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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Casos e coisas


Casos e Coisas
M. Quintão
Reformador (FEB) Março 1943

Humberto de Campos, pelo lápis mágico de Chico Xavier, e naquele estilo mélico que Agripino arguto não recusou identificar, já nos deu umas saborosas Crônicas de Além-Túmulo, (1) e vai dar-nos agora, com foros de novíssima atualidade, umas deliciosas Reportagens da mesma fonte.

(1) Já traduzido na. Argentina e publicado sob o título de - Cronicas del más allá del tumulo.

O autor de Memórias, com o seu faro de cronista laureado e com a graça que Deus lhe deu, fisga por lá os confrades que vão transpondo o Styge e manda-nos as suas impressões de um ineditismo pitoresco, brejeiro, mas, nem por isso, menos edificante e lógico.

Edificante, porque referente à confraria inexperta e turbulenta; lógico, porque integrado na mais perfeita hermenêutica evangélica.

Feliz Humberto que pode, assim, dar arras ao seu temperamento com prestigio de causa, livre dos zoilos cá de baixo, e dos mestres em Israel arvorados em suprema congregação do Santo Oficio, de nova espécie, ou, por melhor dizer em - "Congregatio de Propaganda Fide" e santificações póstumas.

A nós outros, (ai de nós!) em forais de carne osso, mal se nos deparam ensanchas de frascarios e suspeitíssimos palpiteiros, sem ressonâncias de prol no ambiente dos canonarcas.

Vamos, então ao recadinho, de olhos turvos no minuto que passa, e no sinaleiro do trânsito, por não esbarrondar na primeira esquina, uma vez que este mundo sublunar é um tabuleiro de esquinas e, o que mais é: sem bichas organizadas.

*

Pois foi ali na esquina, que, não há muito, encontramos os conspícuos e estimabilíssimos confrades Epaminondas e Archimedes.

O leitor não os conhece, mas nós apresentamos: Epaminondas, em que pese o paradoxo, não desmente o ancestral homônimo e ilustre beócio, salvo seja. Tal como o herói de Leuktra, este nosso Epaminondas também não mente. E o Archimedes, escusa dizê-lo, não é -  por bem nem mal dizer - êmulo do glorioso siracusano, senão porque também lhe falte uma alavanca... Mas gosta de espelhos, lá isso gosta, ainda que tratados a fosco em "manchetes" de jornal - isso a que a plebe chama - dar as caras.

De cara com eles, na inevitável esquina, não houve como dobrá-la para o beco do silêncio. E antes que levado à parede, fomos ouvindo o curioso dialogo.

*

- Achas, então, que o sacerdote pode viver do altar?

- Isso não sei; mas sei que Paulo foi tecelão e que Jesus mandou dar de graça o que por graça recebemos; de resto, há que não confundir sacerdócio religioso com apostolado Cristão, que é como quem diz - espiritista.

- Com esse radicalismo, no mundo econômico que desfrutamos, as obras seriam nulas e o grande Paulo também disse que a fé sem obras é morta. E não sabes que os espiritistas somos, via de regra, uns pobretões?

- Bem o sei, mas sei igualmente que os Apóstolos eram pescadores, a justificarem que digno é o trabalhador do seu salário. As obras da fé cristã, ao meu ver, não se aferem por símbolos de expressão exterior. Ao povo errante no deserto, fustigado pelo Simum, nunca faltou o maná revigorante nem a vara de Moisés para extrair da rocha a linfa pura.

- Milagres que ninguém jamais viu repetir-se, que me conste...

- Porque de Moisés a fé está morta: o deserto se cobre e coalha de "tanks" e aviões de guerra, e por levar a "Arca Santa" aos trambolhões, os apóstolos hodiernos se atropelam e colimam antes construir na areia movediça.

- Quer dizer que negas o fruto do esforço coletivo em benefício do órfão, do enfermo, do desvalido da sorte?

- Não. Quero apenas dizer que a genuína caridade é espiritual, e o que aí se faz a esse título, aliás com ênfases e derriças nada evangélicas, não resolve o problema do pauperismo. A verdadeira fome não é de pão, é de luz; a enfermidade real não é de corpo, é de alma.

- O que não exime de cuidar do corpo, ainda porque, instrumento do Espírito. Disse Jesus que não só de pão vive o homem, mas não disse que viveria sem pão. 

- Mas disse, também, que o Pai não daria pedra ao filho que pedisse pão.

- Condenas, então, os que pedem para dar?

- Em tese, eu nada e a ninguém condeno, mas posso discordar da maneira por que o fazem, sem consideração ao óbolo da viúva.

- Vejo que te desvias: nosso tema é a caridade apostolar, é o das obras de assistência e beneficência coletiva.

- Topo então a parada e digo: caridade não é moeda, é sentimento. Advirto que nenhuma célula do Cristianismo original se distinguiu sob este aspecto. As primitivas ecclesias viviam dos seus sobejos, espontaneamente oferecidos e repartidos em caráter de emergência, e Deus sabe se não foram as diaconias que lhes carrearam a cizânia. De qualquer forma porém, a comunhão de bens era voluntária e que mais é: - total e incondicional. O caso de Ananias e sua mulher Safira, é típico... (2)

(2) Atos dos Apóstolos, V:1 a 10.

- Esqueces que os tempos são outros?

- Absolutamente. Lembro, todavia que a noção de tempo e espaço precisamos juntar a de eternidade e infinito. A Lei, em essência, é sempre uma e única. A esmola que eu peço e dou, não é galardão meu e sim de quem a der, dado que a dê de coração aberto. Caridade é também sacrifício. Jesus, Espírito de Caridade por excelência, não espalhou outra moeda que a de sua palavra de vida, em holocausto da própria vida; e os Apóstolos simplesmente o imitaram, socorridos pelo Espírito Santo. E se é certo que os institutos congregacionais, desdobrados em seu nome têm dado frutos de misericórdia, não é licito desconhecer os males concomitantes que originaram, para que o problema da penúria humana permanecesse insolúvel e quiçá agravado.

- Dir-se-á que regredimos, então?

- Materialmente, não direi que sim; moralmente, talvez, porque o senso da responsabilidade se anuviou no báratro das grandezas terrenas. Pergunto: onde o Templo de Salomão? A história só se não repete porque é sempre a mesma. Todos nós, creia, temos um pouco de Jacó na capenguice, e de Esaú na parvulez, que leva a trocar a herança pelo prato de lentilhas.

*

O sinal abriu. Os interlocutores precipitaram-se em direções opostas. Perdi-os de vista e disse com os meus botões: Que bela reportagem para o Humberto de Campos!


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