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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

6f. AntiCristo senhor do mundo

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6f

            Mas o espírito reacionário e intolerante que vinha, de séculos, minando a instituição e estava longe de ser uma criação original dos jesuítas, permaneceu com o partido politico da igreja. Para nos não alongarmos na ingrata rememoração dos múltiplos atentados por ele perpetrados contra a livre evolução do pensamento humano, evocaremos apenas os nomes de três de suas mais ilustres vítimas: Nicolau Copérnico, Giordano Bruno e Galileu. Missionário da Providência, para imprimir à astronomia e às ciências exatas o cunho de florescimento que se observava na literatura e nas artes, o primeiro, com razão considerado o genial precursor de Newton na descoberta da lei de gravitação universal, pois que a pressentiu e formulou como hipótese em relação à matéria, entrevendo lhe a possibilidade de estender-se aos corpos celestes, sofreu a mais rude oposição do clero supersticioso e ignorante. Apesar de haver dedicado a Paulo III a sua obra Revolução dos Orbes Celestes e reclamado a proteção da igreja, a fim de "evitar apreciações perigosas e injúrias", teria sido condenado às chamas purificadoras da fogueira, suspeito que se tornara à ortodoxia religiosa, por haver demonstrado o duplo movimento dos planetas sobre si mesmos e em torno do sol, se do suplício o não tivesse previamente libertado a morte repentina, logo em seguida à publicação da mencionada obra. Mas os seus livros, inscritos no lndex, aí permaneceram até 1835  de par com o Epitome de sua astronomia, elaborado por Kepler.

            Giordano Bruno, que em moço envergara o hábito de dominicano, largando-o em 1580 quando, em Genebra, adotou o calvinismo, para de seguida percorrer a França, como didata e renovador, obteve, graças à proteção de Henrique III, permissão do reitor da universidade de Paris para aí ensinar filosofia, alcançando notáveis sucessos. Combateu com eloquência o ensino oficial, impugnando a lógica de Aristóteles e a astronomia de Ptolomeu, a que opunha, com os mais sólidos argumentos, a de Copérnico. Pensador de largo descortino, preconizava a ideia de um mundo infinito, submetido à evolução eterna e universal.

            Passando à Alemanha, continuou a ensinar a sua doutrina, sendo em toda parte acolhido com entusiasmo pelos estudantes, mas tornando-se cada vez mais suspeito à igreja pelo arrojo de suas convicções.

            Em 1592 cometeu a imprudência de voltar à Itália, caindo sob as garras ferozes da Inquisição, que o fez prender e intimou a abjurar as suas avançadas opiniões. Prezando mais a verdade que a própria vida, recusa nobremente submeter-se, é excomungado e degradado. Concedem-lhe oito dias para confessar as suas culpas, mas nem de leve conseguem abalar-lhe a intrépida firmeza, e é afinal queimado vivo, com grande solenidade, como "apóstata, herético e violador de seus votos."

            Galileu, a seu turno, cujo merecimento consistiu, como o de Kepler, em "iluminar o caminho e converter a hipótese em ciência", foi declarado herege por alguns pregadores estúpidos" e, denunciado por um frade à Inquisição, que verberou de "falsa e contraria às divinas Escrituras a doutrina da mobilidade da Terra", só escapou ao suplício da fogueira por ter tido a fraqueza de abjurar como errônea essa doutrina. Proibido pela congregação do lndex de professar e defender o sistema de Copérnico, teve afinal de comparecer perante o tribunal do "santo oficio" e aí solenemente declarar que a Terra era imóvel, não sem contudo exalar o brado de consciência na celebre frase: "E pur si muove!" Mas foi ainda assim condenado à prisão "pelo tempo que se julgasse necessário".

            Com essas medidas de odiosa compressão visava o inimigo incompatibilizar ainda mais a igreja com a causa da liberdade e do progresso, logrando realmente acirrar um antagonismo de que haviam de resultar, como o veremos em capítulo adiante, as mais funestas consequências, pelo dissídio criado entre a religião e a ciência.

            Não podia, entretanto, o Senhor, sempre vigilante, consentir que ficasse de todo privada a humanidade do alimento espiritual, de que é Ele a fonte viva. E, pois que do concílio de Trento, não obstante as graves mutilações do programa que, segundo vimos, lhe estava naturalmente traçado, havia de todo modo resultado um salutar movimento de reação no seio dessa mesma igreja e como era ela, e continuaria ainda a ser por alguns séculos, uma força admiravelmente organizada, foi aí que suscitou o aparecimento de plenipotenciários da sua graça e bondade, com a missão de promover um sadio reflorescimento espiritual da família cristã, que de alguma sorte compensasse o recrudescimento façanhudo da nefanda instituição, a que se refere ainda uma vez o historiador.

            "Infelizmente - diz ele - recobrou ao mesmo tempo a inquisição novos alentos. Organizou confrarias de homens e de mulheres, atraídos pelo engodo de certos privilégios e indultos, que a serviam como "familiares". No seu zelo cruel, não só sindicava das opiniões heterodoxas, senão também dos atos religiosos; cheirava as cozinhas à sexta-feira, virava e revirava cada expressão dos professores das universidades. O poder civil teve de reclamar contra as suas usurpações; depois de se queixarem do mal, os príncipes tinham que se queixar também dos remédios."

            Opondo então luminoso contraste à tenebrosa atividade dos imitadores de Torquemada e, simultaneamente, à tibieza religiosa e a relaxação de costumes por que se assinalava ainda o começo do século, recorda o historiador que "os agiológios se ilustraram com muitos nomes novos, como os de Catarina, descendente dos duques de Cardona, de soror Beatriz d'Oñes, de Diogo e de Pedro de Alcântara, que renovaram em Espanha as macerações da Tebaída. João da Cruz, associado a Santa Tereza, comentou em versos e meditações o Cântico dos Cânticos; João d'Ávila fez ouvir às cidades e às montanhas da Andaluzia a sua vigorosa palavra; João de Granada deu aos dominicanos uma filosofia cristã, para lhes dirigir o pensamento, e um sermonário para lhes regular a eloquência; Luiz de Leon acostumou a poesia a exprimir ideias religiosas. Na Polônia,  Estanislau Kostka, na Itália, Luiz de Gonzaga e Madalena dos Pazzi foram modelos de pureza e castidade." E assim por diante.

            Sobrelevando-se a essa vaga humana de novos condottiere da Fé, que vinham sanear a atmosfera da igreja com exemplos e fervorosos entusiasmos, cuja tradição se havia quase totalmente extinguido, praz-nos destacar algumas figuras de eleição, transportadas a tais eminências do espírito verdadeiramente cristão, que recorda-las nalguns de seus traços mais característicos, não é somente render testemunho de que o Senhor Jesus permanecia com aquela parte da Igreja que se lhe conservava fiel, mas oferecer aos leitores, perfeitamente na índole de um trabalho como este, matéria de estímulo e de edificação.

            Abre a série Tereza de Jesus, vocação acentuadamente religiosa desde a infância, expressa na fuga da casa paterna, com um irmãozinho, para se dedicarem, por uma sorte de precoce instinto, ao serviço de Deus. Ingressando mais tarde na Ordem das carmelitas, reformou-a para "carmelitas descalças", em moldes, se de maior austeridade, que provocasse na alma transfigurações divinas, impondo todavia, com um raro senso da psicologia humana, trabalhos e ocupações ordinárias que obstassem os extravios do pensamento, com frequência resultantes da ociosidade.

            A história da sua vida, por ela mesma escrita em obediência aos seus superiores, é um admirável compendio de iniciação no transcendente mistério da união da criatura com o seu Criador - união interior, consciente e mística – do mesmo modo que as suas obras inspiradas na teologia cristã, notáveis pela originalidade e profundeza, em contraste com a escassa instrução que recebera e se reflete mesmo na incorreção do estilo, ao mesmo tempo, singelo e gracioso, representam um documento vivo de quanto pode a graça do Senhor; iluminando aquele que se lhe entrega sem reserva. Mas o que, a nosso ver, constitui o merecimento supremo da sua vida, é essa mesma vida, mortificada, na adolescência, de cruciantes padecimentos físicos, extremados em dolorosíssima paralisia, suportados, porém, com resignação e coragem exemplarmente cristãs, e depois desdobrada, com atividade infatigável, no amparo às criaturas do seu sexo, convertendo-as a Jesus e edificando-as com os testemunhos de uma humildade, comovedora a poder de profundamente sentida, só comparável nesse efeito aos iluminados e transfiguradores colóquios em que se entretinha com o Divino Salvador e Mestre.

            A tais atitudes de angélica pureza se havia alcandorado o seu espírito amantíssimo!

            Recordemos em seguida essa doce e indulgente figura de Francisco - singular predestinação, por assim dizer, a desse nome! - filho dos condes de Salles, na Saboia, que foi bispo de Annecy e de Genebra (1602). "Pregou no Chablais, onde os bernezes tinham introduzido o calvinismo; operou conversões principalmente pela afeição e estima que inspirava e restabeleceu nesse país o culto católico. Alma tranquila e serena, trabalhava sempre, mas sem esforço nem precipitação. Carlos Borromeu surgira armado de qualidades enérgicas, de faculdades soberanas, de uma autoridade que se impunha e, porque assim digamos, da vara da penitência, para converter e disciplinar os cristãos paganizados. Francisco de Salles, ao contrario, apresentou-se animado pelo espírito de mansidão e revestido de seduções para atrair ao seu caminho os filhos rebeldes da Igreja. Com Joanna Francisca Fremyot, viúva de Chantal, fundou a ordem da Visitação, destinada principalmente a receber as mulheres excluídas, pela delicadeza de sua constituição física, das ordens mais austeras, as quais eram dispensadas de recitar os ofícios e de cumprir os
preceitos demasiadamente penosos".

            Entre os livros que publicou merecem destaque a Introdução à vida Devota, que pode ser considerada um gracioso complemento da Imitação de Cristo, e sobretudo a sua Filotea, "inspirada por um cristianismo repassado de mansidão, em que a linguagem, apesar da incorreção e da exuberância das imagens, conserva um encanto particular. À virtude mística reunia um são juízo e grande senso prático; a sua vida foi toda de ação. Exerceu especial influência nas mulheres pela sua devoção bondosa e amorável. Condescendente quanto possível, nem sequer proibiu a dança a Filotea; na ordem da Visitação procurou antes a mortificação da vontade que a da carne; mas, apesar de sempre rodeado de mulheres, era tão escrupuloso e delicado em suas relações com elas que nunca falava a sós com nenhuma".

            Não menos fascinante era o prestígio que desfrutava entre as crianças, do que nos oferece tocante descrição o seu biógrafo Luiz de Ia Riviêre, nestes termos:

            "Todos os domingos e, no tempo da quaresma, aos sábados depois de jantar, ensinava o catecismo às crianças, uma hora antes disso, um arauto percorria a cidade, vestido de cor violeta, tocando uma campainha e gritando: À doutrina cristã; ensinar-vos-ão o caminho do paraíso. Tive a honra de participar desse bendito catecismo e nunca vi espetáculo semelhante: aquele amorável e verdadeiramente bom pai estava sentado numa espécie de trono, elevado sobre cinco degraus; rodeava-o todo o exército infantil e muitas pessoas das mais qualificadas, que não desdenhavam de ir ali receber o alimento espiritual. Era um contentamento sem igual ouvir como ele expunha familiarmente os rudimentos da nossa fé; a cada pensamento brotavam-lhe dos lábios riquíssimas comparações para o exprimir; olhava para os seus inocentes discípulos, e os discípulos olhavam para ele; tornava-se criança como eles, para neles formar o homem interior e o homem perfeito segundo Jesus Cristo." E noutro lugar: "Parecia mais que nunca estar no seu elemento quando se achava no meio das criancinhas; eram aquelas as suas delícias e as suas distrações; ameigava-as com um sorriso e um modo tão gracioso como o não podiam ser mais. Elas lhe correspondiam chegando-se para ele com toda a confiança e afeição. Era raro sair de casa que se não visse rodeado daquele bando angélico que, reconhecendo-o como seu amorável pastor, acudia a pedir-lhe a benção. As vezes os seus criados ameaçavam as crianças e lhes faziam sinal para se retirarem, receando que o importunassem; quando, porém, ele dava por isso, os repreendia com brandura e lhes dizia afavelmente: Deixai-os, deixei-os vir! Depois, acariciando as crianças e passando-lhes a mão pelas faces, continuava: eis aqui a minha pequena família; a minha família é esta."

            Sementeira divina a que o bondoso pastor, verdadeiro imitador de Jesus, lançava naquelas almas em preparação para os rudes combates deste mundo!

            Omitindo outros vultos de relevo semelhante, detenha-mo-nos a considerar Philippe de Neri, "florentino, que reunia a uma vasta erudição a humildade, que tão raro a acompanha, levada ao extremo de procurar a desatenção do mundo com tanta solicitude como outros requestam a sua admiração. Tinha por amigos os homens mais doutos, como Tarugi, pregador ilustre, confessor e cardeal, Silvio Antoniano, letrado e poeta, que escrevia os breves pontifícios, o famoso médico Miguel Mercati e Baronius, que ele incitou a empreender o seu grande trabalho dos Anais; e, contudo, postava-se debaixo dos pórticos de S. Pedro, confundido com os mendigos; aparecia também às portas dos cambistas, nos tribunais ou à entrada dos palácios, e em toda parte insinuava, com sua inalterável doçura ou com a vivacidade da sua nação, a caridade e a justiça, amparando por vezes a virtude prestes a cair. Mostrava-se tão indulgente nas coisas acessórias quanto inflexível nos pontos capitais; no confessionário sondava as consciências com extraordinária perspicácia e no oratório admitia a mocidade a devoções agradáveis e a estudos liberais."

            A oratória sacra adquiriu por esse tempo grande relevo, do mesmo modo que João de Ramillon, fundando a ordem da Doutrina cristã, muito contribuiu para reorganizar-se a instrução elementar. Bourdoisse, reconhecendo a necessidade de restabelecer a disciplina e a ordem moral entre os eclesiásticos, sujeitava à vida em comum o clero das paróquias na congregação dos padres de S. Nicolau de Chardonnet. Pedro de Berulles, eclesiástico de elevada categoria, organizou, a exemplo de Philippe de Neri, os padres do Oratório (1611), ligados por simples promessas, congregação em que, ao contrário da disciplina exclusivista, implacável e anticristã dos jesuítas, a norma adotada consistia na formula: entra quem pode e sai quem quer, e destinava-se a formar bons sacerdotes. Logo estabeleceram seminários e outras escolas, apresentaram excelentes pregadores e produziram em poucos anos muitas obras de teologia, de eloquência, de literatura amena, de crítica e de história.

            A criação de novas ordens, ademais, e a reforma das antigas adquiriram considerável incremento. Nelas "não se repetiram as austeridades excessivas, as eternas salmodias, as prostrações frequentes, que em séculos rudes tinham parecido necessárias para domar os sentidos; cuidou-se antes do recolhimento da alma, da mortificação da vontade e da educação das inteligências e dos sentimentos."

            Multiplicaram-se também as obras de caridade e de assistência social, para mitigar a miséria e os desastres causados pelas guerras que, durante o século, haviam assolado vários países. Entre os institutos dessa natureza cumpre destacar o das filhas ou irmãs da Caridade, fundado por Luiza Legras, de Marillac, que as enviava "às trinta e quarenta para os campos de batalha, para as cidades cercadas e, até, a países estrangeiros, para socorrerem os enfermos, como o fizeram em Varsóvia durante a peste de 1652".

            E pois que falamos de caridade, rematemos a breve nomenclatura, que nos propusemos assinalar, dos grandes santos, com o excelso campeão que dela foi Vicente de Paulo.

            Nascido na França (Dax) em 1577, de uma família burguesa, viveu 83 anos, como se vai ver, empregados de modo incomparável no exercício do seu ministério verdadeiramente sagrado.

            “Tendo vindo ao mundo numa época em que as guerras de religião haviam devastado o seu formoso país e em que os reis multiplicavam a miséria dos povos, Vicente empreendeu suavizar todos os sofrimentos com o auxílio do Cristo. Nesse intuito solicitava a beneficência dos ricos e fornecia aos camponeses dinheiro, instrumentos de lavoura, sementes, para eles voltarem aos seus trabalhos e cobrarem ânimo. Recolheu com ternura paternal as inúmeras crianças abandonadas pela miséria ou pelo vício e as confiou aos desvelos das Irmãs de Caridade (1652), as quais, por ele exortadas, abandonaram os regalos da vida para tratarem dos enfermos e serem mães, segundo Jesus, das crianças enjeitadas por suas mães segundo a carne. E, por último, meteu-se nas galés, para socorrer os desgraçados proscritos pela sociedade e transformar as sentinas do crime em escolas de regeneração.
            "Informado da mísera situação em que a guerra deixara a Lorena, reduziu a congregação ao mais estritamente necessário, para poder socorre-la, e mandou para a desgraçada província quantas esmolas pode colher. Era tal a miséria que até as filhas de casas ricas não raro vendiam a honra para comprar pão; as freiras rompiam a clausura para mendigar; os curas morriam de inanição com os paroquianos, ou atrelavam-se à charrua, por não haver bois. Houve mães que devoraram os filhos. Os lobos infestavam os campos desertos e devoravam os homens, como estes haviam devorado cavalos e cães. A fome se estorcia por toda parte, assim nas cidades como nos campos; em Metz, em Toul, em Verdun, todas as manhãs se encontravam nas ruas dez ou doze pessoas mortas à mingua.
            "Vicente, incansável na sua caridade, inesgotável nos seus recursos, conseguiu mandar para a Lorena seiscentas mil libras, ele que não tinha um ceitil de seu; nessa grande obra de beneficência utilizou os missionários, que abriam caminho através dos assassinos e dos croatas e, uma vez chegados ao seu destino, recolhiam as crianças, tratavam dos enfermos, procuravam amas de leite. Entretanto batia ele às portas dos mais altos personagens, enternecia os corações mais empedernidos e movia a rainha a dar-lhe até os tapetes das suas câmaras. Depois, quando a continuação da guerra arremessou os habitantes na direção de Paris, deu-lhes asilos e os sustentou; colocava as mulheres junto às senhoras abastadas, fornecia aos homens instrumentos de lavoura e meios de fertilizar o solo; para as pessoas de condição elevada pedia socorros às famílias nobres, cuja caridade se estimulava com os sacrifícios a que ele se sujeitava, porque muitas vezes a sua congregação não tinha que comer no dia seguinte.
            "Os reis dilatavam os males da guerra pelo Artois, pela Picardia, pela Champagne, reduzida ao desespero e à fome, e Vicente derramava sobre essas províncias os tesouros da sua caridade. Debelados enfim esses flagelos, redobrou de zelo para acudir aos infelizes e consolar os desesperados; apresentou-se a Richelieu e disse-lhe: "Senhor, dai a paz à França e às suas províncias desoladas; tende piedade de tantos desgraçados concidadãos."
            "Tinha fundado em Roma (1652) a congregação das Missões, composta de padres seculares que faziam voto de continência e durante oito meses de cada ano pregavam, confessavam, ensinavam crianças, socorriam pobres e doentes, aplacavam ódios, promoviam a justiça e terminavam os seus trabalhos com uma comunhão geral. Nunca deviam sentar-se à mesa senão entre dois mendigos e diziam: "Somos os padres dos pobres; Deus nos escolheu para alívio deles; é este o nosso dever essencial, tudo o mais é acessório". Instituiram em pouco tempo vinte e cinco missões, que se elevaram a oitenta e quatro.
            "Não se limitaram à França; espalharam-se pela Córsega, dilacerada por implacáveis vinganças, e pela Itália, onde o Piemonte, o território de Genova e a Romanha ofereciam ao seu zelo frequente ocasiões de se exercer. Os pastores das campinas de Roma e dos vales do Apenino passavam meses inteiros sem receber sacramentos e sem ouvir a palavra da religião, ignorando até os princípios capitais da doutrina cristã. Os missionários, para os instruírem, os reuniam à noite nos estábulos ou perto deIes, e nos dias santificados os chamavam ao templo.
            "Vicente de Paulo também percorreu o mundo, desempenhando com incansável fervor a sua missão humanitária; sofreu o martírio do desprezo e da calúnia e vingou-se dissuadindo a rainha de cortar os víveres à cidade de Paris, como o queria fazer para castigar os seus habitantes."

            E não somente Vicente de Paulo teve a iniciativa das missões longínquas para propagação da fé cristã pela caridade ou pelo ensino, que é também uma forma, das mais excelentes, da caridade espiritual.

            "A freira Angela de Brescia, nascida em Desenzano - refere o historiador - pertencia à ordem terceira de S. Francisco ; aos vinte e seis anos de idade anunciou que Deus lhe tinha ordenado fundar uma associação nova: reuniu sessenta e três companheiras saídas das primeiras famílias de Brescia e as colocou sob a proteção de santa Úrsula. As religiosas deviam conservar-se no seio de suas famílias, procurar infelizes para os socorrer, visitar os hospitais e os enfermos e, como quarto voto, educar crianças do seu sexo. As fundadoras compreenderam o alcance da sua obra e diziam: - É preciso renovar o mundo corrompido, por meio da mocidade; as mulheres reformarão as famílias, as famílias reformarão as províncias, e as províncias o mundo. - Não tinham regras austeras nem contemplações; a ativa santa Marta era o seu modelo. Essa excelente instituição de beneficência tornou-se tão benquista que Carlos Borromeu admitiu na sua diocese 400 ursulinas; em 1668 a França tinha 313 casas dessas religiosas, que posteriormente se espalharam pela Europa e pelo Novo Mundo, assinalando-se em toda parte pelos seus serviços, mormente no Canadá, onde pregaram o evangelho aos selvagens."

            Por outro lado, "na congregação da Propaganda fide, três cardeais, três prelados e um secretário se ocupavam em difundir a doutrina cristã e dirigir missões, cujo número pode ser aumentado mercê de muitos legados pios, irradiando desse centro, os missionários se espalharam pelo mundo, desde os Alpes até aos Andes, desde o Tibete até a Escandinávia, catequisando maometanos, budistas, nestorianos, idólatras e protestantes."

            "Esses agentes do catolicismo assinalaram-se muitas vezes por um zelo heroico e levaram a muitos povos os primeiros clarões da civilização. Em compensação das perdas sofridas na Europa, os papas receberam embaixadas e homenagens da Abissínia, do Japão, da Pérsia, dos antigos reinos do Oriente e dos novos países da América, onde se fundaram bispados, conventos, escolas e hospitais."

            Em o nosso Brasil é conhecida, e fulgura nos rudimentos históricos da nacionalidade, a decisiva influencia dos jesuítas, entre os quais se destacam as empolgantes figuras de Anchieta e Nobrega, na catequese dos selvícolas, tentando, a golpes de abnegação e de heroísmo, os primeiros ensaios de civilização cristã, que, mesmo imperfeitamente, aqui se havia de implantar, muito embora não fosse a sua obra, aos olhos de modernos pesquisadores imparciais, isenta de falhas, que lhe atenuam o brilho primitivamente adquirido.

            Tais foram, de todo modo, no breve resumo que precede, os frutos, não mesquinhos, da reação provocada no seio da Igreja pelo movimento da Reforma e subsequente ao concílio de Trento. Vitória assinalada do espírito do Cristianismo, corporificado em tantos missionários, podem ser, entretanto, considerados os últimos clarões dessa igreja, que dele pretende ser depositária, nos domínios da fé e da unidade religiosa. Porque o inimigo, que lhe ronda os passos, é indubitável que se não resignaria inerte a essa derrota, mesmo parcial, não abandonaria por isso a sua presa nem, muito menos, o domínio mundial pertinazmente adquirido e conservado.


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