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sábado, 24 de outubro de 2020

Tentação de Jesus

                            

Tentação de Jesus

A Redação  Reformador (FEB) 16 Junho 1919

             “Aí permaneceu quarenta dias e foi tentado pelo diabo; nada comeu durante esses dias e, passados eles, teve fome...” Lucas Cap. IV:2

             De uma facundia (eloquência) prodigiosa só igualável à própria puerilidade e ousadia, são os argumentos e conceitos de ordinário empregados pelos adversários da doutrina espírita.

            Há poucos dias, era um confrade cioso dos créditos do nosso proselitismo, que chamava a nossa atenção para o trecho de um sermão católico, no qual se pretendia inferir da passagem evangélica da “tentação de Jesus” a existência e, mais do que isso - a ascendência do demônio.

            Ora, a quem quer que se dê ao trabalho de filosofar medianamente com a própria inteligência, não será difícil, já agora, concluir que essa entidade individualizada na acepção comum que lhe empresta o catolicismo romano, colide – substancialmente com os atributos de suprema bondade e onisciência de Deus.

            Porque de duas uma:-ou Deus criando os anjos não os fez íntegros em sua pureza, ou não os fez essencialmente iguais. No primeiro caso haveria imperfeição técnica da obra; no segundo, flagrante injustiça, tanto mais odiosa quanto irreparável na consumação dos séculos.

            Deste dilema não há fugir e quando os que levianamente estadeiam esses princípios, completam tão falho raciocínio com palavras ocas de sentido como: - Deus assim quis - esquecem-se de que são eles, simplesmente eles, que estão querendo que Deus assim quisesse.

            E é por estes e outros absurdos correntes em religião, pela falsa noção de Deus, da criação e dos seus destinos que a humanidade desvaira e procura em reivindicações de força bruta a solução do problema de sua felicidade ou infelicidade na Terra.

            Que se nos não atribuam exageros de sectarismo ao afirmarmos que, do conflito incoercível da religião com a filosofia, no que elas têm até agora realizado, se originam os males da nossa época.

            Ninguém há que, na ignorância ou, pelo menos, na incerteza de alguma coisa para além desta vida, possa imolar-lhe abnegada e inteiramente o seu ideal de felicidade.

            Ninguém pode compreender um Deus onipotentemente voluntarioso, que deixa morrer os filhos à fome, imperturbável na sua glória, para que outros filhos realizem desde logo quanto lhes farte, na terra como no céu.

            Aí, porém, os divinos procuradores e privilegiados da Verdade são lógicos: este pandemônio terreno não deixa de ter analogia com a sua gênese abstrusa, salvo quanto às perspectivas.

            Na Terra, a anomalia é temporária e no mundo espiritual ela é eterna e definitiva; mas na Terra como nos arcanos do infinito, há seres ingenitamente privilegiados, homens ou anjos votados ao eterno suplício ou à eterna felicidade!

            Razão de sobra para que os libertários contemporâneos, os equalitaristas de todos os matizes proclamem que as religiões têm sido e são os maiores inimigos do homem, da sua liberdade, da sua fraternidade.

            É preciso, portanto, proclamar bem alto, também, que a Religião, indestrutível em si, e inalienável também da natureza humana, como princípio causal, está pervertida no seu curso, adulterada nos seus fins, incapaz, em suma, de satisfazer os reclamos da consciência humana nos seus legítimos ditames.

            Não somos nós, porém, os criadores de uma nova religião, não somos sequer, os tarefeiros dessa obra reparadora no que ela tem de mais elevado e positivo; são os espíritos do Senhor, são os que falam de um mundo extreme de paixões rasteiras, de prejuízos mesquinhos, que vêm, não já pela palavra mas pelo fato incontrastável, proclamar e provar a sua oportunidade, reconciliando a fé com a razão, e integrando Deus nas consciências justamente combalidas ou simplesmente revoltadas.

            A isto pretendem opor-se os doutos teólogos, de modo gratuito e com a só autoridade da sua tradição. É justo e por tal não os malsinamos, cônscio de que têm o seu papel assinalado na evolução que se intensifica e precipita. Da história do mundo, conhecemos o suficiente para saber quanto custa a demolição de consagrados privilégios e regalias. Basta lembrar o sangue dos mártires do Cristianismo, sem esquecer o que por “amor” ao mesmo Cristianismo, se derramou nas guerras religiosas ou por sentenças da truculenta inquisição.

            E tudo para que? Para que ainda hoje “O Cristo” se conserve desconhecido, inconcebível, ao ponto de o julgarem a ele – Deus - passível de tentação do maior êmulo (adversário) de Deus, ou seja de si mesmo.

            Quanta puerilidade! Quanta incoerência! Mas não no alonguemos na explicação do texto evangélico que é o que de perto diz com a nossa tarefa nesta tribuna doutrinária. Jesus, homem, não poderia jejuar 40 dias no deserto, impunemente; Jesus, Deus, não poderia ser tentado. As suas palavras ao povo tinham, como de resto muitos dos seus ensinamentos, um sentido emblemático, visando o futuro das gerações que ele presidiu e preside do alto da sua glória. Deixando e retomando a vida (no caso o corpo) quando queria, o Divino Mestre por satisfazer a tradição do povo judeu (1) rarefez os fluidos que lhe davam a corporeidade tangível e deu, com a sua ausência aparente, mais uma dessas lições que precisam ser compreendidas em espirito e verdade.

                 (1) Os profetas se preparavam para as suas missões por meio da meditação, da prece e do jejum, no deserto. (Roustaing VI pag. 315 - edição 1918)

             O jejum é preceito salutar relativamente, no seu aspecto físico. Todos sabemos as virtudes de uma bem e entendida frugalidade. Do ponto de vista moral, porém, ele é absoluto e neste sentido é que Jesus o prescrevia, maximé (principalmente) para os nossos tempos. O demônio existe, não como êmulo do Pae, personalizado e votado ao mal eterno, mas simbolizado nos espíritos inferiores, que se aproveitam das fraquezas humanas para cevar a suas paixões desordenadas. E o jejum do mal, é a abstinência dos maus atos, dos maus pensamentos flui afugentam e neutralizam a tentação, enquanto os sentimentos contrários, as obras e pensamentos de amor e caridade atraem os bons espíritos e nos fortalecem para vencer os próprios arrastamentos. De mais, se, como dizem os mesmos Evangelhos, os espíritos imundos os espíritos das trevas luziam espavoridos à simples aproximação do Messias de Deus, não há admitir esse colóquio monstruoso, essa hipótese infirmativa da própria divindade de Jesus que a igreja tão ciosamente defende, mas não explica.

            Os tempos aí estão, porém, chegados para a elucidação dos Evangelhos enterrados há mais de dezesseis séculos, e tanto mais promissores se nos afiguram os tempos, quanto, para essa obra de remodelação religiosa, os mensageiros do alto não vão bater às portas de bronze dos templos de pedra, mas às dos templos vivos nos quais há um altar que se chama - razão, para um só pontífice que se chama - consciência.

            Pontificando nesse altar em ritualismo comprovado por fatos transcendentes à própria vontade, a humanidade cônscia da perenidade e grandeza dos seus destinos concluirá logicamente que eles se não resolvem a bombas de dinamite nem a tiros de canhão, porque há uma justiça indefectível e sobranceira, que pauta e gradua a sua escalada na realização de todas as conquistas, individuais ou coletivas, na Terra, no espaço, na Universo enfim.

            E dizer-se que isto lá está nesses Evangelhos que a igreja conhece mas sofisma há vinte séculos!



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