Pesquisar este blog

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

6d. AntiCristo senhor do mundo



6d

*

            "Quando os franceses invadiram a Navarra - informa o historiador, aos termos de cuja narrativa nos cingiremos sempre que possível - acharam todas as fortalezas desmanteladas, à exceção de Pamplona. Estava nessa praça encerrado Inácio de Loiola, fidalgo de Guipuzcôa, que tinha sido pajem na corte de Fernando e Isabel e, depois, fora promovido a oficial. Era um moço leviano, formoso, elegante, bem aceito pelas damas, valoroso como um cavaleiro andante. Ferido, no empenho de repelir os estrangeiros, a cirurgia da época lhe infligiu torturas atrozes; tendo ficado mal encanada a perna que fraturara, o corajoso enfermo ordenou que a tornassem a quebrar, para se lhe fazer depois mais acertado curativo. Preso ao leito durante muitos meses consecutivos, entreteve-se a ler o FLOS SANCTORUM, e essa leitura, impressionando sua alma ardente, lhe transformou completamente o ideal. Como Lutero, sondou os abismos da alma em luta consigo mesma e procurou a reconciliação com Deus; mas em vez de se acolher, como o frade alemão, à terrível doutrina da predestinação, recorreu às obras e buscou a paz na obediência à Igreja. Sonhou então novas empresas de heroicidade, de que a Virgem seria a dama inspiradora, e, abandonando a pátria, pôs se a caminho de Jerusalém, com a ideia de ir arrancar o túmulo de Cristo das mãos dos infiéis (1524),"
            "Chegado a Monserrat, fez a ‘vigília de armas’ aos pés da Virgem, depôs sobre o altar o vestuário mundano, envergou o burel de um mendigo e consumiu três dias numa confissão geral. Para merecer a absolvição, infligiu-se as mais cruéis penitencias. Em Manresa recolheu-se ao hospital e começou a viver como um faquir. Jejuava a pão e agua e só aos domingos se permitia o regalo de umas ervas cosidas. Disciplinava-se três vezes por dia, trazia um cilício sob o burel e uma cadeia de ferro ao pescoço. Ainda não contente com tais mortificações, meteu-se numa cova, para se purificar e ser digno da empresa que ia tentar. Nesta solidão teve visões, o bem e o mal lhe apareciam como guerreiros combatendo na sua alma como na estacada: um, montado num cavalo de luz, vinha de Jerusalém guiado por Jesus, o outro, cavalgando um corcel de trevas, partira de Babilônia, impelido por Satanás. No desespêro produzido por essas alucinações quis matar-se; a fome, as noites veladas, com a boca cheia de terra e o corpo a escorrer água, a pavorosa luta interior o enlouqueceram de todo. Deus apareceu-lhe então. Viu a Trindade, desvendaram-se lhe todos os mistérios das Escrituras. Encontrou a beata de Manresa, uma vidente, que o próprio rei Fernando consultava; cobrou alento para continuar a sua peregrinação e partiu iluminado de Barcelona.
            "O ar do mar lhe restaurou a saúde. Atravessou a França e a Itália. Depois de beijar os pés a Adriano VI, seguiu para Veneza, onde chegou miserável, descarnado, escarnecido por todos; no navio foi apupado pela marinhagem, que intentara converter. Na Palestina visitou os lugares santos, chorando copiosamente; pregou aos infiéis, mas os franciscanos encarregados da guarda do Sepulcro, receando que o seu zelo irritasse os turcos, o fizeram prender e transportar para Veneza, donde voltou a Barcelona.
            "Essas aventuras, o que viu na Europa e na Ásia deram uma direção prática ao seu entusiasmo. Compreendeu que o primitivo projeto que havia formado era quimérico e que urgia não já resgatar Jerusalém, porém salvar Roma. Não se podia arrastar as multidões unicamente com o zelo e a pobreza, desde que os homens se tinham policiado e esclarecido; largou, pois, os andrajos, desistiu das macerações exageradas, volveu às relações sociais, aplicou-se ao estudo e, aos trinta e três anos, começou corajosamente a aprender gramática e filosofia. Fez, porém, minguado progresso. Os escritos a que se aventurou saíram-lhe descosidos, disformes; pregou, todavia, com tanto fervor que a inquisição desconfiou dele, mandou-o calar e, depois, o meteu num cárcere . Restituído à liberdade, dirigiu-se a Paris, sempre estudioso e pobre, sempre exaltado. A Sorbonne também atentou naquela figura singular; interrogou-o, porém, e não achou que censurar nas suas resposta.
            "Combinando o misticismo do autor da IMITAÇÃO DE CRJSTO com o gênio ativo e cavalheiresco do seu país, empreendeu então fundar uma nova cavalaria, não já para combater gigantes, castelãos e monstros, porém os maometanos, os idólatras e os hereges. Com seis amigos associados aos seus projetos, fez voto, em Montmartre, de se colocar sob a obediência do papa, a fim de empregar nas missões a sua dedicação heroica. Confiados nas promessas do Cristo, os sete entusiastas foram para a Itália e aí, agitando as largas abas dos seus chapéus castelhanos, pregaram a penitência num italiano espanholado, em que os habitantes estavam costumados a ouvir ameaças e injurias, Depois submeteram à aprovação de Paulo III o plano de uma ordem destinada a formar a fé e a propaga-la pela prédica e pelos exercícios espirituais, pela caridade com os presos e os enfermos (1546). O papa sancionou esse plano e deu aos novos religiosos o nome de Clérigos da companhia de Jesus, assim como se dizia soldados da companhia do conde Lando ou de Fra Monriale; Inácio ficou sendo o seu chefe com o título militar de general (geral).

            "Itália e Portugal os admitiram logo. Claudio de Jay foi combater a heresia em Brescia ; Brouet dirigiu-se a Senna para reformar um mosteiro que dava escândalo; Bobadilha partiu para a ilha de Isquia, encarregado de aplacar inimizades ferozes; Lefevre exerceu o apostolado em Parma; Lainez tratou na Alemanha de negociações delicadíssimas; Nufiez foi escolhido para patriarca da Abissínia; Francisco Xavier, que queria juntar um santo à série de heróis que ilustravam a sua ascendência, partiu para as Índias orientaies, investido, diz a bula de sua canonização, "em todos os sinais da virtude celeste, do dom de profecia, das línguas, dos milagres de toda espécie". Depressa se multiplicaram os noviciados, os colégios e as concessões do papa, que viu quanto lhe podia ser útil uma ordem toda dedicada a sua
autoridade."

            Tais foram os primórdios da milícia, que tão poderosa e decisiva influência havia de exercer na reforma que urgentemente se impunha à igreja católica; tal, em rápidos traços, a psicologia do seu criador, cuja exaltada sinceridade não pode ser posta em dúvida, mas em quem a ausência da humildade e do amor verdadeiramente cristão contribuiu para extraviá-lo da missão evangélica, a que o induziriam os pendores místicos despertados em sua alma pela sugestiva leitura da vida dos santos, para o converter, e a sua ordem, num instrumento antagônico dos princípios do Cristianismo.

            Vamos ver, no prosseguimento da narrativa referente à obra realizada e aos métodos empregados pelos jesuítas, quanto, abstendo-se embora de odiosas violências ostensivas, como as praticadas pela inquisição, sem deixar de contribuir com apreciáveis benefícios para o aperfeiçoamento das inteligências, o seu papel contudo foi dos mais funestos, dada a natureza das armas de que se utilizavam - a astúcia, a dissimulação, postas ao serviço de uma vontade inflexível - não para tornar amada dos homens a doutrina de Jesus, mas para impor à cristandade e ao mundo a autoridade humana, intolerante, do papado e, com ela, a supremacia de seus interesses temporais. Exigindo de seus membros, como regra absoluta, a obediência passiva, que os tornava automáticos pela abolição da personalidade, a Companhia, ou aquele que, do oculto, a manobrava contra a sociedade em proveito de uma classe, tinha em vista, fazendo dessa obediência uma força de coesão molecular,
como nos corpos brutos da natureza, constituir-se um bloco de projeção e de domínio irresistível, para realização dos seus objetivos. Tudo o que há de contrário ao espírito cristão.

            Porque o Cristo, que é amor - expressão viva do Pai - e que nos veio libertar de toda lei de servidão, quer ser amado e livremente obedecido, com o consenso da razão e do sentimento.

            Paulo proferiu esta profunda verdade, que havemos de ainda, em outra oportunidade, e no curso desta obra, recordar: "o Senhor é Espirito, e onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade". Esta definição é o libelo condenatório da milícia jesuítica. Posta em paralelo, assim nos métodos de admissão às suas fileiras como em sua finalidade, com a Ordem franciscana, tal como primordialmente a instituiu o seu excelso criador, o contraste ressalta veemente. Enquanto a obra de Francisco de Assis, fundada na humildade e no amor, visava converter os homens a Jesus e fazia da pobreza, individual e coletiva, jubilosamente preferida, um ensinamento prático de renúncia, sem outra coisa exigir dos que na Ordem quisessem ingressar, senão um propósito sincero, ao mesmo tempo que aos seus membros assegurava o patriarca plena liberdade de ação - característicos todos nitidamente evangélicos - a milícia jesuítica foi em torno do papado que arregimentou a sua dedicação incondicional: se impunha aos seus membros os votos de pobreza, obediência e castidade, reservava para si, praticamente, o direito da riqueza e da dominação, e, cerceando lhes absolutamente a liberdade no domínio da ação e do pensamento, só os admitia ao fim de longos anos de preparação, depois de neles completamente aniquilada a personalidade, prontos a fazer um dogma do odioso e amoralíssimo princípio de que "os fins justificam os meios". Se a primeira, em tais condições é obra de Jesus, a outra não pode ter sido mais que uma calculada manobra do AntiCristo, bastante astucioso em suas pérfidas sugestões para dissimular com algumas realizações benfazejas os seus intuitos, ou - o que é talvez mais verdadeiro - incapaz de impedir, graças à fiscalizadora vigilância do Senhor, que ao lado dos seus tenebrosos fins, alguns apreciáveis benefícios fossem realizados pela milícia, no domínio da instrução e da beneficência, com aproveitamento das aptidões e - porque não admiti-lo? - da sinceridade de propósitos de muitos de seus membros. Que ainda nesse episódio da existência da igreja católica o joio e o trigo, da parábola evangélica, andaram associados.

            É o que se evidencia do testemunho da história, no prosseguimento das referencias à obra jesuítica.


Nenhum comentário:

Postar um comentário