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quarta-feira, 23 de maio de 2012

01-02 'A Reencarnação'


01-02
A Reencarnação


            OBJEÇÕES E REFUTAÇÃO

             A série de provas, demonstrativas que até agora produzimos e com que acreditamos ter evidenciado a pluralidade de existências da alma, 1º. pelo testemunho dos Evangelhos, 2º. pelos fatos de observação geral da vida humana, analisados: à luz da justiça divina, 3º. pelos fenômenos da psicologia experimental, 4º. pela recordação de outras vidas em alguns indivíduos, no estado normal, embora como casos excepcionais, mas nem por isso menos probatórios e dignos de exame, tudo isso nos dispensaria porventura do trabalho de alguma sorte tornado supérfluo, de tomar em consideração as objeções de pessoas formuladas contra essa lei admirável pelo nosso colega do ‘Puritano’, em seu editorial de 17 de agosto, depois do qual – digamos de passagem - recolheu-se ele a um mutismo verdadeiramente comprometedor não se animando a discutir um só de nossos temas de argumentação.

            Entendemos, todavia, que, quando não tivesse a utilidade de mostrar que as doutrinas do Espiritismo resistem triunfalmente a todas as críticas, e a todas elas levam vantagem, legitimando a superioridade que os seus crentes justamente lhes atribuem sobre todas as demais doutrinas, o não desprezar as impugnações do nosso ilustrado colega se nos impõe, ao menos, como um dever de cortesia a que nos julgamos com direito, que ao demais não recusamos a nenhum adversário no terreno da discussão teórica.

            A essa razões acresce o compromisso, por nós publicamente assumido, de responder por fim a tais objeções. Vamos, por conseguinte, desobrigar-nos dele.  

            Foram em número de quatro os argumentos pelo colega formulados em oposição às vidas múltiplas, o último dos quais  - o esquecimento do passado – a seu ver a mais revoltante injustiça e a maior  das tiranias, já se  acha por natureza destruído com a demonstração que anteriormente fizemos, no sentido de que esse esquecimento não só se justifica pelas leis da biologia e da fisio-psicologia sio-psicologia que regem a encarnação humana, mas sobretudo que ele representa um das maiores misericórdias do Criador, desembaraçando seus filhos daquilo que lhes poderia ser um estorvo nesse caminho reparatório e regenerador, e deixando-lhes somente o que pode favorecer e acelerar o seu progresso.

            Restam, pois, três objeções a examinar, e são as seguintes, tão sinteticamente quanto o exige a limitação de espaço, mas também tão nítida e fielmente reproduzidas como no-lo impõe a lealdade no debate:

I. A doutrina das reencarnações é adotada do paganismo.  
II. Implica a salvação pelas obras, em oposição à opinião de S. Paulo.
III. A salvação pelas obras torna vãos o sacrifício, paixão e morte de Jesus.

            Examinemos, por ordem, cada um desses argumentos.

            No que toca no primeiro, não vemos, antes de tudo, em que a antiguidade de uma doutrina possa constituir motivo de impugnação, uma vez que ela não infrinja os preceitos da razão e do bom senso. Pensamos, ao contrário, com S. Paulo que, se “Deus nunca se deixou sem testemunho,” um princípio que  atravessa os séculos e sobrevive aos próprios sistemas filosóficos ou religiosos de que fez parte, para reaparecer em sucessivas revelações com uma singular e indestrutível vitalidade, revela nesse mesmo fato a sua origem divina.  

            Se, pois, o dogma da reencarnação remonta a sua anterioridade à filosofia pagã- e podemos acrescentar que vem de muito mais longe, do Oriente, de cujas mais antigas religiões fazia parte; se nela acreditavam os próprios hebreus, como vimos no Evangelho, a propósito de João Batista e do cego de nascença; se Jesus abertamente o proclamou em  seus ensinos, e, o Espiritismo, como terceira revelação, complementar da messiânica, o incorpora, por esse mesmo fato, aos seus princípios, com a vantagem de  demonstrar experimentalmente, como o não havia sido feito, é que esse dogma é verdadeiro, é de origem  divina e constitui uma das leis da natureza, intimamente ligada às condições do progresso humano sobre a terra.

            Que os cristãos da Reforma, esquecidos da sabedoria desta advertência de Paulo “ a letra mata e o espírito vivifica” se tivessem exclusivamente apegado à letra das antigas escrituras e particularmente de algumas passagens do iluminado apóstolo dos gentios, para se encerrarem na imobilidade intolerante e dogmática, desprezando elementos de vida e progresso, como esse da pluralidade das existências da alma, que hoje vai sendo cientificamente demonstrada, isso em nada pode invalidar a sua veracidade: quando muito provará que os discípulos da Reforma não souberam penetrar-se da grandeza e elevação do espírito da doutrina, e como cegos se conservaram durante séculos diante de uma verdade tão claramente enunciada, e tão profundamente necessária para explicar aos homens como a justiça de deus fulgura soberana em meio das misérias e desigualdades da terra.

***

            Repugna-lhes, entretanto, admitir esse princípio – e passamos a examinar a segunda objeção – porque ele implica a salvação pelas obras, em oposição, no entender do colega, a opinião de Paulo.

            Não nos deteremos em examinar aquilo o que há de monstruosa e absurdo na doutrina da predestinação e da graça, que faz nascerem uns indivíduos irremissível e fatalmente condenados à perdição e outros de antemão fadados às celestes delícias, doutrina de que a igreja reformada faz uma das capitais do seu ensino, porque isso nos levaria demasiado longe. Para o fim que temos em vista, basta-nos opor a palavra de Paulo, invocada pelo colega, a palavra do mesmíssimo Paulo, em uma de suas mais instrutivas e memoráveis epístolas – e não careceríamos, como se vai ver, de mais que dessa citação.

            Porque, se de fato, em algumas passagens, exaltando as excelências da fé e os méritos do sacrifício de Jesus, o formidável organizador do Cristianismo parece de algum modo justificar a doutrina da salvação pela graça, em outras passagens o seu pensamento acerca da necessidade das obras é tão claro que só a estreiteza do espírito dogmático, ou porventura a falta de chave para compreensão do sentido profundo dos seus sentimentos, poderá gerar esse exclusivismo.

            O erro dos iniciadores, como dos continuadores da Reforma, inspirado aquele – quem sabe? – nas necessidades do seu tempo e no estado das inteligências de então, consistiu  e tem consistido em uma série de mutilações dos ensinos e das tradições sagradas. Em lugar de tomarem os Evangelhos em seu conjunto, como um todo harmônico e integral, cujas partes se completam entre si, e de adotarem o mesmo processo em relação às doutrinas contidas nas epístolas dos apóstolos, colocando-se ao demais, em relação a estas últimas, como de algumas parábolas e alegorias evangélicas, no ponto de vista da relatividade dos costumes e dos conhecimentos da época em que tais ensinos foram dados, o que os membros da nova igreja fizeram e tem feito é escolher um certo número de preceitos, mais convenientes às suas vistas e, apegando-se formalmente à letra, com eles construir o seu edifício dogmático, com evidente quebra da integridade doutrinária.

            Assim, por exemplo, pretendendo apoiar-se em Paulo, os reformadores erigem em dogma essa doutrina, sem dúvida muito cômoda, mas muito perigosa e funesta a causa do progresso humano, da salvação exclusiva pela graça. Que fazem eles, porém, entre outros, do ensino do grande convertido de Damasco acerca da caridade?

            Eis aqui como se expressava ele, dirigindo-se aos Coríntios (Epístola I, Cap. X111, v. v. 1 a 7):

            “Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o metal que soa ou como o sino que tine.
            E se eu tiver o dom da profecia[1] e conhecer todos os mistérios e quanto se pode saber, e se tiver toda a fé, até o ponto de transportar montes, e não tiver caridade, não sou nada.
            E se eu distribuir todos os meus bens em o sustento dos pobres, e se entregar o meu corpo para ser queimado, se, todavia, não tiver caridade, nada disto me aproveita.
            A caridade é paciente, é benigna; a caridade não é invejosa, não obra temerária nem precipitadamente, não se ensoberbece. Não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.”

            E acrescenta adiante, positivamente (v. 13):

            “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estas três virtudes; porém a maior delas é a caridade.”


            Não se pode ser mais claro e categórico, nem sabemos que jamais tenha sido dada mais bela definição dessa dileta filha do céu – a caridade.

            Em que consiste ela? Não é nas únicas obras de beneficência  material, pois ainda distribuindo os bens no sustento dos pobres, se se a não possui verdadeiramente, isso nada aproveita, como sem ela de nada vale o próprio de sacrifício, induzindo a entregar o corpo às chamas.

            A caridade é, pois, uma virtude antes de tudo moral, paciente, benigna, modesta e indulgente, simples, desinteressada e confiante, isto é, constitui o transunto das perfeições espirituais, o grau supremo da bondade. Por isso, a coloca Paulo acima da própria fé, mesmo avantajada ao ponto de transportar montanhas:

            Ora, que se exige para ser atingido pela graça da salvação por graça? A fé em Jesus Cristo. “Crede em Jesus e serás salvo!”

            Se, porém, acima das excelências da fé, coloca Paulo a soberania da caridade, não torna ele evidente a necessidade das obras para salvar-se?

            Porque, enquanto a fé é uma virtude instintiva ou impulsiva, e a esperança uma virtude, por assim dizes, expectante, como a humildade o é passiva, a caridade é uma virtude essencialmente ativa. É ele que se reparte em desvelos e solicitude por todos os necessitados do corpo e do espírito, levando-lhes o socorro material, mas também e sobretudo o conforto moral, porque sem este de nada serviria aquele. E, numa palavra, o amor em ação, a prática do bem em suas mais delicadas  nuanças, tais como magistralmente as descreveu o grande apóstolo, tornando obrigatório o seu exercício a todos os cristãos.

            Entendem, porém, os reformistas – e com eles o nosso colega do ‘Puritano’ – que a necessidade de tal prática tira a razão de ser do sacrifício, paixão e morte de Jesus. Em que se fundam eles para concluir assim? Em uma falsa compreensão da utilidade, dos méritos e alcance da missão do Divino Mestre e em uma remota e bárbara tradição que pretende para apaziguar a cólera de Deus, irritado contra as iniquidades dos homens, o manso Cordeiro ofereceu-se em holocausto, para que o seu sangue derramado lavasse as culpas do gênero humano...

            E, ainda, na ordem dos costumes grosseiros e materiais, a ideia dos sacrifícios sangrentos, oferecidos à Divindade, de um lado para lisonjear-lhe a crueldade, do outro para acalmar os seus furores.

            Estamos, todavia, já tão distanciados desse estado inferior da mentalidade humana, que se comprazia em rebaixar a soberana Bondade ao nível dos tiranos sanguinários, que nos dispensaríamos de examinar essa grotesca e repulsiva concepção, se não devêssemos uma observação ao ilustrado antagonista que nos proporcionou o afortunado ensejo desta réplica.

            Em duas palavras: como entende ele os benefícios do sacrifício de Jesus? Foi um ato gracioso, em proveito de todo o gênero humano, sem distinção de seitas e de casta, ou nacionalidade? Por esse ato ficou gratuitamente redimida toda a humanidade da morte e do pecado? Em tal caso, mesmo aqueles povoa aos quais ainda não chegou o Evangelho, mesmo às tribos mais ferozes e selvagens, estão dispensados de todo o esforço por sua própria salvação. O sangue de Jesus redimiu a todos, e lhes garantiu ipso facto a bem-aventurança.

            Se, porém, não bastou esse sacrifício, e é necessário um esforço de conversão da parte do que se quer salvar, tanto faz que se exija o ato de fé, como as obras de caridade; de qualquer modo tornou-se inútil, só por só, o sacrifício para a grande maioria.

            De duas uma: ou a redenção é outorgada a todos por graça, e a todos aproveita indistintamente, ou para a salvação é necessária alguma coisa da parte do indivíduo, e, neste caso, se a fé é exigível, nada impede que o seja também a caridade...



inReformador’ (FEB)
Editorial em 15 de Novembro de 1905

administrador
Pedro Richard


[1] Assim se denominava o dom da mediunidade, então, como hoje, bastante generalizada. 



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