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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Licenças Perniciosas




Licenças Perniciosas
            O homem do mundo que é possuidor de sensatez, na convivência mundana, usa, mas não abusa, concorda, mas não conive[1], ensina, mas não impõe, discorda, mas não se inimiza, diverge, mas não dissente, mantendo em todos os momentos uma diretriz de equilíbrio que o torna verdadeiro cristão. Compreende que a sua saúde interior resulta do comportamento que se aplica na convivência com os seus pares.

            O homem cristão, discípulo sincero do Evangelho de Jesus Cristo, compreende em maior profundidade os compromissos que lhe assinalam a rota e por isto mesmo sabe que é livre, mas não tem licença de se comprometer com as vinculações negativas da vida, que lhe cumpre superar. Diante das licenciosidades que lhe abrem portas convidativas ao acesso, mantém uma atitude digna, discreta, sem envolver-se nas fantasias que levam à indigência espiritual e compelem ao aniquilamento dos ideais superiores da vida. Sente-se escravo da verdade, por isso não mente. Compreende que a saúde é fator primacial da vida, portanto, luta contra a doença. No báratro das viciações que se multiplicam galvanizantes ou douradas, percebe o lado negativo das concessões agradáveis que levam à sensualidade ― bafio[2] pestilencial de morte que entorpece o sentimento e perturba a razão ―. Abstém de enrodilhar-se nas malhas constritoras do mal que urde[3] toda uma série de aflições e vexames, que terminam por destruir o que há de mais elevado no ser. Coloca-se em vanguarda contra as facilidades morais que arestesiam os centros do discernimento, por mais favoráveis se lhe apresentem, mesmo quando doando um cabedal glorioso de transitória posição de relevo no mundo. Resguarda-se contra os vícios sociais, os pequenos crimes que são as matrizes dos grandes delíquios[4] espirituais. Afirma os seus valores legítimos, não pelo envilecimento da personalidade, porém através da manutenção dos requisitos que o tornam verdadeiramente digno de ser respeitado e imitado. Não aquiesce diante da mentira, da inveja, da embriaguês, da concupiscência, da calúnia, dos tóxicos, estabelecendo uma normativa de comportamento que lhe constitui a couraça de segurança, ao mesmo tempo abrindo as portas da liberdade por onde avança resoluto, na marcha que o conduza para a paz.

            Enquanto medram as licenciosidades, que vão, a pouco e pouco, dominando o homem e a sociedade hodiernos, o cristão verdadeiro sabe que a sua segurança é o Evangelho, sua definição é o Bem, sua metodologia é a Caridade, sua salvação é o Amor.

            Sem qualquer pieguismo ou manifestação de covardia moral, estabelece um estado de paz interior que os conflitos e as convulsões de fora não conseguem desconectar.

            Caracteriza-se a degenerência de um povo, a queda de uma comunidade pela explosão aberrativa das permissividades morais que neles se multiplicam. Quando combalem os valores éticos, desmoronam-se os alicerces da vida humana.

            Verdade é que muitas vezes se tornam legais as excrescências do caráter humano, apesar disso jamais se tornam morais.

            Aqueles que compactuam com as licenciosidades douradas são também criminosos que se unem para os homicídios recíprocos da vida interior. Enquanto vibram, estonteantes, em sensações enganosas, as expressões do prazer, na atualidade do sexo que tresvaria[5], fazendo do homem um feixe de instintos animalizantes e da mulher um objeto de uso indiscriminado, sem desejarmos referir-nos aos grandes comprometidos da História, não podemos sopitar[6] referências a alguns deles, como Cláudio e Messalina que, não obstante a posição relevante à cabeça do Império Romano, se entregavam à exaustão dos sentidos, culminando pela alucinação do desejo infrene[7] e da degeneração mental; Justiniano e Teodora, esta última uma atriz arrancada do bordel para o primeiro ponto de destaque da comunidade, exercendo lamentável influência, inclusive na Religião... Mais recentemente Paulina Bonaparte que, tendo o irmão à frente do Império Francês, se entregou à volúpia insana do prazer até o total aniquilamento das forças... E quantos outros?!...

            Seria difícil eleger os grandes prevaricadores e as atormentadas da contemporaneidade. É verdade, que a mulher que envileceu os sentimentos, no rebaixamento da sexualidade, e que brilha, despertando inveja, provocando ciúmes, é, no íntimo, uma infeliz, vitimada em si mesma. Espírito sofrido, que foi ludibriado nos seus sentimentos mais profundos, jornadeia nas luzes enganosas da glória, que logo se apagam, sem contar com um braço amigo que lhe conceda dignidade e apoio quando as carnes trôpegas perderem o momentâneo viço, e o fulgor dos olhos apagar a sua luminosidade. Poderá estar ajaezada e adereçada de gemas de alto custo, todavia sempre experimenta o travo profundo da soledade e o ácido tormentoso de transitar sem amor.  Se lhe veio das carnes um filho, órfão de pai vivo, terá que segurá-lo em transe de dor num misto de mágoa, amor e agonia profunda quão devastadora. Se derrapa na miséria econômica, que muitas vezes precede ou sucede à moral, passa combatida, com a ferida aberta do sentimento ultrajado onde o veneno da insensatez humana aumenta cada vez mais a pústula, tornando-a mais dolorosa. Ninguém dela se apiada. Desculpam o cômpar[8] que contribuiu para a sua queda, mas não a ela que tombou. Em verdade, poucos lembram de que a sua queda se consumou porque uma mão anônima e acovardada empurrou-a pela escada abaixo da dignidade, permanecendo santa, na própria vergonha.

            Os vícios, que são frutos dos distúrbios da emotividade, da insegurança e das ambições desnorteadoras deste século de misérias e de glórias, de despudor e de renúncias, objetivam o saciar do egoísmo na sua multiface de paixões.

            Não vos deixeis enredar nas malhas bem entretecidas das ações destrutivas dos vícios, por mais simples que vos pareçam!

            A barragem poderosa que sustém as águas arrebenta-se, quando uma pequena infiltração lhe mina as resistências. As pirâmides colossais levantaram-se pedra sobre pedra. A escada da degradação dos costumes começa no primeiro passo para baixo e não encontra fundo, porque quem cai moralmente e se deixa derruir[9] tomba sempre um degrau a mais.

            Detende o vosso passo e erguei vosso sentimento!

            O melhor conselheiro do ser é a consciência tranquila.

            Inutilmente procurar-se-ão psicoterapeutas, analistas, medicações se não se erradicarem do sentimento profundo as marcas dos crimes perpetrados contra a consciência pessoal ou coletiva.

            Analisai o Evangelho, comprometendo-vos com ele e, livres como sois, não useis da vossa licença para destruir a oportunidade da atual reencarnação.

            O Apóstolo Paulo gritava com emoção que era escravo do Cristo; João da Cruz, o místico espanhol, entregando-se totalmente ao Mestre Galileu, tornou-se o protótipo do senhor de si mesmo e Tereza de Ávila, que com ele compartia as excelências espirituais, escreveu emocionada: “Me muero, por que non muero”, a sofrer, porque não morrer para ela constituía verdadeiramente uma forma de morte.

            O homem que encontra Jesus e que O segue rompe a grilheta que o ata aos vícios dissolventes, estes que infelicitam o coração.

            Avançar com o espírito estóico no rumo da felicidade íntima, através da retidão do caráter e da preservação dos costumes, é a diretriz que vos chega, com o objetivo de edificardes, no mundo, uma humanidade melhor, onde todos encontraremos a verdadeira paz hoje ou amanhã.

Francisco do Monte Alverne
por Divaldo P. Franco
in “Florilégios Espirituais”
Ed.  3ª Edição 1983



[1] Diz-se daquele que está secretamente de acordo com outrem para a prática de alguma ação condenável
[2] Mau cheiro que se desprende de uma coisa que esteve muito tempo em recinto fechado e úmido
[3]  Enredar, tramar, maquinar, intrigar: urdir uma traição.
[4] Liquefação de um corpo sólido por efeito da umidade atmosférica. Desmaio, desfalecimento, síncope
[5] Praticar desvarios, estar fora de si, delirar. Dizer ou fazer disparates.
[6] Adormecer. Abrandar, acalmar. Desalentar, debilitar, enlanguescer. Fig. Alimentar esperanças em. Dominar, vencer: sopitar desejos.
[7] Sem freio; desenfreado, descomedido
[8] Igual; que está a par.

[9] Desmoronar, derribar; destruir.

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