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quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Cinzas do meu cinzeiro...

Manoel Quintão



Cinzas do meu cinzeiro...
Manuel Quintão
Reformador (FEB) Março 1942

            As últimas carusmas (cinzas) aqui assopradas, tocaram na teoria dos “clichés astrais”, tendente a explicar a realidade dos fenômenos de vidência e premonição mediúnicas.

Citamos Flammarion em ‘La mort et son mystère’ e queremos hoje resumi-lo aqui, de paralelo ao que a nós mesmo nos sucedeu e motiva esta larada (registro).

O caso, em síntese, é este:

Um advogado parisiense, em férias no interior do país, afasta-se a tarde do seu hotel, embrenha-se na floresta onde, transviado, depois de muito pervagar noite fechada, deparasse-lhe a luzerna de uma hospedaria. Surpreso de tal encontro, mas fatigado e faminto, resolve ali pernoitar.

Deram-lhe o último quarto de escuro corredor e ele ao demanda-lo, sem saber porque, foi contando e gravando na memória a respectiva numeração dos quartos, até chegar ao seu, que, por sinal, não era numerado.

Esta circunstância, aliada à da existência da própria hospedaria em sitio tão ermo, começou de lhe trabalhar no cérebro sobressaltado.

Vagos temores de iminente perigo levaram-no a examinar detidamente o aposento.     

Certificando-se de que a porta não tinha fechadura, mas simples e frágil taramela (trava, geralmente de madeira ou metal, que gira presa a prego ou similar pregado em porta), refeitas quando não apenas presididas, removeu pesado armário e descobriu um alçapão no assoalho. Ao levantar-lhe a tampa, do porão lhe veio nauseante bafio (cheiro de mofo). No auge das horas mais ou menos, deitou-se e quando, prostrado de fadiga entrou a modorrar, sobreveio-lhe o tétrico pesadelo:    

            “Passos cautelosos no corredor, forçamento da porta, entrada do casal de estalajadeiros. A mulher à frente, alçando a candeia; o marido após, brandindo afiado facão de cozinha. Sem dizerem palavra, aproximaram-se e de um golpe o degolaram... Depois, mulher toma a candeia nos dentes e o levanta pelos pés enquanto o marido o faz pelas axilas. Assim conduzido, sente-se baquear no lôbrego porão e tem a impressão de chocar-se com um esqueleto humano.”

Aturdido, despertando em sobressalto, não mais pode fechar os olhos. De manhã, pagou a estranha e fantástica aventura e pode, enfim, regressar ao seu hotel.

*

De prever que tão singular episódio não mais se lhe apagou da mente. Muito mais tarde, no seu escritório de Paris, deparasse-lhe num jornal da cidade em que feriara (estar em férias) , a notícia das diligências policiais em curso, concernentes ao desaparecimento recente, em circunstâncias misteriosas, de um turista inglês. O homem fora visto a caminho da floresta e as suspeitas de um crime recaiam nos proprietários da hospedaria. O casal estava detido para averiguações e defendia-se alegando que, na noite do suposto crime, a hospedaria tivera ocupados todos os quartos e que os respectivos ocupantes, também depoentes, atestavam nada ter visto, além de que, não havia vestígio algum de crime.  

*
            Diante disso, resolve-se o nosso causídico a intervir no processo. Pediu para arguir separadamente o casal, em audiência pública. Reproduziu a mulher os mínimos pormenores do seu pesadelo, a começar pela categórica afirmativa da existência de um quarto não numerado e omitido nos depoimentos; descreveu os móveis que o guarneciam, falou do porão sinistro, do facão, da candeia, da maneira por que foi consumado o crime e, por fim, da precedência de um esqueleto. Supondo-se traída pelo marido, a estalajadeira tudo confessou e as conseguintes diligências acabaram aclarando não um, porque dois crimes.  

*

Dir-se-á então, que o "cliché" do primeiro crime estava impregnado no ambiente e fora oniricamente (sonhadoramente) apreendido, ou "psicometrado" pelo nosso sensitivo advogado.    

*

O caso que conosco se deu e aqui vamos e aqui vamos resumir, é diferente, parece-nos antes de mera intuição, ou premonição.

Ei-lo: Inaugurara-se, havia pouco, as palestras domingueiras na Federação, de regra feitas, quando não apenas presididas, por algum de seus diretores.

Era domingo da nossa escala. As 15 horas mais ou menos, tomamos o bonde de
Cascadura, cujo trajeto se fazia, ao tempo, pelo Cais do Porto até a rua Camerino para entrar na Avenida Passos.
           
Ao atingir a rua Escobar, na curva de S. Cristovão, ensimesmado no tema da projetada elocução, eis-nos de súbito despertado pela visão de um vulto que se projetava à frente do veículo. Atônito, mãos frias, tivemos a impressão de que o bonde precipitava a marcha, e ainda nos voltamos para ver o quadro.          

Nada vimos, porém, e diante da impassibilidade dos passageiros, sorrimos da ilusão e invocamos ridículos temores quando em viagens a cavalo pelos sertões mineiros, soía (era costumeiro) entrevermos jagunços de arma aperrada (engatilhada), ocultos nos moitais (arbustos) da estrada.

Alucinação, fadiga nervosa, lérias (conversa fiada)...

*

Em chegando à Federação, pois que nos propuséramos discorrer sobre sugestão, auto sugestão, magnetismo e alucinação, entretivemos o auditório citando fatos e, entre eles, o que acabava de ocorrer. O que não podíamos então presumir é que o fato estivesse a pique de consumar-se e resultasse algum dia em cinzas do meu cinzeiro.

De fato, ao regressar a penates (ao lar) pela mesma linha de Cascadura e quiçá no mesmo bonde, ou pelo menos com o mesmo motorneiro, na curva de S. Cristovão - Escobar, vimos romper na sombra da noite, escura e chuvosa um vulto que parecia tentar cortar a frente do bonde para tomá-lo. Tivemos a sensação do esmagamento brutal e vimos o motorneiro nervoso abrir o regulador e dar ao bonde, num arranco, velocidade vertiginosa até ao largo da Cancela. A cena foi rápida e cremos que despercebida aos demais passageiros. Nós mesmo, ainda é desconhecido do grande público, mesmo
de positivo e concreto, nada pudemos lobrigar (entrever) na fugacidade do tempo e na caligem (escuridão) da noite. Seríamos o único a notar o nervosismo do motorneiro, cuja fisionomia guardamos nítida, pela singularidade dos bigodes e bastas suíças. Chegados ao ponto do "Jockey Club", após rápida e discreta confabulação com o Fiscal, tomou este a direção do carro. Ao chegar à casa, após de muito conjeturarmos, adormecemos convicto de uma simples coincidência alucinatória, apenas notável pela circunstância de repetir-se precisamente no mesmo local e com intervalo maior de poucas horas.

             
Seria, assim, mais urna coincidência - palavra mirífica que tem a virtude de contentar meio mundo. Mas a verdade é que, no dia seguinte, os jornais registravam o encontro de um homem morto, no local assinalado, com o crâneo partido e fraturas internas que denunciavam violento traumatismo. E a polícia oscilava entre as hipóteses de um crime ou de simples acidente.

*

Esse motorneiro, nós o vimos mais tarde no seu posto, porém noutra linha. Já não tinha, tampouco, o bigode e as suíças. Também ele, e só ele, poderia confirmar o fato. Confirmar e nunca explicar, porque isso o não fazemos nós. Nós que vimos o fato, antes e depois.

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