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terça-feira, 20 de julho de 2021

Oportunidades perdidas

 

Oportunidades perdidas

por José Brígido (Indalício Mendes)

Reformador (FEB) Outubro 1962

           Ninguém soube jamais o que acontecera ao Miranda. Era afeito à fraternidade e procurava sempre conduzir-se de maneira a não ficar muito distanciado dos ensinamentos evangélicos. Um dia, porém, foi distratado numa reunião por pessoa a quem tratava atenciosamente. Procurou conter-se diante da provocação injustificável que prosseguia. Em dado momento, levantando-se, Miranda, vendo-se envolvido numa alusão pejorativa do gratuito desafeto, pediu a palavra, que lhe foi negada contra todas as disposições que regiam a assembleia.

          - Insisto em solicitar a palavra. Preciso esclarecer pontos que afetam a minha honorabilidade imerecidamente.

          O desafeto, porém, abusando da autoridade que possuía no momento, como dirigente máximo da reunião, permaneceu indiferente aos apelos de Miranda. Foi quando este, apesar da posição calma que estava mantendo até aquele instante, se viu envolvido pela perturbação ambiente, e respondeu agressivamente àquele que premeditadamente o ofendia.

          Serenados os ânimos, foi promovida a reconciliação dos dois homens que se apertaram as mãos. Era uma paz aparente. Miranda, depois do impulso agressivo, arrependeu-se. Procurou o evangelho para se penitenciar. Cedera quando mais necessária era a resistência às provocações. Compreendia Miranda que sucumbira na oportunidade que tivera de exemplificar as lições evangélicas. Ele bem o sabia. O que não conseguia compreender era a obnubilação sofrida por seus sentidos e a reação violenta que tomara contra as invectivas dissimuladas do desafeto.

          - Que tens Miranda? – perguntou-lhe u, companheiro de estudos doutrinários. – Estás abatido, acabrunhado? Que houve?

          Miranda contou-lhe o que houvera e como falhara no momento da exemplificação.

          - Acontece, amigo, que a vigilância não foi perfeita. Quanto mais responsabilidade tivermos na propaganda dos princípios evangélicos, mais tentações nos assaltarão. Será preciso muita vigilância, porque o perigo nos rodeia. Foste dominado pelo respeito humano. Sentiste-te humilhado perante os outros componentes da assembleia e reagiste como o homem comum, mas não como um homem que estuda o Evangelho e tem o dever de segui-lo, sejam quais forem as consequências.

          - Tens razão. Falhei. Reconheço que sou pedra ainda sem lapidação. Algumas vezes tenho vencido as minhas inferioridades, mas em outras, como a que te narrei, caí lamentavelmente.

*

          Dias depois, Miranda recebeu uma intimação policial para prestar declarações. Aquele seu desafeto vinha sendo acusado de uma negligência culposa. Alguém, não se sabe com que intuito, indicou o nome de Miranda, talvez por conhecer o incidente da assembleia. E ele, depois de resistir, viu-se forçado a atender à intimação.

          - Não sei do que é acusada essa pessoa – ponderou. – Achava-me fora e soube do acontecido pelo noticiário dos jornais.

          - Mas acha o senhor que o indiciando teria agido com urbanidade? Se o fizesse talvez nada houvesse acontecido – ponderou a autoridade.

          Naquela ocasião não se apercebeu Miranda de que estava novamente diante de nova prova. Sem se dar conta disto, acrescentou:

          - Se tenho de falar a verdade, devo dizer sinceramente: trata-se de homem irascível, violento...

          Aí, caiu em si. Falhara de novo. Procurou emendar a sua posição, sem pensar sequer em desdizer-se, porque, no fim das contas, achava ter dito a verdade, embora preferível houvesse sido abster-se de qualquer referência àquele que não andava de boas relações com ele.

          - Senhor, conforme já disse, ignoro porque indicaram meu nome, se não vi nada do ocorrido. A impressão que externei sobre a pessoa incriminada é meramente pessoal e não deve ser levada em conta, pois não desejo aproveitar-me da circunstância para uma atitude que pode ser mal interpretada.   

          - Bem o sei. Mas o que nos disse não é verdade? Se é, nada tem de se arrepender, porque procuramos exclusivamente a verdade.

            Supunha Miranda que suas declarações morreram aí e foi com dolorosa surpresa que se viu no Tribunal, perante o indiciado, forçado a reafirmar quanto dissera anteriormente.

           Sua provação foi grande, porque sentiu intimamente a reincidência no erro. Recolheu-se a casa, entregando-se à prece. A consciência, entretanto, o advertia:

            - Falhaste de novo, Miranda. O teu contacto com o Evangelho não está sendo tão íntimo quanto se torna preciso. És menos humilde do que pensas.

            Ante essas censuras da própria consciência, Miranda sentiu que seus olhos se humedeciam de lágrimas. E dirigiu ao Alto esta prece:

            - Jesus: caí de novo. Sinto-me esmagado pela minha incapacidade moral. Não guardo ressentimento algum daquele homem que se houve tão agressivamente contra mim. Porque grande era o seu desespero. Depois de várias considerações, o Guia frisou:

            - Meu irmão: sei que tu mesmo reconheces o duplo erro praticado. Duas vezes surgiram oportunidades para demonstrar o teu progresso espiritual; duas vezes demonstraste que esse progresso é meramente intelectual. Pensando bem, és mais digno de lástima do que aquele que serviu de instrumento à tua provação. O teu senso oral te obriga a carregar a cruz do remorso, porque sabes o que é bom e o que é mau. Recorda-te destas palavras de “O Evangelho segundo o Espiritismo”: “Quantas dissensões e funestas disputas se teriam evitado com um pouco de moderação e menos suscetibilidade”?

            Miranda, cabisbaixo, envergonhado e triste, tudo ouvia, fazendo com a cabeça lentos sinais de assentimento.

            E o Guia prosseguiu:

            - Apesar de tudo, levanta-te a cabeça e recomeça a jornada, irmão. Envolve aquela pessoa nos calores da prece diária. Torna útil o teu arrependimento, ajudando-o anonimamente pela prece. Assim poderás ressarcir os erros cometidos. A humildade é um bem, quando verdadeira. Temeste guardar silêncio e ser considerado, na assembleia, culpado das insinuações maldosas que te envolveram o nome. Receaste passar, perante os outros companheiros, por covarde. Isto tudo é muito humano. Tinhas, porém, o dever de socalcar tais sentimentos, escudando-te nos ensinamentos evangélicos. Não mais te esqueças de que é preferível desagradar o mundo do que desertar do Evangelho.

            Guarda na mente, Miranda, esta lição do “Espírito de Verdade”: Deus consola os humildes e dá força aos aflitos que lha pedem. Tomai por divisa estas duas palavras: devotamento e obrigação e sereis forte, porque elas resumem todos os deveres que a caridade e a humildade vos impõem. O sentimento do dever cumprido vos dará repouso ao espírito e resignação. O coração bate então melhor, a alma se asserena e o corpo se forra aos desfalecimentos, por isso que o corpo tanto mais forte se sente, quando mais profundamente atingido é o Espírito.”

            Ao regressar a penates, Miranda estava reanimado e disposto a recomeçar sua tarefa, exercendo maior vigilância sobre os próprios atos e pensamentos. Reconhecia que o homem é o maior inimigo de si mesmo.


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