palavra basta, um chamado, um gesto, um artigo, uma singela mensagem, um livro esquecido em cima da mesa, um fenômeno como tantos, a visão esmaecida de um ser que partiu, ou uma doce advertência murmurada com amor através da barreira da “morte”. Só lhes falta aquele pequeno impulso, nada mais, e ei-los a caminho, integrados na equipe do Mestre, como antigos e fiéis trabalhadores. Não importa que no passado tenham errado muito; o que importa é que busquem com sincera emoção e humildade os caminhos, às vezes tão difíceis, da verdade.
            E, assim, nós que tentamos ser da verdade, sigamos atentos e vigilantes e, no entanto, em paz. Prontos para o testemunho, e, ao mesmo tempo, desarmados de rancores, de frustrações e de ambições.
            - Que buscais? perguntava Ele.
            É a paz? Então sigamos pelas trilhas que nos levam à paz. Elas não passam pelo território da mentira, nem da glória pessoal, efêmera e enganadora, nem do êxito fácil; passam, não obstante, pela região da renúncia, do trabalho silencioso, do serviço desinteressado ao companheiro que sofre. Se vamos ser notados ou não, que importa? Ficará o nosso nome na História? Esperamos que não, porque, das outras vezes, aqui e ali, no tempo e no espaço, quando os cronistas da saga humana anotaram o nosso pobre nome, amargamos no Além a dor de muitas angústias, de tenebrosos arrependimentos, de aflições inconcebíveis. Foi por causa de tais enganos que nos voltamos para os nossos maiores e lhes pedimos, com lágrimas de esperança, que nos ajudassem a planejar novas existências de dor que nos levantassem do opróbrio íntimo, pois mesmo aqueles que uma vez contemplaram a face tranquila da verdade volveram aos desenganos cruéis, lá na frente. A conquista maior que nos espera não é a do poder sobre os semelhantes, para que sirvam de pirâmides à nossa glória, ou de pedestal à nossa vaidade, mas sobre nós mesmos, sobre nosso próprio território interior, onde sopram ainda os vendavais de muitas paixões.
            Se somos da verdade, ouçamos a voz daquele que a conhece melhor do que nós. Ele é Rei, sim, mas não deste mundo; se o fosse, Ele o conquistaria pela força bruta e não pela doçura do amor. Se somos da verdade, Ele nos reconhecerá.
            - Sim. Tu o dizes, sou Rei, Para isto nasci e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
            E nós? Estamos ouvindo a sua voz? Então somos da verdade.  


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